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Grafite: Arte ban(d)ida

A polêmica acompanha a pintura urbana desde seu nascimento

Texto Bianca Nunes / Ilustrações Paula Gabbai Publicado em 30/08/2017, às 20h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Grafite em Berlim - Shutterstock
Grafite em Berlim - Shutterstock

Na foto abaixo, de 1973, o menino Anthony Cordero aparece junto com um grupo de amigos. Eles tinham entre 11 e 13 anos e mostravam os desenhos que faziam pelos muros e ruas de Nova York. As pinturas eram variações gráficas de seus nomes, apelidos e, frequentemente, faziam referências a gangues - eram os grafites. Anthony cresceu, casou, tornou-se pai e policial. E, em sua primeira ronda como autoridade pública, prendeu justamente... um grafiteiro. A ironia da história sintetiza, em grande medida, as controvérsias que cercam, na sociedade moderna, uma das mais antigas atividades do homem: o desenho em paredes.

Anthony Cordeiro no alto á direita segurando um desenho / Foto: Jon Naar 

O grafite que conhecemos atualmente, ilegal e gravado geralmente com assinaturas pelas ruas da cidade, começou de fato nos anos 1970, com crianças e jovens nova-iorquinos que, como Anthony, pintavam seus apelidos de maneira estilizada. Mas, muito antes deles, a humanidade já desenhava em paredes e muros. Os homens primitivos usavam restos de ossos ou pedras para gravar imagens de lutas ou caçadas nas paredes das cavernas, como as encontradas nas grutas de Lascaux, na França.

Na Grécia antiga, anotações ao redor do mercado público de Atenas mostram desde exercícios para treinar o alfabeto até complicadas mensagens comerciais. E, em Pompeia, no Império Romano, escavações revelaram muito da vida cotidiana na cidade, por meio de registros de slogans eleitorais e até descrições obscenas, nas paredes de lugares públicos.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a propaganda nazista usou pinturas em muros para incentivar o ódio contra judeus e opositores. A resistência também tirou proveito da tática. O movimento de jovens alemães Rosa Branca, que lutava contra o regime de Hitler, além de panfletos, pintava seus slogans nas paredes. Os grupos estudantis dos anos 1960 e 1970 também grafitaram para transmitir sua mensagem de insatisfação.

"Na Paris de maio de 1968, jovens lançaram protestos nas paredes da Universidade de Sorbonne e em outros muros dos arredores do Quartier Latin. As sentenças viraram clássicos das grandes manifestações jovens. ""É proibido proibir", "a anarquia sou eu", "a imaginação toma o poder", "abolição do trabalho alienado". Com essas inscrições, os estudantes afrontaram as políticas dominantes e enviaram recados audaciosos e bem direcionados", diz Celia Maria Antonacci Ramos, autora do livro Grafite, Pichação & Cia.

Protesto do gueto

Não se pode falar em um início oficial do grafite. Mas, ao analisar as figuras e pinturas que vemos, é possível apontar os Estados Unidos do fim dos anos 1960 como o berço do grafite moderno. Foi após virar febre entre os guetos de Nova York que a moda de desenhar o nome estilizado se espalhou pelas metrópoles do mundo. Os grafiteiros adotaram novas técnicas e materiais e passaram a desafiar limites, pintando lugares praticamente impossíveis.

Um dos primeiros a fotografar essa onda de grafitagem americana foi o fotojornalista Jon Naar. Após observar os grupos de jovens que se arriscavam pela cidade, ele produziu um livro de fotos chamado The Faith of Graffiti ("A fé do grafite"). No prefácio, o escritor Norman Mailer comparou os desenhos de rua às obras do pintor italiano Giotto, um dos precursores do Renascimento pelo uso inovador da perspectiva. "O livro fez um estardalhaço. Fui acusado na grande imprensa de tornar o vandalismo belo", afirma Naar, hoje com 96 anos. Seu livro rodou o mundo e serviu de base para grupos estrangeiros observarem o que era feito nos EUA.

