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A grande greve de 1917: Levante anarquista

Há 100 anos, imigrantes encabeçavam um dos maiores levantes de trabalhadores da história do país

Márcio Sampaio de Castro Publicado em 09/07/2017, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Anarquistas italianos no Brasil - Wikimedia Commons
Anarquistas italianos no Brasil - Wikimedia Commons

Na virada do século 20, o Brasil havia se tornado o novo lar de cerca de 1 milhão de italianos. Fugindo de uma severa crise econômica no país natal, a grande maioria chegava para tentar a sorte nas fazendas do interior paulista ou nas fábricas de São Paulo. Alguns, entretanto, atravessavam o oceano Atlântico com uma outra missão: difundir o anarquismo. Enquanto seus conterrâneos sonhavam em enriquecer, os imigrantes anarquistas queriam mesmo era derrubar o capitalismo. Como sabemos hoje, eles não conseguiram. Mas deixaram aos trabalhadores brasileiros uma lição importantíssima: sem organização e luta, ninguém conquista seus direitos.

A palavra “anarquia” vem do grego e significa, literalmente, “sem governo”. A ideia de viver sem ter que obedecer a alguém talvez seja tão antiga quanto a própria obediência. Mas foi só em meados do século 19 que o anarquismo se tornou uma corrente de pensamento. Conforme a indústria se desenvolvia na Europa, essa ideologia se espalhava entre os trabalhadores. No Brasil, a industrialização era novidade – e os anarquistas italianos queriam, desde o começo, contagiar o operariado daqui com suas ideias revolucionárias.

Um desses anarquistas foi Oreste Ristori. Ele desembarcou no porto de Santos, no litoral paulista, em 1904, depois de uma rápida passagem pela Argentina. Nascido 30 anos antes, na região da Toscana, ele passara um bom tempo nas cadeias de seu país. O motivo foi seu envolvimento com ações como o incentivo a greves e a distribuição de panfletos contra a autoridade do Estado. A vinda ao Brasil era uma ótima oportunidade para fazer tudo isso de novo.

Ristori seguia os passos de um ex-companheiro de prisão: o também anarquista Gigi Damiani, que chegara a São Paulo em 1897. Naquele início de século, vários militantes da causa já estavam estabelecidos na capital paulista. Seu principal campo de atuação eram os bairros operários, como o Brás, a Mooca e o Belém, onde viviam e trabalhavam milhares de imigrantes. Submetidos a jornadas exaustivas, que muitas vezes alcançavam 16 horas por dia, os operários da indústria paulistana formavam o público ideal para o discurso anarquista. Segundo ele, os operários de todos os países deviam lutar, juntos, contra a opressão. Trabalhar para um patrão, obedecer a um governante, confessar-se a um padre: tudo isso acabaria quando o anarquismo conquistasse sua vitória.

Os donos das grandes indústrias paulistas sabiam que, cedo ou tarde, teriam que enfrentar as greves de operários, já comuns na Europa. Antecipando-se a isso, eles passaram a dar preferência a mulheres e crianças na hora da contratação. Além de ganhar menos, eles eram considerados mais fáceis de ser controlados. Mas isso de nada adiantaria para conter o movimento que estava por vir.

Lições libertárias

Os ideais anarquistas circulavam em diversos panfletos e jornais. Muitos deles eram escritos diretamente em italiano. Esse era o caso de La Battaglia, o periódico que Oreste Ristori e Gigi Damiani fundaram, ao lado de outros anarquistas, em 1904. Impresso em São Paulo, ele muitas vezes cruzava as fronteiras do estado. Ristori costumava viajar para divulgar o La Battaglia, percorrendo o interior paulista, o sul de Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Sua fama de grande orador precedia sua chegada. Sério, bradava contra a opressão dando baforadas no cachimbo. Mas, ao fim de cada discurso, Ristori se descontraía: arrumava um violão e abria uma roda para entoar cantos revolucionários.

Influenciados pelos italianos, os brasileiros também produziam periódicos anarquistas. Em 1905, Edgard Leuenroth botou nas ruas o jornal Terra Livre, feito em parceria com o português Neno Vasco. O editorial do primeiro número dizia: “Tomamos o nome de anarquistas libertários porque somos inimigos do Estado. Somos anarquistas porque queremos uma sociedade sem governos”. 


