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Da brasa ao microondas: a cozinha no brasil

O calor tropical fez os portugueses trocarem fogões e panelas pelas técnicas indígenas de preparação de alimentos. Mas a aparência da cozinha brasileira acabou moldada pelas influências estrangeiras.

Flávia Pinho Publicado em 01/09/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Você abre a geladeira, tira o pacote de frango já cortado, desossado e temperado, põe na panela, liga o gás e, em poucos minutos, o almoço está pronto. Isso quando o prato congelado não sai do freezer direto para o microondas. Agora imagine essa mesma cena há pouco mais de 400 anos. A cozinheira corria atrás da galinha que ciscava no terreiro e, depois de caçá-la, cuidava de matar, depenar e cortar o bicho. Aí acendia a fogueira, que ficava sob um telheiro rudimentar no quintal, apoiava o caldeirão sobre o fogo, se agachava e começava a cozinhar. Era assim que funcionavam as primeiras cozinhas brasileiras.

Não que os portugueses tenham trazido tais hábitos da terra natal. Pelo contrário: desembarcaram por aqui com a bagagem repleta de fogões portáteis, tachos, chaleiras e outros utensílios bem mais moderninhos. Os que vinham das cidades do norte de Portugal, então, conheciam a chaminé, recurso indispensável para quem instalava a cozinha no interior das casas com o intuito de aquecer o ambiente. Mas, tão logo chegaram ao Brasil, os colonizadores foram, aos poucos, incorporando o jeito indígena de cozinhar. No tórrido calor dos trópicos, fazia mais sentido. A localização da cozinha, por exemplo, bem longe da casa, tinha seus motivos. Animais de pequeno porte circulavam livremente por ali e o preparo da comida não primava pela higiene. “Era uma cozinha suja. O arroz tinha que ser descascado no pilão. Como não havia azeite e óleo, a banha era feita em casa, derretendo-se o toucinho por três ou quatro horas. Até o sabão era feito no mesmo lugar”, conta o arquiteto Carlos Lemos, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor de Cozinhas Etc. Sem refrigeração, as sobras apodreciam rapidamente. Fica fácil imaginar que os odores não eram lá dos mais agradáveis. Sem falar no calor e no risco de incêndio que uma fogueira representa – quanto mais longe da sala e dos quartos, portanto, melhor. Não havia sequer paredes, apenas uma cobertura para proteger da chuva.

As técnicas de cocção também eram 100% indígenas. “A índia foi a primeira empregada doméstica dos lares brasileiros, numa época carente de donas-de-casa brancas. Sempre que podia, ela resistia aos costumes do colonizador e impunha os seus”, explica Lemos. Para cozinhar, usavam a trempe, três pedras colocadas diretamente sobre o chão, onde se apoiava o caldeirão de ferro ou de cobre. Para assar, peixes e caças iam parar no jirau. Na definição de Luís da Câmara Cascudo, em História da Alimentação no Brasil, tratava-se de “armação de varas a determinada altura e distância do lume que tosta pelo calor e não pelo contato”. A técnica, emenda o autor, precursora do churrasco, permitia que a carne se conservasse por várias semanas. E ainda havia uma terceira forma de preparo. “No Sul, os índios também utilizavam um tipo de forno escavado no chão, forrado com folhas de bananeira, onde a comida era enterrada e o fogo ia por cima”, conta Lemos. Os utensílios? Obra dos índios também. Hábeis na modelagem da argila, eles se inspiravam nos formatos trazidos pelos portugueses e produziam potes, jarros, moringas, tigelas que funcionavam como pratos e até uma ou outra panela.

A PASSOS LENTOS

Ao longo do século 18 até meados do século 19, nossos hábitos alimentares e, conseqüentemente, nossas cozinhas sofreram poucas – mas importantes – transformações. O telheiro do quintal se aproximou da casa, encostou na parede dos fundos, mas permaneceu um apêndice menosprezado, erguido com material de segunda, freqüentado apenas pelos escravos e, depois, pelos empregados. Em Viagens ao Interior do Brasil, de 1809, John Mawe descreve a cozinha de uma fazenda abastada como “mero buraco sujo, enegrecido pela fuligem e pela fumaça, que impregnava o ambiente, com o chão lamacento”.