Uma das fotos presentes no livro The Faith of Graffiti / Foto: Jon Naar

Os grafiteiros da época eram em sua maioria jovens hispânicos e negros. Segundo Naar, quando perguntava a eles o porquê de fazerem aquilo, respondiam que era para fugir da violência dos guetos. "Eles pintavam nos trens do metrô, e você via aqueles nomes percorrendo a cidade toda. Era muito perigoso para aquelas crianças entrar naquela vida. Mas era uma forma de protesto, de rebeldia."

Os nomes pintados (conhecidos como tags) geralmente não eram os verdadeiros. Para não serem pegos, os autores inventavam apelidos. "Isso era um importante código de identificação entre os autores", diz Naar. Os números também faziam sentido. Cay 161, por exemplo, significa que Cay morava na rua 161. Um numeral em letras romanas, como em Star III, denotava a ordem de utilização do apelido - no caso, o terceiro a usar o nome Star.

Os materiais eram geralmente tintas spray roubadas de lojas. A competição consistia em ver quem pintava no lugar mais alto, em mais ônibus e trens. A moda logo se espalhou por outras cidades dos Estados Unidos. "Em meados da década de 1980, não havia um único trem que não tivesse sido pintado com sprays, de cima a baixo, pelo menos uma vez", escreveu Nicholas Ganz no livro O Mundo do Grafite. Para evitar os grafiteiros, as autoridades de Nova York levantaram grades em torno de pátios ferroviários e aumentaram a vigilância.

Alguns grafiteiros ficaram famosos pela audácia e pelo número de inscrições. Cornbread chegou a pintar seu nome em um elefante de um zoológico da Filadélfia. Em entrevista para um site sobre grafite, ele diz que pintou o jato da banda Jackson 5. "Escrevi meu nome em tantos lugares que ninguém mais aguentava ver", disse ele.

A tomada da Europa

Nos becos onde se juntava a galera do grafite, começou a despontar o hip hop. Para Naar, foi o grafite que influenciou o hip hop e não o contrário. "São acontecimentos que andavam juntos, dividiam os mesmos espaços." No começo da década de 1980, a moda atravessou o Atlântico e os novos alvos passaram a ser os trens europeus. Nesse caso, contudo, Ganz escreveu que a cena do grafite europeu só decolou com o advento do hip hop. "A maioria do grafite na Europa se baseava no modelo americano, que continua sendo o mais popular. Com o hip hop, o grafite foi introduzido em quase todos os países ocidentais."

Aos poucos, as tags ficaram mais elaboradas, com cores e letras maiores. Surgiram grandes desenhos, as pieces (abreviação de masterpiece, obra-prima) e personagens, marcados pela sátira e pelo hiper-realismo. Com peculiaridades de cada lugar, os grafites começam a ser encarados em algumas cidades como parte da sua identidade e não mais apenas como inimigos da cena pública. De acordo com Sérgio Poato, autor do livro O Graffiti na Cidade de São Paulo e sua Vertente no Brasil: Estéticas e Estilos, "o que diferencia o grafite da arte tradicional é que o território pelo qual ele está gravado é parte da própria estrutura da obra."

No Brasil, não foi diferente. O grafite sofreu influência da cultura de gueto de Nova York, mas a maioria do que foi feito por aqui tem raízes e história própria. Nos anos 1970, o artista americano John Howard veio a São Paulo e começou a pintar nas paredes. Apesar de não ser brasileiro, ele foi um dos primeiros artistas a usar a rua da cidade - e inspirou olhares atentos.

A vez da São Bento

Numa época de repressão e ditadura, alguns jovens se arriscavam para transmitir nos muros da cidade seu recado de indignação. "Os primeiros artistas e rebeldes que escreveram palavras de ordem, nos anos 60 e 70, tinham uma relação diferente com o tempo do ato de pintar da que se tem hoje.", diz o pesquisador e escritor Sérgio Poato.