Inimigos do Estado

Proudhon e Bakunin fundaram o anarquismo

A esquerda Mikhail Bakunin e a direita Pierre-Joseph Proudhon / Wikimedia Commons

“Eu sou um anarquista.” Quando o francês Pierre-Joseph Proudhon escreveu essa frase no livro O que é a Propriedade?, de 1840, ele correu o risco de ser confundido com um baderneiro qualquer. Até então, o termo “anarquia” era tratado apenas como mais um sinônimo de desorganização. Mas Proudhon, um sofisticado intelectual, estava lançando as bases de uma nova doutrina política. Essencialmente, ele dizia que o fato de alguns homens trabalharem para outros era uma “fraude”, que só se mantinha graças à imposição das autoridades. Para acabar com essa exploração, o jeito seria acabar com o Estado e qualquer outra forma de governo centralizado. Mas, enquanto Proudhon acreditava que o fim do Estado deveria chegar de modo pacífico, seu principal discípulo, o russo Mikhail Bakunin, passou a defender a luta armada e a revolução. Ele lançou o Movimento Anarquista Internacional, em 1847, e se envolveu com agitações ao redor do mundo. Além dos capitalistas, Bakunin também se indispôs com os comunistas por não aceitar Estado algum – nem controlado pelos trabalhadores.


➽ Outro veículo importante para a propaganda anarquista eram peças de teatro, com textos vindos da Europa ou escritos aqui mesmo. A crítica social estava por todos os lados. “É claro que havia um certo maniqueísmo, pois o trabalhador era sempre bom e o patrão era sempre o vilão. E as peças anticlericais mostravam a Igreja defendendo os interesses do capitalismo explorador”, disse o anarquista Jaime Cubero à pesquisadora Endrica Geraldo, da Universidade Estadual de Campinas, num depoimento dado em 1994. O palco preferido para essas montagens, que ocorriam semanalmente, era o Teatro Colombo, que ficava no Brás.

A disseminação das ideias anarquistas também acontecia nas salas de aula. Numa época em que o governo brasileiro mantinha pouquíssimas instituições de ensino, surgiram as chamadas Escolas Modernas. Inspiradas no método do anarquista espanhol Francisco Ferrer y Guardia, elas misturavam meninos e meninas (então uma inovação), defendiam o fim dos exames e dos castigos e, principalmente, uma educação científica, em oposição ao ensino religioso.

A primeira escola moderna de São Paulo, a Escola Nova, foi criada no Brás em 1909. Na década seguinte, outras surgiram – na capital, no interior e em outros estados. “A ignorância era vista como um dos principais inimigos dos anarquistas”, diz a historiadora Edilene Toledo, autora do livro Anarquismo e Sindicalismo Revolucionário.“Estender a ciência aos pobres significava prepará-los para construir a sociedade futura.”

Parar para lutar

Em 1905, em boa parte graças à luta dos anarquistas, foi criada a Federação Operária de São Paulo, que reunia as associações de trabalhadores da cidade. Em abril do ano seguinte, o Rio de Janeiro recebeu o 1º Congresso Operário Brasileiro, encontro que é considerado a origem do sindicalismo no Brasil. Lá foram erguidas bandeiras como o fim do trabalho infantil e a diminuição da jornada de trabalho para oito horas diárias.

Reunidos no Rio, os anarquistas tiveram oportunidade de traçar planos para o futuro. O resultado não demorou a aparecer: no dia 1º de maio de 1907, eclodiu a primeira greve geral da história do Brasil. Os primeiros a parar foram os metalúrgicos da empresa americana Lidgerwood, que exigiam redução da jornada de trabalho. Operários de diversas áreas foram paralisando suas atividades e fazendo reivindicações semelhantes.

A reação das autoridades viria 14 dias depois, com a polícia invadindo a sede da Federação Operária. Documentos foram apreendidos e militantes que haviam participado da greve foram presos. Para punir os que eram imigrantes, o governo tinha uma nova arma: a recém-aprovada Lei Adolpho Gordo, que previa a extradição dos operários estrangeiros envolvidos com tumultos. Apenas no ano de 1907, cerca de 130 trabalhadores foram expulsos do Brasil.

A greve, que durou até meados de junho, conseguiu fazer com que muitas empresas adotassem as oito horas de trabalho. Mas a repressão fez com que anarquistas como Oreste Ristori se afastassem da militância, temendo ser presos. Foi só dez anos depois da greve geral que o Brasil voltou a ver uma manifestação operária de grandes proporções. Por causa da crise no comércio exterior causada pela Primeira Guerra, iniciada em 1914, os preços aumentavam, os alimentos sumiam das prateleiras e os salários diminuíam. Enquanto isso, os patrões voltaram a esticar as jornadas de trabalho.

