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A Alemanha tentou deixar sua marca na Ásia com a construção de uma ferrovia durante a Primeira Guerra

TEXTO Marcelo Testoni Publicado em 23/09/2014, às 16h42 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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O Expresso (sem luxo) do Oriente - Arquivo Aventuras
O Expresso (sem luxo) do Oriente - Arquivo Aventuras

Na última década do século 19, sofisticação era estar a bordo do Expresso do Oriente, o luxuoso trem que fazia o trajeto Paris-Constantinopla. Os vagões deixavam a Gare de l’Est duas vezes por semana e passava por Estrasburgo, Viena e Budapeste antes de chegar à capital do Império Otomano. Durante a Primeira Guerra, o serviço foi interrompido, mas havia outro interesse numa rota sobre trilhos que ligasse Europa e Oriente Médio. Ela não era luxuosa, não tinha glamour e seus passageiros eram bem diferentes dos burgueses e aristocratas que embarcavam em Paris.

A Alemanha tinha planos de criar uma rota segura e distante dos canhonaços da Marinha britânica. O objetivo: chegar a Bagdá e, ali, ter acesso às commodities orientais. A maior de todas, o petróleo. Os germânicos eram aliados do Império Otomano contra a Entente (Inglaterra, França e Império Austro-Húngaro). Para os turcos, a ferrovia era o caminho da dominação que levaria a palavra de Alá a áreas distantes. Os alemães viam a chance de usar o aliado contra os inimigos comuns - imaginavam chegar aos distantes Índia e Egito, duas colônias britânicas, sem ter de atravessar o mar.

Canal de Suez

No final do século 19, não havia em Bagdá muito para admirar. Uma cidade de 150 mil habitantes, que servia como entreposto de abastecimento para nômades e seu tráfego de caravanas. Seria necessário um esforço gigantesco para ressuscitar sua vida econômica - e mais ainda para conectá-la por trilhos a Constantinopla, a uma distância de 2 mil km em linha reta. "Uma estrada de ferro ligando a Europa e o Golfo Pérsico poderia representar um caminho comercial mais veloz até o Oriente, superando em rapidez não só as longas viagens por mar, mas até mesmo o trajeto mais curto pelo Canal de Suez", diz Sean McMeekin, historiador da Universidade Bilkent, em Ancara, na Turquia, e autor de O Expresso Berlim-Bagdá.

Se o aço ferroviário alemão conseguisse domar a estepe da Anatólia e atravessar as Montanhas Taurus, os abundantes recursos do Oriente Próximo poderiam começar a abastecer a voraz economia alemã, ao mesmo tempo que aumentaria a capacidade do sultão de despachar suas tropas para as zonas de conflito. Em termos estratégicos, era uma união perfeita. Em 23 de dezembro de 1899, o ministro otomano das Obras Públicas, o paxá Zihni, assinou um acordo com Georg Siemens, representante do Deutsche Bank, e a Companhia Ferroviária da Anatólia, que transferia ao grupo alemão a construção de uma estrada de ferro, de Konya a Basra, via Bagdá.

A estrada de ferro teria de passar por montanhas e abismos, fustigados por saqueadores. "O que podia ser um bom divertimento para aventureiros era um desafio de logística horrível para os 12 mil trabalhadores envolvidos na construção da estrada", afirma Jonathan McMurray, historiador da Universidade Fordham, nos Estados Unidos, e autor de Distant Ties: Germany, the Ottoman Empire, and the Construction of Baghdad Railway (Laços distantes: Alemanha, o Império Otomano, e a construção da estrada de ferro de Bagdá, sem edição no Brasil).

Os trabalhos na linha tiveram início em 1903 e apenas no primeiro trecho, plano, de Konya ao sopé das Montanhas Taurus. Os alemães queriam apoiar o sultão, considerando-o seu mais indispensável aliado em meio a um cenário internacional hostil. A ameaça de consolidação da Entente pairava no ar, e caso a Europa entrasse numa guerra entre as grandes potências, o Império Otomano poderia avançar sobre o Egito e o Canal de Suez, criando um estratégico anel de contenção que deteria o Império Britânico e seus aliados. "As cidades sagradas de Medina e Meca ajudariam a ressuscitar a autoridade do sultão como califa do Islã e aguçar os sentimentos sediciosos dos súditos mulçumanos da Inglaterra e França", diz o professor Sean McMeekin.

