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Guernica, 80 anos: A estreia do terror aéreo

Destruição orquestrada pelos nazistas foi um ensaio para os horrores vindos do ar na Segunda Guerra

Mauro Tracco Publicado em 26/04/2017, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Detalhe do quadro Guernica, de Pablo Picasso - Wikimedia Commons
Detalhe do quadro Guernica, de Pablo Picasso - Wikimedia Commons

Tradicionalmente, a semana em Guernica começava com uma feira livre. Naquela segunda-feira, 26 de abril de 1937, agricultores dos arredores da pequena cidade basca vendiam os frutos de seu trabalho na praça principal. Às 16h30, um único badalar do sino da igreja anunciou a incursão aérea. Dez minutos depois, vieram as bombas. Guernica ficou arrasada – e o mundo foi apresentado ao poder dos ataques aéreos sistemáticos, que se tornariam comuns poucos anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial.

Na época do bombardeio, a Espanha vivia a Guerra Civil. Após um fracassado golpe militar contra o governo do socialista Francisco Largo Caballero, em 1936, as tropas do general Francisco Franco não desistiram de tomar o poder. Divididos, os espanhóis passaram a se enfrentar em diversos pontos do país. Os combatentes leais ao governo de esquerda, chamados de republicanos, contavam com o apoio da União Soviética. Já as forças de Franco, os nacionalistas, tiveram a ajuda da Itália fascista de Benito Mussolini e da Alemanha nazista de Adolf Hitler.


Após o ataque / Wikimedia Commons

Desde o início, Franco havia tentado conquistar Madri. Em abril de 1937, a capital ainda não havia caído e o general decidiu optar por um alvo mais fácil: o norte espanhol. As regiões de Astúrias e Santander e as províncias do País Basco estavam em péssima situação militar. Lá, a força aérea dos republicanos era inexistente. Os céus estavam abertos para as bombas nacionalistas.

Guernica, no País Basco, era habitada por apenas 6 mil pessoas. Não possuía defesa, nem qualquer alvo militar, salvo a ponte sobre o rio Mundaca, cuja destruição poderia dificultar uma retirada do exército basco. Apesar da insignificância estratégica da cidade, seu centro foi alvo do até então mais violento ataque aéreo da história. Mas por quê? Nada de mais. Para os nazistas, foi apenas um teste.

Os protagonistas do ataque a Guernica foram aviadores alemães, com a ajuda – muitas vezes desajeitada – de pilotos italianos. Hermann Goering, comandante da Luftwaffe (a força aérea alemã), revelou em 1946, durante julgamento no Tribunal de Nuremberg, que Guernica foi um estupendo laboratório para ensaiar sistemas de bombardeios com projéteis explosivos e incendiários em uma cidade aberta. O resultado da mórbida experiência se tornou o episódio mais lembrado da Guerra Civil.

Símbolo de autonomia

Guernica não foi a primeira vítima da temida Legião Condor, a unidade militar enviada por Hitler à Espanha. Embora com menos intensidade, as cidades de Durango e Éibar já haviam sido bombardeadas. Mas, além de ter sido acertada com mais violência, Guernica tem uma enorme importância simbólica para o povo basco, que vive no norte da Espanha e no sul da França. A destruição mexeu com os brios desse milenar grupo étnico. Na Idade Média, Guernica foi a vila onde se reuniam as Juntas Gerais (espécie de conselho político) de Biscaia, região habitada pelos bascos. Sob uma árvore do século 14, o Carvalho de Guernica, os monarcas espanhóis juravam lealdade aos Foros Bascos, um conjunto de leis que regulamentava os costumes e os direitos desse povo. Isso mantinha vivo o respeito da Espanha pelos bascos.

A árvore durou 400 anos. No século 19, após sua morte, outro carvalho foi plantado no local. Mas, tempos depois, o governo espanhol resolveu deixar de respeitar os Foros Bascos. Na virada do século 20, o povo basco intensificou seu nacionalismo, pregando até a separação da Espanha. Em outubro de 1936, no início da Guerra Civil, o governo republicano fechou um acordo que dava autonomia ao País Basco (que inclui, além de Biscaia, as províncias de Álava e Guipúzcoa). Durante todo esse tempo, Guernica se manteve como uma referência para a região. 


Expedicionários nazistas

A Guerra Civil Espanhola não poderia ter vindo em melhor momento para os alemães. Eles puderam aperfeiçoar táticas e equipamentos que, pouco depois, seriam usados na Segunda Guerra Mundial. Entre os 16 mil homens enviados por Hitler durante todo o conflito, havia unidades do Exército e da Marinha, mas os aviadores eram maioria. A força de intervenção, batizada de Legião Condor, foi decisiva para a vitória dos nacionalistas do general Franco. A Legião Condor foi oficialmente criada em novembro de 1936, mas os primeiros aviões alemães entraram em ação antes disso. Em agosto, uma operação levou até Sevilha 14 mil soldados de Franco que haviam ficado isolados no Marrocos – o feito ficou conhecido como a primeira “ponte aérea” da história militar. Apesar de ter feito diversas missões de apoio a tropas terrestres, a Legião se destacou mesmo por seus bombardeios. Enquanto teóricos militares da época debatiam a eficácia de ataques aéreos, os alemães testavam isso na prática.


➽ “Os alemães deviam estar cientes dessa importância, mas não acho que isso tenha sido determinante na escolha de Guernica como alvo. Provavelmente a teriam atacado de qualquer jeito”, afirma Félix Luengo, diretor do Departamento de História Contemporânea da Universidade do País Basco. O general Franco, no entanto, certamente enxergou em Guernica uma boa oportunidade de humilhar o povo basco, visto como traidor da causa nacionalista. E, no dia do bombardeio, a cidade abrigava pelo menos mil refugiados, vindos de localidades espanholas que já tinham sido atacadas pelo exército de Franco.