Em junho de 1917, os 2 mil empregados do Cotonifício Crespi entraram em greve em São Paulo. No mês seguinte, a paralisação já havia atingido cerca de 15 mil operários, de vários setores. Em 9 de julho, os trabalhadores organizaram uma passeata. A polícia avançou sobre a multidão com seus cavalos e atirou. Antonio Martinez, um sapateiro, caiu morto. O assassinato revoltou ainda mais os trabalhadores: dias depois, o movimento se tornou uma greve geral com 45 mil pessoas paradas – praticamente todos os operários da capital paulista.

Trabalhadores protestando em uma fábrica de São Paulo, durante a greve de 1917 / Wikimedia Commons

Enquanto os anarquistas de São Paulo subiam nos palanques para inflamar os grevistas, o movimento atingia o Rio de Janeiro e o Paraná. Fábricas foram invadidas e depredadas, enquanto ocorriam novos confrontos com a polícia. Ainda em julho, um acordo permitiu que os operários voltassem ao trabalho. Tiveram a garantia de que seus direitos seriam respeitados e ganharam um aumento salarial de 20%.

Depois da greve, o governo fechou de vez o cerco contra os anarquistas. Em 1918, Gigi Damiani foi expulso do país (restabelecido na Europa, dedicaria-se a publicar textos que desaconselhavam a imigração para o Brasil). Para evitar o mesmo destino, Oreste Ristori fugiu para a Argentina. Já as Escolas Modernas não escaparam: sofreram uma campanha de difamação pública e foram fechadas na virada dos anos 1920.

O ano de 1917 trouxe, além da greve, outro acontecimento que marcou o declínio do anarquismo no Brasil. Foi a Revolução Russa, que fez com que os comunistas ganhassem espaço no operariado brasileiro. Enquanto os anarquistas pregavam a abolição imediata do Estado, os comunistas defendiam que o poder não acabasse de uma hora para outra, mas passasse às mãos dos trabalhadores. A vitória de Lênin e seus camaradas parecia mostrar que esse era o melhor caminho a ser seguido.

Após chegar ao poder, na chamada Revolução de 1930, Getúlio Vargas deu o golpe de misericórdia na influência dos anarquistas. Ele decidiu não reprimir abertamente os operários, mas atraí-los para perto de si. Os sindicatos foram absorvidos pelo Estado e “amansados”: como eles agora eram órgãos oficiais, não podiam se opor ao governo. Enquanto isso, a polícia de Vargas caçava os militantes que podiam ameaçar a nova ordem. Uma das vítimas foi Oreste Ristori. De volta da Argentina, ele se opunha à aproximação entre o Brasil e a Itália do fascista Mussolini. Em abril de 1936, Ristori foi preso. Em junho, foi enviado para seu país natal – sete anos depois, seria descoberto pelos fascistas na cidade de Empoli e fuzilado.

Nos anos 1930, enquanto o anarquismo era abandonado pelos operários, os palcos do Brás ainda mostravam as peças dos militantes. Mas elas também estavam com os dias contados. Em 1937, Vargas iniciou a ditadura do Estado Novo. Uma de suas medidas foi a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, que, entre outras coisas, escolhia o que os teatros podiam exibir. É claro que todas as montagens anarquistas foram banidas. Naquele Brasil autoritário, o sonho libertário dos imigrantes foi deportado até da ficção.


O laboratório

No século 19, o Brasil teve uma comunidade anarquista

Em abril de 1888, durante uma viagem a Milão, dom Pedro II soube que o italiano Giovanni Rossi pretendia criar uma colônia anarquista na América. Meses depois, preocupado em atrair imigrantes ao país, o imperador escreveu a Rossi, autorizando-o a levar sua ideia adiante e cedendo-lhe uma porção de terra no interior do Paraná. O convite foi aceito. Os 150 homens e mulheres só chegaram depois do fim da monarquia, em 1890, mas puderam fundar a Colônia Cecília. Como o grupo de Rossi era formado principalmente por trabalhadores urbanos, lidar com a terra não era seu forte. Apesar das dificuldades para a subsistência e das desavenças internas, a colônia se manteve por quatro anos. A vida sem líderes acabou quando um morador conhecido como Gariga se ofereceu para vender toda a produção de milho da colônia, mas acabou fugindo com o dinheiro. Diante do golpe, as famílias desistiram de viver juntas.


Saiba mais

Oreste Ristori – Uma Aventura Anarquista, Carlos Romani, 2002

Anarquistas, Graças a Deus, Zélia Gattai, 2000