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Matérias / GoT

Como a política de Game of Thrones se compara com a da Idade Média?

O sangue corria solto, as damas tinham poder e incesto na realeza era a coisa mais comum do mundo

Pedro Ivo Publicado em 14/04/2019, às 03h00

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Incesto não tinha nada de mais - HBO/Reprodução
Incesto não tinha nada de mais - HBO/Reprodução

Game of Thrones é um banho de sangue na TV. Sua violência, porém, não tem nada de gratuita. 

A Idade Média foi uma das épocas mais carniceiras da História. Estudos mostram que as mortes por esmagamento da face, por exemplo, eram tão comuns quanto as provocadas por lâminas. Uma demonstração nítida do grau de brutalidade no cotidiano da população. No medievo, o europeu não costumava passar dos 35 anos. 

Os senhores feudais impunham sua vontade entre os camponeses, judeus e hereges eram queimados pela Inquisição, cristãos e muçulmanos se matavam em nome da fé. 

O pau comia solto, e a saga se aproxima da faceta "Idade Média má", expressão do historiador Jacques Le Goff. "A violência fazia parte da vida das famílias de todas as classes", diz Mark Bailey, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra. Durante a Baixa Idade Média (entre os séculos 11 e 15), as contendas por terra eram intensas. ➽


Romantismo vs Realismo

Humanistas como o poeta Francesco Petrarca enxergaram o intervalo entre os séculos 5 e 14 como um buraco negro entre a Antiguidade racionalista, de gregos e romanos, e seu próprio tempo, precursor do Renascimento. No século 19, houve uma troca de sinais no exagero: o medievo passou a ser encarado como uma era de ouro pelos artistas do romantismo, cheia de homens honrados e valores nobres. 
Ivanhoé (1819), de Walter Scott, é um clássico dessa tendência. Outro que botou as lendas medievais nas alturas foi o compositor Richard Wagner, que inspirou a trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. As Crônicas de Gelo e Fogo fazem parte dessa tradição de fantasia medieval, na qual cabem jogos de videogame e o RPG Dungeons & Dragons. No balanço de trevas e luz, o certo é que a Idade Média nos legou modos de vestir, as universidades, as línguas da Europa e a divisão política do continente. "Apesar dos pesares, foi um período muito rico", diz Paul E. Szarmach. "Lentamente, o mundo ocidental caminhou para o formato que tem hoje."

➽ A era da guerra

Associada à perseguição religiosa, essa instabilidade produzia muitas guerras. "Os camponeses eram obrigados a lutar para defender seus senhores. Mal equipados, eles iam para a linha de frente", diz o historiador Patrick Geary, da Universidade da Califórnia. Um episódio sangrento do fim da Idade Média influenciou diretamente a criação de dois núcleos de protagonistas de As Crônicas de Gelo e Fogo. 

Em 1455, estourou na Inglaterra a Guerra das Rosas - por 30 anos, duas das principais famílias do país duelaram pelo trono. A referência é explícita: no mundo real, lutaram as casas de York (simbolizada pela rosa branca) e Lancaster (a vermelha). Na ficção, são nomes semelhantes: Stark e Lannister. "O autor cita um caso conhecido, mas os conflitos entre famílias poderosas se tornaram muito comuns quando o poder começou a se concentrar em reinos", afirma Bailey. 

As donzelas e o poder

Na Idade Média, claro, as mulheres jamais conheceram tanto poder, mas a ficção permite alguma identificação com figuras como Cersei Lannister. Na vida real, mudanças iniciadas no medievo ajudaram a definir o papel da mulher na sociedade atual. 

Surgiam a repressão à poligamia - deixava de existir no norte da Europa o macho com um time de esposas - e o hábito de a mulher dizer "sim" no instante do casamento (a escolha era da família, mas o consentimento era simbólico). Para Le Goff, houve avanço real na condição das mulheres, que conseguiram ocupar um espaço que não tinham na Antiguidade. 

As da nobreza, que não podiam sequer sair sozinhas nos jardins dos castelos, tinham influência dentro deles. As mais pobres driblavam proibições e se tornavam curandeiras, benzedeiras e parteiras. Aliás, ser criança naquele período era muito diferente. A labuta começava por volta dos 10 anos. No início da saga, Eddard Stark leva Bran, seu filho de 7 anos, para ver a decapitação de um desertor. Queria que o herdeiro se acostumasse à brutalidade dos maiores. Uma cena que, fatalmente, aconteceu na vida real.

Incesto real

Quem ficou desconfortável com certa relação entre tia e sobrinho - ou a entre irmãos, que vem da primeira temporada - é melhor saber que isso também foi comum. Podia haver muitos nobres, mas famílias reais eram reduzidas. E a realeza preferia casar com a realeza, porque era uma cartada diplomática muito mais poderosa que ganhar a fidelidade de um mero barão ou visconde através dos lençóis. 

Algumas monarquias levavam o incesto real às últimas consequências. Os faraós egípcios, exatamente como a família Targaryen, geralmente casavam-se com suas irmãs. A lição vinha dos deuses, com Osíris, o primeiro faraó, desposando sua irmã Ísis. No Egito Ptolomaico de Cleópatra os reis eram gregos, mas seguiam a mesma tradição. 

O incesto real teve consequências. Perfeitamente ilustradas em Carlos II da Espanha:

Ele sofria de sérios problemas físicos e mentais e só foi um caso entre muitos

Às portas da Renascença

Passando-se num mundo mágico, não há uma época exata na vida real para comparar com Game of Thrones. Mas, pelas roupas, sofisticação das cidades e armaduras, parecem estar no século 15. O finzinho do finzinho da Idade Média. 

Numa passagem lá atrás, na temporada 1, o príncipe Joffrey reclama do rei Robert à mãe, a rainha Cersei. Ele critica a atenção paterna dada ao chefe dos Starks, Eddard. Acha-os primitivos. Para o jovem, quando ele subir ao trono e controlar os Sete Reinos, a solução será aumentar os impostos para o clã e forçá-lo a fornecer homens para as tropas reais. Ao subir ao trono e fez exatamente isso, ignorando suas alianças feudais para concentrar o poder em suas mãos. 

Na trama, o fim do feudalismo acabou com uma torna envenenada e uma cara roxa. Na vida real, deu certo: um rei fortalecido diante das soberanias pulverizadas dos senhores feudais, amparado por um Exército regular sob seu comando. Tal processo de formação de nações foi bastante tumultuado - com algumas exceções, como Carlos Magno (747-814) e Luís 9º (1214-1270), durante a Idade Média os reis tiveram pouco poder para além dos limites de suas propriedades. 

Perto do fim do período, a situação foi se modificando. Na França, por exemplo, os castelos fortificados de nobres muito poderosos eram destruídos a mando do rei. A primeira nação a conseguir completar o itinerário de concentração de poder na figura real foi Portugal - que, assim, saiu na frente nas grandes navegações. Não fosse isso, este texto talvez estivesse em outra língua. 

Já a insistência de Daenerys Targarien em fazer de John Snow seu vassalo - dobrar o joelho - lembra não um lugar que manteria as relações feudais de suserano e vassalo até o início do século 19: O Sacro Império Romano, que de romano não tinha nada. Ficava na Alemanha e seu líder, o kaiser - vindo de césar, numa pronúncia bem mais próxima do latim Caesar - era um imperador que mandava em reis. 


AH especial Game of Thrones - Parte III

+ Parte I: A muralha, os patrulheiros e os selvagens de Game of Thrones têm origem na História real

+ Parte II:  Como os combates de Game of Thrones se comparam com os da Idade Média?