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Matérias / Brasil

Com 62 barcos e mais de 10 mil a bordo, a família real fugiu de Portugal para o Brasil

O trajeto foi cheio de percalços, incluindo uma epidemia de piolhos que obrigou a princesa Carlota Joaquina a raspar a cabeça

André Luis Mansur Publicado em 29/11/2018, às 09h00

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Chegada de D. João VI a Salvador, de Candido Portinari - Reprodução
Chegada de D. João VI a Salvador, de Candido Portinari - Reprodução

Se atravessar o oceano num barco à vela até hoje exige uma senhora coragem, imagine 200 anos atrás. No início do século 19, cruzar o Atlântico era um desafio repleto de perigos. Principalmente, levando-se em conta que os navios usados na mudança da corte para o Brasil, em 1807, eram verdadeiras “latas-velhas” – desconfortáveis, vulneráveis no caso de combate e carentes de reparos.

Ainda naquele 29 de novembro, dia da partida de Lisboa, a esquadra portuguesa – composta por 19 navios – encontrou-se com a frota britânica que a escoltaria até o Brasil – outras 13 embarcações. Essa deve ter sido uma cena monumental, de ficar gravada para o resto da vida na memória de quem a testemunhou: 32 barcos de guerra, mais uns 30 navios mercantes, preparando-se para a travessia oceânica. Às três horas da tarde, o comandante da Armada britânica, Sidney Smith, ordenou uma salva de 21 tiros de canhão. Estava marcado o início da penosa jornada da família real em direção à colônia.

Rico sofre

Algo entre 10 mil e 15 mil portugueses – cerca de 5% da população do país – estavam embarcados naqueles navios. Na maioria, era gente importante, muito afeiçoada aos luxos da nobreza. No Afonso de Albuquerque, navio em que viajava Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigaria todas as mulheres – incluindo a princesa – a raspar o cabelo. Ratos eram abundantes nas embarcações, o que só aumentava o risco de uma epidemia. Por causa da alimentação precária, distúrbios intestinais tornaram-se comuns. Para os nobres portugueses em fuga, a situação não poderia ser mais constrangedora.

Dom João e sua mãe, a rainha Maria I, estavam no navio Príncipe Real – acompanhados de Pedro e Miguel, os dois filhos do príncipe regente com Carlota. Quatro das seis filhas do casal viajavam com a mãe, no Alfonso de Albuquerque. E as outras duas filhas seguiam no Rainha de Portugal. Ainda havia uma tia e uma cunhada de dom João, embarcadas no navio Príncipe do Brasil.

Navegação arriscada

No dia 8 de dezembro, perto da ilha da Madeira, uma violenta tempestade fez estragos consideráveis. Na esquadra portuguesa, mastros foram quebrados e velas, rasgadas. A péssima condição de visibilidade obrigou as embarcações a parar, sobretudo porque aquela era uma área de navegação arriscada, cheia de rochedos submersos. A frota dispersou-se e uma parte dela seguiu direto para o Rio de Janeiro. Alguns navios britânicos já tinham voltado para a Europa, a fim de reforçar o cerco à Lisboa, invadida por tropas de Napoleão.

Representação da saída da frota em direção ao Brasil Wikimedia Commons

Quando as esquadras alcançaram a linha do equador, novo imprevisto: uma calmaria tornou a frear o avanço, submetendo passageiros a dias de sol escaldante. Casos de insolação e desidratação multiplicaram-se. Até que a calmaria se foi, a viagem seguiu e 1807 chegou ao fim – uma triste passagem de ano para a corte portuguesa.

Cajus e Pitangas

Depois de tanta carne seca e biscoito, imagine qual não foi a alegria de dom João e sua comitiva ao avistar, já bem perto da costa brasileira, um pequeno barco não identificado. Era o Três Corações, um bergantim enviado por Caetano Pinto de Miranda, então governador de Pernambuco, para dar as boas-vindas à Coroa portuguesa. Dentro dele, um carregamento de frutas tropicais, como cajus e pitangas, e muitos recipientes com refresco. Aquele certamente foi um momento de glória – dom João e seus asseclas tirariam a barriga da miséria.

