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Salafismo: A demolição do passado

Estado Islâmico e Arábia Saudita têm algo em comum

Fabio Marton Publicado em 22/06/2017, às 13h31 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Destruição de Palmira em vídeo do próprio Estado Islâmico - Reprodução
Destruição de Palmira em vídeo do próprio Estado Islâmico - Reprodução

O que o Estado Islâmico e a Arábia Saudita têm em comum? 

O primeiro é o grupo de fanáticos mais odiados entre todos os islâmicos do mundo, já que têm a pretensão de que eles, e a apenas eles, são islâmicos de verdade - daí seu líder ser o "Califa", o sucessor de Maomé, líder de todos os muçulmanos do planeta. A segunda, um país decisivamente autoritário e teocrático, mas nem de longe um pária entre as nações. Pelo contrário, um lugar que recebe de braços abertos visitantes (islâmicos) de todo o mundo - e faz de tudo para melhor hospedá-los. 

A semelhança é que ambos tratam relíquias históricas, inclusive do próprio Islã, com o mesmo produto: explosivos. 

Se o EI acaba de entrar nas notícias por destruir uma icônica mesquita de mais de 8 séculos, a Arábia Saudita por pouco não passou o trator por cima da própria tumba do Profeta - mas passou por muito mais coisas. E, não, não é uma coincidência.

Máquina comercial

A Arábia Saudita ocupa um papel na vida religiosa islâmica bem maior  que Roma ou Jerusalém para os cristãos. Por lá Maomé passou quase toda a sua vida, teve suas revelações e lançou as bases para a conquista militar que levaria o Islã, em menos de um século, a dominar da Índia até a Espanha. Mais que isso, todo muçulmano do mundo deve viajar ao menos uma vez na vida para lá, realizando o hajj, o ritual de peregrinação a Meca, uma obrigação da qual só está livre quem não pode pagar.

Seria de imaginar que o país guardião da cidade sagrada levaria a religião a sério. E ninguém duvida que a Arábia Saudita leva, em sua interpretação linha-dura da lei islâmica. A punição para roubo é a amputação das mãos; para adultério, apedrejamento. Mulheres não podem dirigir. A punição para a apostasia, abandonar o Islã por outra religião ou o ateísmo, é a morte. 

Como então um país tão devoto trata seu passado religioso? Com um trator. Segundo denuncia a ONG de expatriados sauditas Institute for Gulf Affairs (“Instituto para Questões do Golfo”), 95% dos lugares tradicionalmente sagrados de Meca foram destruídos para a construção de coisas como estacionamentos, shopping centers e hotéis. “Tratores e dinamite são usados para aplanar montanhas históricas e áreas onde estavam as casas das esposas do profeta e seus companheiros”, afirma Dr. Irfan Al-Alawi, diretor da Islamic Heritage Research Foundation (“Fundação de Pesquisa da Herança Islâmica”). Ele  chama Meca de “Mecattan” – mistura de Meca e Manhattan, o distrito central de Nova York. “Meca não é mais o lugar sagrado que foi historicamente conhecido e reverenciado por muçulmanos ao longo do tempo. Hoje é uma máquina comercial e cosmopolita.”  


Demolição na Grande Mesquita / Irfan al-Alawi

Nada de anormal, dizem as autoridades sauditas. A posição oficial sempre foi que são apenas reformas necessárias para manter o ritual de peregrinação manejável. O país, afinal, é um dos que mais atrai “turistas” no mundo. São 4 milhões de peregrinos todos os anos – é preciso infraestrutura para recebê-los e, nisso, quem paga é o passado. Até o fechamento da edição, não conseguimos entrar em contato com o governo saudita. Mas Faisal al-Muaammar, conselheiro do rei, foi questionado pelo jornal britânico The Guardian. Então afirmou que a destruição é “para a expansão de Meca – o que não é opcional. Manter todos os locais sagrados é uma obrigação religiosa [da Arábia Saudita]”.

O passado é um pecado

Certamente, o dinheiro dos peregrinos também faz parte da decisão saudita em demolir estruturas históricas – ainda mais com a baixa do preço do petróleo. Mas muitos acadêmicos enxergam algo bem mais profundo e deliberado em jogo. “A destruição sistemática é baseada na ideologia das autoridades políticas e religiosas da região”, afirma Dr. Al-Alawi. “Essa ideologia, chamada wahhabismo, foi criada por Mohammed ibn Abd al-Wahhab (1703-92), que se tornou notório por sua visão dura sobre o monoteísmo, rejeitando todas as formas de mediação entre Deus e os fiéis.” 