O fogão, pelo menos, saiu do chão. Virou uma estrutura alta, maciça, construída de barro e pedra, bem parecido com os fogões a lenha que ainda são utilizados no interior. E a água, antes usada com parcimônia pela dificuldade de transporte, começou a correr com mais fartura. No século 18, as cidades grandes já contavam com aquedutos, que levavam a água até chafarizes públicos, onde os escravos a recolhiam. Enquanto isso, no campo, instalavam-se canaletas de bambu do rio mais próximo até o quintal, tornando mais prática a lida diária.

Os utensílios de mesa passaram a exibir algum refinamento à moda européia, sobretudo após a transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Os ricos, fossem eles da zona rural ou urbana, dispunham de bules e açucareiros de prata e pratos de porcelana. De tão raros e caros, porém, esses objetos viravam herança. Citações a talheres eram freqüentes nos inventários. Afinal, seu uso, nos grandes centros da Europa, já estava disseminado desde o século 17. Por aqui, no entanto, esse arsenal era muito mais um símbolo de status. Garfos, por exemplo, que já tinham o formato que possuem hoje, com três ou quatro dentes (antes, traziam apenas dois e tinham a função de fixar o alimento, não de levá-lo à boca), eram usados com a mesma freqüência dos dedos, inclusive em ocasiões de cerimônia. Com um agravante: provar do prato do vizinho de mesa era considerada uma prova de amizade. Nas regiões de difícil acesso, aonde os carregamentos vindos da Europa nem sempre chegavam, era hábito cada convidado levar sua própria faca de casa.

As transformações mais significativas, aquelas que mudariam radicalmente não só a arquitetura da cozinha como também o uso que se dava ao cômodo, ganharam força somente na segunda metade do século 19. Foi a partir dessa época que a cozinha começou a se parecer com o ambiente que conhecemos hoje. E exclusivamente nas residências da elite – o dinheiro do café, da borracha e do açúcar permitia que as novidades européias, oriundas da Revolução Industrial, começassem a viajar para o Brasil. Chegavam com muitos anos de atraso, mas chegavam.

MAIS LIMPEZA

Com a invenção da torneira, em 1800, e a construção da rede de abastecimento de água em domicílio, iniciada 76 anos depois, no Rio de Janeiro, o preparo dos alimentos se tornou uma prática mais asseada. Já não era necessário deixar a cozinha do lado de fora da casa. Havia ladrilhos hidráulicos laváveis para revestir o piso e até uma incipiente coleta de lixo, lançada em caráter experimental, no Rio, em 1885. Sem falar na geladeira, uma invenção que fez toda a diferença no dia-a-dia doméstico. Não chegava a ser um eletrodoméstico. “Eram armários de madeira, revestidos por dentro com cortiça e folha-de-flandes. Havia uma prateleira no alto, onde se apoiava a pedra de gelo (produzida em fábricas) comprada por assinatura , e uma canaleta que conduzia a água do degelo para um balde. O entregador passava todo dia, bem cedinho, de porta em porta”, conta Lemos.

Nas primeiras décadas do século 20, deu-se outra enxurrada de novidades. Em 1901, o palácio do governo de São Paulo instalou o primeiro fogão a gás de que se tem notícia no Brasil. E a moda não custou a pegar, aposentando de vez os velhos fogões a lenha. “Eram importados e vendidos pelas próprias companhias de gás, que exploravam a iluminação pública”, conta. Em 1905, a companhia canadense The Rio de Janeiro Tramway Light & Power Limited começou a produzir energia elétrica, a princípio para iluminação e fins industriais. Poucos anos depois, os americanos já conheciam a revolucionária geladeira elétrica, invenção que só desembarcou aqui em 1928. Nem de longe se parecia com as geladeiras atuais – bem pequenininha, ainda tinha boa parte do espaço interno ocupado pelo motor. Mas ninguém chiava. Era o começo de uma era de facilidades há muito sonhadas: liquidificador, batedeira, espremedor de frutas e torradeira logo vieram na carona.

