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Matérias / América

Perseguindo uma lenda: A expedição que partiu em busca de El Dorado

Durante o período Elisabetano, Sir Walter Raleigh conseguiu convencer nobres e monarcas a financiarem suas aventuras infrutíferas

Redação Publicado em 08/07/2019, às 14h32 - Atualizado em 30/10/2021, às 00h00

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Cena da animação 'O Caminho para El Dorado' (2000) - Divulgação/ Dreamworks
Cena da animação 'O Caminho para El Dorado' (2000) - Divulgação/ Dreamworks

“Todos os utensílios da casa e da cozinha são de ouro e de prata e em seus armários estão estátuas de ouro tão grandes que pareciam gigantes de todos os animais, pássaros, árvores, flores da terra e peixes das águas. Tudo feito de ouro. E árvores de ouro e prata de uma beleza e magnificência jamais vistos."

Assim escreveu Sir Walter Raleigh, explorador inglês, em 'A Descoberta do Grande, Rico e Belo Império da Guiana', com um Relato da Grande e Dourada Cidade de Manoa (que os espanhóis chamam de El Dorado).

É uma obra-prima de um dos mais importantes exploradores do Período Elisabetano, que influenciou legiões de seguidores nos séculos seguintes. Todos obcecados por encontrar a grande cidade de ouro perdida no meio da Amazônia.

Sir Walter Ralegh/ Crédito: Domínio Público

Um livro que Raleigh encheu intencionalmente de afirmações fantasiosas para se justificar diante de seus investidores, aqueles que bancaram sua aventura, por ter voltado com as mãos abanando. Uma carreira de aventuras reais e imaginadas que terminaria numa segunda e menos afortunada viagem e que se tornou um marco da era das explorações.

Mil e uma utilidades

A história de Raleigh é a de um homem intenso. Político, poeta, soldado, espião, marinheiro, cientista, alquimista, explorador e historiador, Raleigh representa o gênio poliédrico típico de muitos homens e mulheres que viveram durante o reinado de Elizabeth I.

“Ele foi um self-made man. Não vinha de uma família nobre, e em um mundo de aristocratas teve que lutar e desafiar o destino para subir na vida. E conseguiu o sucesso ainda muito jovem. Poderia ser comparado com os empresários do Vale do Silício de hoje”, conta à Aventuras na História o historiador americano Marc Aronson, autor de 'Sir Walter Ralegh and the Quest for El Dorado' ( ou 'Sir Walter Raleigh e a Busca por El Dorado', em tradução livre).

Suas expedições nas Américas e suas jornadas heroicas nas guerras contra os espanhóis fizeram dele o arquétipo do aventureiro. Raleigh dedicou sua existência à colonização do Novo Mundo em nome da Inglaterra. Um sonho que conseguiu realizar somente após décadas de fracassos, mas que deixou as bases para a formação da América moderna.

Sua carreira de aventuras começou em 1578, quando se juntou a seu meio-irmão Humphrey Gilbert, numa expedição à procura de uma rota marítima para a China a mítica e temida Passagem do Noroeste, através das ilhas congeladas do Canadá, um sonho que só seria concretizado em 1906.

A ideia era evitar a passagem pelo Estreito de Magalhães, então dominado pelos arquirrivais espanhóis. A aventura foi um fiasco. Três embarcações desertaram para se dedicar à pirataria, o restante foi obrigado a voltar por causa de uma tempestade. Encontrados pelos espanhóis, sobreviveram por milagre à escaramuça.

O Ark Royal, navio usado por Walter Raleigh em suas aventuras / Crédito: Domínio Público

Isso lhe custou caro. Por violarem as relações oficiais entre Espanha e Inglaterra, que estavam tentando negociar uma trégua, Gilbert e Raleigh foram exilados na Irlanda pela própria rainhaElizabeth. Lá foram encarregados de suprimir a Revolta de Desmond contra o domínio inglês.

Raleigh teve várias vitórias, ficando confiante a ponto de proclamar que a estratégia inglesa estava errada. Então foi convocado a Londres para se explicar diante do Conselho Real, arriscando a cabeça por causa de sua arrogância. Mas na corte Raleigh mudou de atitude, se mostrando elegante e persuasivo, chamando imediatamente a atenção da rainha.

Teúdo e manteúdo

A partir daquele momento sua fortuna começou a mudar. Ele mostrou saber como agradar a soberana, inventando, por exemplo, o costume de colocar seu manto no chão para ela pisar em cima. Algo que se tornou moda na Europa e sinônimo de cavalheirismo. Além disso, começou a compor poesias para Elizabeth, muitas com alto teor erótico.