Mas aí veio a abertura política em 1984 e, com a menor repressão, também surgiram os desenhos despretensiosos e assinados. A história é contada por Otávio Pandolfo, que, com seu irmão Gustavo, compõe a famosa dupla osgemeos. "Lá para 1984, passou no cinema um filme sobre o break [a dança do movimento hip hop] e o grafite. Aquilo começou a fazer as cabeças da época. O pessoal que curtia se encontrava no sábado à tarde na estação de metrô São Bento, no centro de São Paulo. Nós tínhamos entre 13 e 14 anos e pintávamos no nosso bairro, o Cambuci. Além da gente, tinha os Roomeys, Bad e Defkids, Guerra de Cores, Vitché, entre outros."

Integrantes do grupo que nos anos 80, se reunia na estação São Bento / Arquivo

Otávio lembra também da turma dos skatistas que grafitavam, o Tinho, o Binho e o Espeto, vindos da zona norte da cidade. Desse encontro de talentos, o grafite saiu ganhando. "Aprendemos muito com eles. Juntamos forças e começamos a intervir na cidade. Aí passamos a trabalhar realmente na rua. Pintávamos aos domingos de dia, para as pessoas verem o que estávamos fazendo", afirma o artista.

Na outra ponta do grafite paulistano, estavam os estudantes de arquitetura Matuck e Zaidler, que contracenaram com o artista etíope Alex Vallauri - recém-chegado, após temporada em Nova York e Buenos Aires. "Eles observavam pequenos estabelecimentos e, com máscaras estêncil, programavam uma animação com personagens do cinema - o Gordo e o Magro -, dos quadrinhos do belga Hergé [Tintin] e da própria cidade, a exemplo da Rainha do Frango Assado, trabalho que aludia às rotisserias paulistanas e que acabou na Bienal de São Paulo, em 1987", diz a professora Celia Ramos. Outro grupo famoso foi o TupiNãoDá, formado por jovens de classe média e estudantes da Universidade de São Paulo (USP), que pintavam em becos, casas e muros abandonados.

Em 24 de janeiro de 2017 grafiteiros paulistanos acordaram com muros cinzas. João Dória (PSDB), atual prefeito de São Paulo, iniciou uma das ações previstas no programa "Cidade Linda", onde funcionários cobriram com tintas cinza os grafites e pichações presentes nos principais pontos da cidade, como a Avenida 23 de Maio e o Beco do Batman na Vila Madalena, conhecido como um dos pontos mais conhecidos dos grafiteiros. Com o programa, apenas artistas selecionados pelo próprio prefeito tem autorização para pintar em pontos específicos de São Paulo.

Galerias mundo afora

Na opinião de Otávio, a vinda de artistas de fora trouxe muita informação nova para o grafite do Brasil. E foi essa troca que deixou osgemeos conhecidos no exterior - eles já pintaram na Tate Modern, importante galeria de arte contemporânea de Londres, e no castelo escocês de Kelburn, em Ayrshire.

Trabalho de osgemeos no castelo Escocês de Kelbourne em 2007 / Reprodução

Mas, para ele, o grafite brasileiro não é apenas uma cópia adaptada do que se faz nos Estados Unidos. "A gente faz algo bem brasileiro, temos isso de buscar uma coisa nossa, de raiz", diz. O traço nacional se incorpora, assim, ao movimento que aproxima cada vez mais grafiteiros e artistas plásticos contemporâneos. Em Nova York, as primeiras exposições ocorreram ainda na década de 1970. Dez anos depois, Londres, Paris e Amsterdã abriam espaços em suas galerias para o grafite, com obras que chegaram a valer milhares de dólares. O mundo se rendia aos traçados rebeldes das latas de spray.


Saiba mais

O Mundo do Grafite, Nicholas Ganz, 2008

The Faith of Graffiti, Jon Naar, 2007

Grafite, Pichação & Cia, Celia Maria Antonacci Ramos, 1994

O Graffiti na Cidade de São Paulo e sua Vertente no Brasil: Estéticas e Estilos, Sérgio Poato, 2006