A ERA DA COPA-COZINHA

A popularização dos eletrodomésticos gerou uma senhora transformação na arquitetura das residências brasileiras. A cozinha, que até o começo do século 20 era quente e desconfortável, sinônimo de árduo trabalho braçal, se tornou um ambiente mais fresco, cheiroso e convidativo. As donas-de-casa, que antes só entravam ali quando obrigadas, começaram a passar mais tempo ao redor do fogão. A década de 1950 é o símbolo da nova cozinha. Revestida de ladrilhos e azulejos, forrada de armários planejados, com portas e gavetas de laminado colorido, ela foi se tornando uma extensão da sala de estar. Nascia a copa-cozinha, uma tradição brasileira que sobreviveu por décadas, local preferido da família de classe média. Ali, mãe e filhos almoçavam, ouvindo rádio, e as crianças faziam os deveres de casa. À noite, porém, quando o chefe da família chegava, o jantar era invariavelmente servido na sala de jantar – lugar de homem ainda era longe da cozinha. O mesmo valia para as visitas. A cozinha podia até ser bonita (e cara), mas estranhos jamais eram convidados a conhecê-la. A tradição de enxergá-la como um ambiente de serviço permanecia inalterada e só começaria a desaparecer na década de 80. Quem tem mais de 30 anos se lembra da famosa cozinha americana: uma abertura na parede criava uma espécie de balcão que a integrava parcialmente com a sala. Apartamentos cada vez menores estimulavam a mudança, mas nada se compara ao papel decisivo desempenhado pelo microondas, esse sim um divisor de águas na história da cozinha. Ele custou um bocado a dar o ar da graça por aqui. Inventado em 1946, já era comum nas casas americanas nos anos 60, mas só entrou nas residências brasileiras em 1985. Sem a sujeira e os odores produzidos pelas formas tradicionais de cocção, a cozinha já não precisava ficar escondida.

Alguns anos mais tarde, outra alteração importante no modo de viver dos grandes centros teve reflexos lá no entorno do fogão. Ruas cada vez mais inseguras, trânsito complicado e dinheiro quase sempre curto transferiram o lazer para dentro de casa. Em meados dos anos 90, cozinhar para os amigos virou moda. “Começaram então a aparecer as aberturas mais generosas, com portas de correr”, explica o arquiteto Marcelo Tramontano, coordenador geral do Nomads – Núcleo de Estudos de Habitares Interativos da USP. O movimento seguinte foi iniciativa da indústria. Já que a cozinha estava à vista, era necessário equipá-la com aparelhos mais bonitos. E por que não investir um pouco mais no visual? Arquitetos e decoradores, antes contratados apenas para embelezar os cômodos nobres da casa, passaram a se debruçar sobre as cozinhas. Em 2000, elas já eram modernas, 100% integradas aos ambientes de estar, com ilhas de preparo que permitem cozinhar e conversar ao mesmo tempo. Adquiriram o status de sala de visitas e foram rebatizadas de cozinhas gourmet. Quem pode investe em dobro: constrói uma convencional, para o uso no dia-a-dia, e outra mais bacana, que entra em cena em ocasiões especiais, pilotada exclusivamente pelo proprietário mestre-cuca. Para os que vivem em apartamentos pequenos, as construtoras inventaram uma saída: a cozinha gourmet do condomínio, nova versão do batido salão de festas.

Como será a cozinha do futuro? Bem diferente, apostam os estudiosos. Há quem jure que, dentro de alguns anos, estaremos cozinhando quase como os Jetsons, em aparelhos com inteligência própria conectados em rede. Pode ser – e os fabricantes de eletroeletrônicos têm investido pesado nas inovações tecnológicas, muitas delas ainda restritas às exposições. Mas outras transformações estão em curso. Para Tramontano, a palavra-chave daqui a algumas décadas será mobilidade. “A cozinha será móvel, uma espécie de módulo compacto sobre rodízios, capaz de ser transferida e entrar em operação em qualquer cômodo da casa.” Em breve, ele emenda, não teremos mais os ambientes com funções pré-definidas, encerrados entre quatro paredes, mas espaços flexíveis, que vão mudar de acordo com o uso. E o melhor é que ninguém vai ter que esperar muito para conferir.

Cozinha colonial

Afastada da casa, protegida da chuva por um reles telheiro, a cozinha do Brasil-Colônia era suja e malcheirosa – até o sabão era fabricado ali. Em função do calor, os portugueses logo abandonaram os hábitos europeus e incorporaram técnicas, utensílios, receitas e mão-de-obra indígenas. Comiam na varanda, sempre fresquinha, e com razão passavam longe do lugar onde a comida era preparada. Água corrente era artigo de luxo. Quem não tivesse um riacho por perto lavava tigelas, potes e panelas em água parada.