Um dos passatempos favoritos dos dois era escrever poemas nos vidros embaçados das janelas: Raleigh começava com os primeiros versos e ia embora, e só depois chegava a rainha, que completava os últimos, para que ninguém desconfiasse. Londres inteira, obviamente, já sabia de tudo.

“Segundo algumas fontes eles eram amantes, mas não existem provas concretas disso. Com certeza eles flertavam o tempo todo, se tornando amantes verbais”, explica Aronson. De pobre soldado de província, Raleigh se tornou um homem muito rico. Um observador da época, Sir Robert Naunton, notou que Raleigh “parecia ter sido escolhido pela sorte para ser usado como bola de tênis, indo do nada até a grandeza”.

“Como uma personagem deShakespeare, ele teve que usar uma máscara, para parecer algo que ele não era e sobreviver. Uma atitude que ele, no final, acabou apreciando”, conta Aronson.

Nos dez anos seguintes Raleigh usou sua posição para servir a Inglaterra da melhor forma possível. Tentou ampliar os conhecimentos de navegação, a construção de barcos – especialmente pequenos e rápidos, em contraste com os espanhóis, que usavam enormes e lentos galeões.

Sem viajar ele mesmo, organizou a malfadada criação da Colônia de Roanoke, na Virgínia, em 1587 – na qual todos os colonos desapareceram. Nos anos 1590, o empresário voltou suas atenções para o sul. Planejou uma expedição para a Guiana, território do qual tinha ouvido falar de um prisioneiro espanhol, contando de uma grande cidade indígena cheia de ouro, perto da nascente do Rio Caroni.

Também caiu em suas mãos um mapa da região. “Raleigh juntou várias lendas já existentes, como aquela do ouro que os incas teriam escondido depois da chegada de Pizarro”, explica Aronson

“Mas o ponto é que ninguém sabia exatamente o que teria achado nesse novo mundo. Ninguém sabia nada dos incas, e todos procuravam um terceiro ou um quarto reinado. E isso parecia lógico, já que, se os espanhóis encontraram um primeiro e um segundo reino, poderia ter facilmente um terceiro ou um quarto.” O explorador achava que os espanhóis falharam em localizar o ouro.

Rumo ao sul

Quando recebeu a informação de que os espanhóis não tinham guarnições militares na atual região leste da Venezuela, Raleigh rapidamente montou uma frota de quatro navios para tentar um ataque-surpresa. E partiu em 1595 na busca de El Dorado. Após massacrar uma cidade espanhola, ele embarcou para dentro do Rio Orinoco.

Fez amizade com o cacique Topiawari, com o qual estabeleceu uma aliança. Esse lhe disse que uma rica civilização vivia do outro lado das montanhas, onde estavam cidades cheias de ouro. Logo, Raleigh se convenceu de que essa civilização era um ramo dos incas do Peru, e que o cacique deveria estar falando da lendária cidade de Manoa.

Começou a caçada a El Dorado. O filho de Topiawari se tornou guia dos ingleses, que penetraram em profundidade no território da Guiana, passando pelo Rio Caroni, chegando até o Monte Roraima, e fazendo alianças com todos os nativos que encontravam.

Provavelmente Raleigh foi o primeiro europeu a chegar até as Cataratas Ángel, o mais alto salto do mundo. Os exploradores enviados em busca de ouro trouxeram de volta pedras, que tinham que ser analisadas mais aprofundadamente em Londres para revelar se possuíam minério de ouro.

Por isso, e também pelo fato de que o período das chuvas se aproximava, Raleigh decidiu que era hora de retornar à Inglaterra. Sua expedição tinha percorrido mais de 700 quilômetros dentro da América do Sul. Ele prometeu aos índios a proteção da rainha e jurou que voltaria. Mas, ao regressar de mãos vazias, foi acusado de roubo, fraude e, extraoficialmente, de traição.

“A expedição fora financiada por muita gente, que perdeu muito dinheiro quando ele voltou para casa sem levar nada de volta. Isso deixou pessoas muito poderosas bastante irritadas”, explica Aronson. Preso novamente, em resposta às acusações, redigiu seu relato da viagem, o já mencionado A Descoberta do Grande, Rico e Belo Império da Guiana.

Nessa obra, Raleigh mesclou o real com o imaginário para criar um mito poderoso, e assim demonstrar que sua missão não tinha sido inútil. E, dessa forma, salvar seu precioso pescoço. O livro foi um grande sucesso.

