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Segredos na latrina de um bordel

Encontrados por arqueólogas, objetos abandonados na 'casinha' ajudam a reconstruir surpreendentes detalhes da vida das 'madames' e suas funcionárias no século 19

Anna Goldfield / Trad. Letícia Yazbek Publicado em 08/03/2018, às 14h53 - Atualizado em 15/10/2018, às 15h38

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'No Moulin Rouge', de 1892 - Henri de Toulouse-Lautrec
'No Moulin Rouge', de 1892 - Henri de Toulouse-Lautrec

Para Jade Luiz, estudante de graduação em Arqueologia na Universidade de Boston, arqueologia histórica é uma questão de investigação. Analisando documentos históricos e objetos achados no banheiro de um antigo bordel próximo ao bairro de North End, em Boston, ela está reconstruindo as vidas de prostitutas que viviam por volta de 1850.

Louisa Cowen, por exemplo, que em 1856 assumiu o cargo de cafetina do bordel da Endicott Street 27-29, tipicamente se apresentava como uma viúva respeitável, de acordo com pesquisas e menções sobre o bordel. Devido ao seu status, ela provavelmente usava roupas pretas e joias sombrias e escuras. A lápide de Louisa a nomeia esposa de Henry Cowen, um pintor de casas de Boston que morreu antes dela. Não se sabe se os dois foram oficialmente casados. O que Luiz sabe é que Louisa Cowen se tornou uma mulher muito bem-sucedida.

Os artefatos encontrados no banheiro da Endicott Street são bem preservados, e a coleção é vasta. De acordo com Luiz, "é como se alguém tivesse vasculhado os armários e colocado no banheiro tudo o que não fosse possível vender". Ela acredita que esse depósito de bens domésticos foi utilizado quando a propriedade mudou de dono, em 1876. Uma garrafa de vidro com essa data gravada foi encontrada na pilha de objetos. Apesar de esses objetos terem sido descartados como lixo, agora eles oferecem pistas sobre etiqueta pessoal, ambiente doméstico e a vida diária das mulheres que trabalhavam na Endicott Street.

Nos anos 1850, o bairro de North End, que havia sido sofisticado no passado, se tornou o centro de pequenos negócios e trabalhadores imigrantes. Os bordéis da Endicott Street eram estabelecimentos mais respeitáveis do que aqueles que ficavam próximos ao porto, a algumas quadras de distância, que atendiam uma clientela mais grosseira. Alguns dos clientes da Endicott Street 27-29 eram provavelmente homens de negócio que chegavam por meio da estação de trem próxima ao local.

Durante o século 19, bordéis eram negócios comuns no bairro de North End, em Boston / Wikimedia Commons

Para as mulheres da Endicott Street, demonstrar ser limpas, cheirosas e saudáveis era de suma importância. Escovas de dentes com cabos feitos de ossos, frascos de perfumes americanos e franceses, potes de loções e enxaguantes bucais e várias seringas de vidro que devem ter sido usadas para higiene íntima.

Quando perguntei a Luiz qual das peças da coleção era sua favorita, era carinhosamente descreveu dois pequenos copos de vidro. Eles provavelmente eram mantidos em gaiolas de pássaros que ficavam penduradas na sala de visitas da casa da Endicott Street - ou os pássaros eram companhia de uma das mulheres, que os deixava em seu quarto. Os pequenos copos de vidro dão uma ideia de como eram os quartos da casa da Endicott Street, com pássaros cantando no ambiente perfumado e pouco iluminado.

Potes de loções e enxaguantes bucais são alguns dos objetos encontrados na casa da Endicott Street / Michael Hamilton / Departamento de Arqueologia da Universidade de Boston

E enquanto a maioria dos moradores de pensões dessa época reclamavam da quantidade de ensopados e assados baratos, e expressavam seu desejo por um frango assado, a comida do bordel da Endicott Street era "um pouco mais chique", diz Luiz. "Não se parecia com a comida típica das pensões".

Considerando as centenas de sementes de cereja e pêssego, e a grande variedade de nozes e ossos de animais, é certo que as mulheres - e talvez os seus convidados - se alimentavam bem. O aroma de costela e pé de porco, e das ocasionais aves assadas, provavelmente se misturavam aos perfumes usados pelas residentes do bordel.

Luiz afirma que, às vezes, se apega a pequenos fatos por anos, e aos poucos vai juntando fragmentos de informação para recriar histórias. Essas histórias oferecem um contraponto à percepção da prostituição no passado. "Essas mulheres tendem a ser retratadas de duas formas", ela afirma, sobre os registros históricos sobre bordéis e prostituição nos Estados Unidos e na Europa. "Ou há uma censura moralista e um desejo de salvar essa mulheres perdidas, ou elas são erotizadas para o prazer das pessoas".

A história de Cowen, Luiz continua, é o exemplo perfeito da mulher que tomou uma decisão econômica para entrar em uma profissão em que podia prosperar. No século 19, uma prostituta podia ganhar, em uma só noite, a mesma quantidade de dinheiro que um trabalhador de uma fábrica ganhava em uma semana. Depois de se mudar do estado rural de Vermont para a Endicott Street, em Boston, Cowen rapidamente prosperou. Quando morreu, em 1865, ela havia quitado a hipoteca da fazenda da família em Vermont e pôde deixar bens, roupas e joias para os irmãos. De acordo com seu testamento, Cowen deixou "todas as suas joias pretas" - sinais de sua viuvez - para uma das irmãs.

Quando Luiz encontrou uma cruz preta entre algumas joias perdidas ou descartadas nos depósitos, ela se perguntou sobre seu significado e origem. "Não tenho certeza, mas gosto d epensar que talvez essa peça pertenceu a Louisa, como parte de sua coleção de joias pretas", ela explica. "Esse é meu outro artefato favorito."

Os objetos que fizeram parte do dia a dia das mulheres que viviam na Endicott Street 27-29 são um lembrete da humanidade dessas pessoas. Ao reconstruir as histórias das mulheres que viveram e trabalharam em Boston antigamente, de certa forma trazê-las de volta a vida, Luiz deseja mostrar que as prostitutas eram - e são - pessoas de verdade.

Anna Goldfield, Ph.D. em Arqueologia pela Universidade de Boston, é especialista em analisar restos animais em locais arqueológicos, com ênfase na dieta dos neandertais e seres humanos modernos. Atualmente, está trabalhando em um projeto que usa estratégias de preservação de alimentos do Ártico como forma de entender o comportamento dos neandertais e seres humanos modernos em climas frios no leste e norte da Europa. Goldfield é ilustradora do The Neanderthal Child of Roc de Marsal: A Prehistoric Mystery

Artigo publicado originalmente em Sapiens, sob a licença CC-BY-ND 4.0.