A ideia do wahhabismo é que dar valor a um monumento religioso, islâmico ou não, pode constituir uma forma de shirk – idolatria. Um pecado que apenas o próprio Alá pode perdoar. A isso se soma um segundo pecado: bi’dah – inovação. Alá deu sua revelação final a Maomé porque judeus e cristãos haviam inovado – isto é, mudado, deturpado – sua mensagem. Assim, tudo o que havia antes do Profeta – inclusive lugares de sua própria história, que só passaram a ser reconhecidos depois – é de pouco valor. “Os wahhabitas dizem que estão tentando resgatar o Islã do que consideram inovações, desvios e idolatrias”, afirma Dr. Al-Alawi. “Entre as práticas que eles consideram contrárias ao Islã estão construir monumentos elaborados sobre tumbas e fazer orações ali.”

O termo wahhabismo não é empregado por eles próprios, que preferem “salafista” – de salaf, os ancestrais, os primeiros islâmicos que conviveram com o profeta, a quem querem emular.  “Esse movimento acredita que até chorar muito pelos mortos é pecado”, diz Chadia Kobeissi, autora de O Estado Anti-Islâmico. “Eles acham que muitas coisas são idolatria, inclusive dentro da arte e da arquitetura. Querem apagar a História para escrever a sua.”

Histórico de demolição

A Arábia Saudita nasceu com o wahhabismo. O primeiro Estado da dinastia Saud, o Emirado de Diriyah, surgiu da aliança entre o clérigo Al-Wahhab e o emir Muhammad bin Saud. Seguindo os princípios do wahhabismo, eles se puseram em confronto com o Império Otomano, que tinha uma interpretação bem mais liberal e mística do Islã. Em 1803 e 1804, capturaram as cidades sagradas de Meca e Medina. Sua primeira ação foi destruir mesquitas e locais de significado histórico, como o grande cemitério, Al-Baqi, onde estavam enterradas figuras fundadoras do Islã, inclusive filhos de Maomé. “Esse grande lugar que era visitado por milhões de muçulmanos pelos séculos se tornou um lixão, era impossível reconhecer qualquer tumba”, diz Al-Alawi. “Eles  planejaram demolir a tumba do Profeta Maomé, paz e bênçãos estejam com ele, muitas vezes, mas mudaram de ideia repetidamente.” 

Em  1818, diante do clamor do resto do mundo islâmico, o Império Otomano recapturou militarmente a região e reconstruiu o cemitério. Os sauditas voltaram para sua região natal, Najd (hoje Riad, sua capital). Pouco mais de um século depois, com o esfacelamento do Império Otomano após a Primeira Guerra, eles voltaram. Meca e Medina foram reconquistadas em 1925. O cemitério foi demolido novamente. Hoje, é um estacionamento.

Na mesma época, o local do nascimento de Maomé, marcado por um domo, foi transformado num mercado de gado. Desde os anos 1950, é uma biblioteca, com uma enorme placa avisando: “Não há provas de que o Profeta tenha nascido aqui”. Em 1984, a casa onde Maomé viveu com sua primeira esposa, Khadijah, foi transformada em banheiro público. No lugar da mesquita dedicada ao primeiro califa, líder sucessor de Maomé, Abu Bakhr, hoje existe uma galeria de caixas automáticos. Uma fortaleza otomana do século 18, que um dia protegeu a Grande Mesquita da Caaba, foi destruída para a construção do Abraj Al-Bait, um hotel de 120 andares, considerado por muitos islâmicos como uma dolorosa intrusão na cidade sagrada.

Se você pensou na destruição de monumentos pelo Estado Islâmico ou pela Al Qaeda, a comparação faz sentido.  “Absolutamente faz”, diz Dr. Al-Alawi. “O ISIS é filho do wahhabismo saudita e ainda mais maligno e extremo, mas tem a mesma ideologia de Al-Wahhab.”  

Mas, ao menos no caso da Arábia Saudita, pode haver uma esperança no horizonte. A família real parece ter mudado de ideia. Em julho do ano passado, o governo saudita anunciou um grande programa de renovação de sítios históricos, incluindo a ameaçada tumba do Profeta. Se essa proposta resistirá à pressão dos wahhabitas, fica a se conferir. Stephen Schwartz, da Islamic Heritage Research Foundation, considera: “Obviamente, reforma social verdadeira – como deixar as mulheres dirigir – é impossível sem diminuir o poder de clérigos.”