Àquela altura, o príncipe regente já havia determinado que o destino da frota seria Salvador, e não o Rio de Janeiro. Em 23 de janeiro de 1808, 55 longos dias depois de zarpar de Lisboa, a comitiva finalmente desembarcou na Bahia, para uma escala que duraria pouco mais de um mês. Estavam todos cansados e debilitados. Mas o primeiro desafio tinha sido superado: o oceano Atlântico, agora, protegeria a corte da fúria de Napoleão.

Purgatório em alto-mar

Eram terríveis as condições a bordo do Príncipe Real, navio que trouxe dom João ao Brasil. Os banheiros particulares eram exclusivos de oficiais e pessoas mais importantes, o resto da tripulação contava com sanitários públicos e livres de qualquer higiene. A presença de animais - porcos, galinhas, vacas e cabras que garantiam a alimentação dos passageiros mais ilustres - também não ajudavam em nada na higiene.

Enquanto poucos se alimentavam de carne fresca, ovos e leite, a ração servida à maioria dos passageiros era formada por carne salgada, biscoitos, lentilhas e ervilhas desidratadas. A água era salobra e o vinho, péssimo. Resultado: desarranjos intestinais freqüentes.

Os suprimentos eram mantidos em barris, com todo o asseio possível, - o peso dos barris ajudava a manter a estabilidade do navio -, mas acabavam atacados por ratos, que roíam a madeira. Além disso, os barris de biscoito acomodados no porão acabavam contaminados por vermes. Para eliminá-los, usava-se peixe morto: eles eram atraídos pela carcaça, até que os biscoitos ficassem “próprios para o consumo”. 

Os navios portugueses eram antigos e careciam de uma série de reparos. Eles deram trabalho de sobra para carpinteiros e ajudantes durante toda a travessia. Rachaduras, quando surgiam, eram preenchidas com estopa e piche. 

Embarque da família real portuguesa no cais de Belém, em 29 de novembro de 1807 Wikimedia Commons

Os chamados “navios de linha” (capazes de entrar na linha de combate) podiam ter até 100 canhões, alinhados nas laterais de cada deque e geralmente de três calibres diferentes. Cada canhão era operado por uma equipe de até seis homens. A pólvora era armazenada em compartimentos no fundo, para evitar ser atingida durante um combate. Manuseá-la era tarefa de alto risco, reservada a especialistas.

Dom João viajou na cabine do comandante, na popa. Era o lugar mais confortável do navio, com gabinete de trabalho, sala de refeições e quarto. Até banho quente dom João tomava – em uma bacia, com água da chuva aquecida num fogão. A corte teve de se acomodar em redes estreitas e muita gente deve ter dormido no chão. Os deques reservados aos nobres passageiros eram mal ventilados e não garantiam a menor privacidade aos ocupantes.

Qualquer descuido da tripulação podia resultar numa tragédia (como a disseminação de uma epidemia). Por isso, a disciplina era mantida com rigor. Castigos corporais, como chibatadas, eram punições rotineiras. O risco de infecções também era altíssimo. As cirurgias mais comuns eram as de amputação.

Sofrimento no Atlântico

Os perrengues enfrentados pela família real em 55 dias de viagem

29 de novembro de 1807 - O embarque

A esquadra portuguesa zarpa do cais de Belém, em Lisboa, e encontra-se ainda bem perto da costa, com as 13 embarcações britânicas que farão sua escolta até o Brasil.

8 de dezembro de 1807 - A tempestade

Perto da ilha da Madeira, o mau tempo obriga os navios a parar. Uma tempestade destroi velas e derruba mastros, enquanto a falta de visibilidade torna a navegação perigosa – a área é repleta de rochedos submersos. Algumas embarcações, no entanto, retomam a viagem e seguem direto para o Rio de Janeiro. A frota acaba se dividindo.

8 de dezembro de 1807 - A calmaria

Ao cruzar a linha do equador, uma calmaria submete os passageiros a dias inteiros de sofrimento sob um sol escaldante. Mas dois navios portugueses e três britânicos encontram ventos mais a oeste e seguem viagem até o Rio de Janeiro. Elas transportam duas filhas de Carlota Joaquina e duas irmãs de Maria I.

23 de janeiro de 1808 - A chegada

Cinquenta e cinco dias depois de zarparem de Lisboa, dom João e Carlota Joaquina finalmente desembarcam no Brasil. Em Salvador, permanecerão por pouco mais de um mês, antes de se fixarem em definitivo na cidade do Rio de Janeiro.