Panela equilibrada

De cobre ou ferro, o caldeirão era apoiado sobre três pedras, estrutura que os portugueses chamavam de trempe. A cozinheira trabalhava de cócoras.

Forno subterrâneo

Havia duas formas de assar: no jirau, ripas de madeira trançadas e elevadas sobre o fogo, ou no forno escavado no chão, forrado com folhas de bananeira.

Pia improvisada

Nem sempre a cozinha ficava perto do riacho, onde as escravas gostavam de lavar louça e roupas. O jeito era apelar para as gamelas de barro, que funcionavam como bacias.

Design português

Eram os índios que esculpiam os utensílios de argila. A inspiração, contudo, vinha dos modelos de tigelas, potes, panelas e moringas trazidos pelo colonizador.

Século 19

Após séculos de mesmice, a cozinha experimentou um salto de desenvolvimento na segunda metade do século 19. E começou a se parecer, pelo menos um pouco, com o ambiente cheiroso e acolhedor que conhecemos hoje. As inovações da Revolução Industrial, financiadas pelo dinheiro do café, da borracha e do açúcar, facilitaram a vida e mudaram para sempre a rotina das cozinheiras. Os donos da casa, porém, continuavam longe do fogão – a área de serviço permanecia exclusiva dos serviçais, lá nos fundos da constru&ccedccedil;ão.

Chegou a água

A construção da rede de abastecimento de água, em 1876, acabou de vez com a obrigação de buscar água no chafariz. Não havia mais desculpa para sujeira.

Fogo sob controle

O gás, usado na iluminação pública desde 1854, chegou à cozinha brasileira em 1901. Os fogões eram importados, trazidos pela própria concessionária.

Modos à mesa

O hábito de usar garfo, faca e colher custou, mas finalmente pegou por aqui. Até o século 18, comer com as mãos era uma prática aceitável socialmente.

Sai uma gelada

As primeiras geladeiras não passavam de armários. Lá dentro, grandes barras de gelo, compradas por assinatura, mantinham bebidas e alimentos fresquinhos.

No século passado

A popularização da eletricidade, nos primórdios do século 20, transformou radicalmente a cozinha. Em poucos anos, um arsenal de eletrodomésticos chegou ao Brasil, fazendo com que o ambiente de serviço adquirisse outro status. Nos anos 50, bonita e bem decorada, a cozinha anexa à copa já era um dos ambientes mais usados pela família. Mas foi só na década de 80 que ela começou timidamente a se abrir para a sala. Em 2000, escancarada, sofisticada e exibida, ganha nome e sobrenome: cozinha gourmet.

Suco vapt-vupt

Contemporâneo da batedeira e do espremedor de frutas, o liquidificador é um eletrodoméstico antiquado. Noventa anos depois, é praticamente o mesmo.

Bolo sem canseira

Misturar massas era tarefa ingrata. Inventada em 1916, a batedeira virou sonho de consumo mas só chegou ao Brasil 20 anos depois.

Microondas

Divisor de águas na história da cozinha (e da culinária), é considerado uma das maiores invenções do século. À casa do brasileiro, chegou em 1985.

Era high-tech

O futuro já chegou. Tem geladeira com internet, fogão e microondas programáveis e conectados ao celular... Será que, daqui a alguns anos, a cozinha funcionará sozinha?

Saiba mais

Livros

Cozinhas Etc, Carlos Lemos, Perspectiva, 1976

Aborda a evolução da cozinha brasileira e seu papel na arquitetura residencial, do período colonial até o século 20.

The Kitchen in History, Molly Harrison, Charles Scribner’s Sons (NY), 1972

Descreve ambientes, utensílios e hábitos relacionados à cozinha, da Pré-História à década de 70. Eletrodomésticos: Origens, História e Design no Brasil, Claudio Lamas de Farias, Eduardo Ayrosa, Gabriela Carvalho, José Abramovitz e Silvia Fraiha, Fraiha, 2006

Com textos e fotos, conta a evolução de fogões, geladeiras, rádios, etc. desde a pré-Revolução Industrial até o presente.