Sedição

Apesar do trabalho árduo dos engenheiros e patrocinadores alemães, 15 anos depois da concessão de 1899, a grande linha ferroviária ao Oriente Médio estava longe de ser concluída. Durante quase todo o ano de 1915, isso valeu não somente para os trechos das Montanhas Taurus e Amanus, mas também para o percurso fragmentado que atravessava os Bálcãs. Só depois que a Sérvia foi eliminada da guerra, em novembro, é que o trecho europeu do Expresso do Oriente se tornou operacional. A leste de Constantinopla permaneciam os desafiadores desfiladeiros das montanhas, juntamente com quase toda a seção de 623 km que se estendia da base de Amanus até Bagdá, da qual somente um décimo da distância tinha sido concluído quando a guerra começou.


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"A mão de obra local começou a escassear quando os muçulmanos foram convocados pelo Exército otomano, juntamente com os cristãos", diz Erik-Jan Zücher, professor do Departamento de História Turca da Universidade de Leiden, na Holanda, e autor de The Ottoman Conscription System, 1844-1914 (O sistema de recrutamento otomano, sem tradução).

Na parte sul da obra, a margem oriental do Rio Eufrates era tão perigosa que a companhia da estrada de ferro, a um grande custo, tinha de abrigar os funcionários dentro de fortificações a fim de protegê-los de salteadores. A linha sofreu sua crise mais forte em abril de 1915, durante o genocídio armênio - a região era parte do Império Otomano. Muitas áreas onde ocorreram os massacres estavam perto da estrada de ferro. "Era apenas questão de tempo antes que os muçulmanos turcos também começassem a manifestar repulsa pelos infiéis cristãos que tinham trazido morte, miséria e ruína e, ainda, a sedição árabe aos otomanos", afirma o historiador Sean McMeekin.

Em 1916, a grande guerra santa turco-alemã tinha se revelado, enfim, uma solene decepção. Em vez de inspirar os muçulmanos a lutar lado a lado com a Alemanha contra a Inglaterra e seus aliados, havia estabelecido uma relação de amor e ódio entre as duas potências, com tensões culturais, interesses conflitantes e desconfianças mútuas.

Com as derrotas, o ressentimento dos dois lados apenas cresceu e, antes de perderem tudo na disputa pelos espólios da ferrovia, os alemães tomaram a atitude de entregar a operação inteira aos turcos. Com seu coração e bolso partidos, só restava ao kaiser agora apontar sua mira para os campos petrolíferos de Baku, no Azerbaijão - bem longe do Oriente Médio.

A JIHAD ALEMÃ - Uma estranha parceria que marcou a Primeira Guerra

Apesar da hesitação dos turcos para entrar na guerra ao lado da Alemanha, foi durante os agitados dias de agosto de 1914 que a febre da jihad chegou ao ápice na Europa. Seu quartel-general era em Berlim, onde a propaganda islâmica e os discursos anti-Entente eram publicados em alemão, francês, inglês, russo e holandês, e depois traduzidos ao árabe, turco, persa e nas línguas dos muçulmanos russos.

O resultado - a proclamação de uma guerra santa contra todos os europeus, à exceção dos austríacos, húngaros e alemães - "foi uma espécie de desordem, que nem era comprometedora o suficiente para os alemães, nem tecnologicamente adequada o bastante para satisfazer os clérigos muçulmanos", afirma Mustafa Aksakal, professor de História da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos.

Em 1º de novembro de 1914 a Turquia entrou na guerra. Berlim começou a propagar seus planos até o Mar Negro e a enviar armas, munição, equipamentos de rádio, medicamentos e 2 mil conselheiros militares alemães para Constantinopla por meio de sua estrada de ferro.

Os jihadistas alemães foram despachados para espalhar a guerra santa até o berço do Islã, a Arábia. "Do Marrocos até a Índia, eles tentaram mobilizar os xiitas no Irã, os árabes no Daguestão russo e várias tribos afegãs ou sudanesas e os sanussis no Norte da África, dominado pelos franceses", afirma João Fábio Bertonha, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá.

A única ação coordenada de alemães e turcos foi a tentativa de conquistar o Canal de Suez. Mais de 20 mil homens atravessaram 260 km de deserto. Mas o plano fracassou. A derrota abateu os inimigos e ajudou a definir o rumo da guerra no Oriente Médio. A partilha da região no pós-guerra entre britânicos e franceses desenhou o mapa atual.