Roteiro macabro

O planejamento do bombardeio é atribuído a Wolfram von Richthofen, então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas alemãs (e primo do Barão Vermelho, lendário piloto da Primeira Guerra). Tudo começou com um único Dornier Do-17, de fabricação alemã. Ele veio do sul e soltou cerca de uma dúzia de bombas de 50 quilos no centro da cidade. As pessoas que estavam na feira correram para abrigos, fazendas e bosques. Após completar a missão, o Dornier voltou para a base. No percurso, cruzou com três Savoia-79 italianos que chegaram a Guernica instantes depois. A patrulha sobrevoou a cidade por um minuto. Tempo suficiente para soltar 36 bombas de 50 quilos. Quando se retiraram, os danos causados ainda eram relativamente pequenos. Apenas alguns prédios haviam sido atingidos, como o quartel-general dos republicanos e a igreja de San Juan.

Às 16h45 começou a terceira onda de bombardeios, executada por um Heinkel-111 alemão escoltado por cinco caças Fiat CR-32 italianos. Às 17h e às 18h, outros dois Heinkel despejaram sua carga explosiva sobre Guernica. Caso os ataques tivessem parado por aí, já seria um castigo excessivo para uma cidade que, até então, havia sido poupada da guerra. Mas o pior ainda estava por vir.

Três esquadrões de Junkers Ju-52 alemães, carregados com projéteis explosivos de até 250 quilos e bombas incendiárias, chegaram a Guernica escoltados por caças Fiat e Messerschmitt Bf-109, o orgulho da aviação nazista. Às 18h30, o primeiro esquadrão de Ju-52 iniciou sua ação. Enquanto a carga dos bombardeiros destruía e incendiava os prédios de Guernica, os caças metralhavam civis indefesos que fugiam. Por cerca de três horas, 40 aviões participaram do massacre.

Logo após a destruição de Guernica, George Steer, correspondente do jornal inglês The Times, notou que o único alvo estratégico da cidade, a ponte sobre o rio Mundaca, ainda estava intacto. Steer percebeu que a prioridade dos nazistas não tinha sido causar danos militares. “O objetivo do bombardeio parece ter sido desmoralizar a população civil e destruir o berço da raça basca”, escreveu.

Na época, o número de mortos divulgado passava de 1600. Hoje em dia, é consenso que o número foi bem menor. Um estudo do historiador espanhol Jesús Salas Larrazábal identificou nome e sobrenome de apenas 120 mortos. “O número de vítimas fatais deve ter sido em torno de 200, mas desde o primeiro momento foram difundidos dados exagerados do total de mortos. Isso multiplicou o impacto da notícia”, diz o basco Félix Luengo.

O general Franco certamente não esperava que o ataque despertasse tamanha comoção na opinião pública internacional. Correspondentes estrangeiros que cobriam a guerra na Espanha visitaram o local do bombardeio na mesma noite e no começo da manhã seguinte. Em poucos dias, o mundo começou a ler nos jornais a história do horror em Guernica. A indignação foi tamanha que franquistas e nazistas trataram de negar a operação. Em 29 de abril, a imprensa favorável a Franco chegou ao cúmulo de dizer que a maior parte dos danos a Guernica havia sido causada por incendiários bascos, para indignar a população e aumentar o espírito de resistência.

A Guerra Civil acabou em 1939, com a vitória de Franco. Ele assumiu o poder e, como era de esperar, suprimiu a autonomia dos bascos. Aliás, durante sua ditadura, dizer que Guernica tinha sido bombardeada podia até dar cadeia. Em 1967, um jovem sacerdote da cidade de Navarra foi julgado em Madri pela “calúnia” de ter escrito que Guernica havia sido destruída pela força aérea nacionalista.

Alguns estudiosos espanhóis, como Onésimo Diaz, professor de História da Universidade de Navarra, não discutem a violência do ataque, mas acreditam que não foi isso que colocou Guernica na história. “Se não fosse pelo quadro homônimo de Picasso, Guernica não teria tido mais repercussão que outras cidades bombardeadas”, afirma. Poucos anos depois, o que acontecera naquele 26 de abril se tornaria tragicamente comum. Em setembro de 1939, o mesmo Von Richthofen comandou o bombardeio nazista de Varsóvia, na Polônia, no primeiro mês da Segunda Guerra. Durante o conflito, os dois lados usariam aviões para arrasar cidades inteiras, matando dezenas de milhares de pessoas por vez. O fim da Segunda Guerra, aliás, só chegaria em 1945, quando as japonesas Hiroshima e Nagasaki viraram pó sob bombas atômicas despejadas por aviões americanos.

Após o bombardeio de Guernica, restou ao povo basco o consolo de ver que o carvalho plantado no século 19 não tinha sido atingido – foi salvo por estar longe do centro da cidade. Em 1979, quatro anos após a morte de Franco, a árvore ainda estava viva para acompanhar o tratado que devolveu a autonomia para o País Basco. O velho carvalho morreu após uma estiagem em 2003. Mas cedeu seu lugar à terceira árvore do mesmo tipo – que, impávida, segue a celebrar a autonomia basca.


Saiba mais
The Spanish Civil War, Hugh Thomas, Simon & Schuster, 1994
La Destrucción de Guernica – Un Balance Sesenta Años Después, César Vidal, Espasa Calpe, 1997