Raleigh conseguiu evitar o carrasco e entrou para a História como o homem que acrescentou a Guiana às colônias inglesas. E apontou para o caminho de El Dorado. A sorte acabaria no final do século 16. Elizabeth começou a ficar doente, e, por não ter herdeiros, a coroa da Inglaterra passaria para Jaime da Escócia. Um rei católico e que prezava um melhoramento das relações com a Espanha. Tudo o que Raleigh odiava.

Em março de 1603 a rainha Elizabeth morreu. Sem oposição, e graças às tramas de Cecil, o rei Jaime chegou de Edimburgo para vestir a coroa em Londres. Enquanto passava pela Inglaterra, muitos nobres juraram lealdade.

A catastrófica viagem de Walter Raleigh com o seu meio-irmão Humprey Gilbert / Crédito: Getty Images

Mas não Raleigh, que queria manter o país em mãos inglesas, e não escocesas. Jaime não perdoou. Raleigh foi rapidamente subsistido como capitão da Guarda, seus privilégios foram revogados e seus conselhos, nunca solicitados, passaram a ser ignorados.

Ele perdeu o monopólio do vinho, sua principal fonte de renda, assim como sua propriedade em Sherborne e sua casa londrina. Logo foi também processado por um suposto complô contra o rei e novamente encarcerado.

Aguardando a sentença capital, Raleigh decidiu morrer com dignidade e calou-se. Mas o rei optou por não executá-lo, deixando a condenação pendente em cima de sua cabeça como uma espada de Dámocles, e mantê-lo preso na Torre de Londres.

Missão desesperada

Levaria muitos anos até a sorte novamente brilhar em seu favor. Em 1616 eclodiu um escândalo de corrupção na corte, quando se descobriu que muitos nobres recebiam propinas de Madri. O rei Jaime decidiu retomar as hostilidades com a Espanha. Raleigh imediatamente escreveu ao soberano, sugerindo uma nova expedição na Guiana, a qual provocaria muitos danos à Espanha e se pagaria sozinha graças às enormes riquezas que ele próprio tinha descrito em A Descoberta do Império da Guiana.

Depois de 13 anos de prisão e aos 64 anos de idade, velho, manco e sofrendo de malária, Raleigh foi libertado. Sua situação estava longe de resolvida, porém. O rei pendia entre ele e os espanhóis, que queriam sua cabeça. Foi assim que embarcou no Destiny em 1617 e zarpou em direção das Américas, ao comando de um esquadrão de sete navios.

“Foi uma missão guiada pelo desespero. Ou ele conseguia um sucesso, ou voltava para a Inglaterra e encarava a morte”, afirma Aronson. Quarenta e dois homens morreram na viagem e o próprio Raleigh passou um mês com fortes febres.

Depois de ter chegado à Guiana e encontrado seus antigos amigos indígenas, um de seus oficiais, o capitão Lawrence Keymis, seu amigo de longa data, desobedeceu a uma de suas ordens e liderou um ataque contra a cidade espanhola de São Tomé. Um erro enorme, pois violou o tratado de paz com a Espanha e também os termos do perdão real. Além disso, a investida foi tão improvisada que o próprio filho mais velho de Raleigh, Watt, morreu em combate. O líder da expedição não perdoou Keymis, que se suicidou logo depois.

Obviamente Raleigh não encontrou El Dorado, mas sofreu muitas baixas entre seus homens. Em junho de 1618 foi obrigado a voltar para a Inglaterra. Todos os seus oficiais tinham desertado, menos um, o capitão King. Muitos tinham regressado à Inglaterra, relatando que Raleigh tinha se tornado um pirata. Voltando para casa, esperava encontrar clemência por parte do rei. Mas, logo que chegou, foi expedido um mandado de prisão.

Escultura representando tradição de jogar tesouros em um lago como oferenda a uma deusa, que tornou-se posteriormente uma das origens da lenda de El Dorado / Crédito: Wikimedia Commons/ Museu do Ouro

Percebendo que esse seria o fim, Raleigh até pensou em fugir para a França, com a ajuda do capitão King, mas foi novamente traído e levado mais uma vez à Torre de Londres. Dessa vez não escapou do destino. Para apaziguar os espanhóis, em 29 de outubro de 1618, o explorador foi decapitado no pátio do Palácio de Westminster.

“Vamos rápido”, disse a seu carrasco. “A esta hora já começa a esfriar. E não quero que meus inimigos pensem que eu tremi de medo.” A condenação foi vista como um ato de inútil crueldade. Um dos juízes de seu caso afirmou: “A Justiça da Inglaterra nunca foi tão degradada e ferida como pela condenação do honorável Sir Walter Raleigh”.