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Culinária japonesa: Uma saborosa tradição, né?

Há mil anos, a culinária japonesa era apenas uma cópia do que se fazia na China e na Coréia. Saiba como ela se transformou numa arte sofisticada - e como os imigrantes a trouxeram para o Brasil

Flávia Pinho Publicado em 01/02/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Quando a primeira leva de imigrantes japoneses desembarcou no Brasil, em 1908, trouxe um punhado de hábitos esquisitos. Imagine a cara dos caboclos paulistas diante da cena de pessoas comendo com o hashi (aquelas duas varetas usadas para levar o alimento à boca). Um século depois, algumas das tais esquisitices orientais acabariam integradas ao dia-a-dia dos brasileiros. Comer com pauzinhos virou moda até em lanchonetes e palavras como sushi e sashimi já fazem parte do vocabulário por aqui.

O que pouca gente sabe é que a comida japonesa que conhecemos é bastante moderna em relação à história milenar do Japão. Até o século 10, praticamente tudo o que se comia no país, como o arroz e o macarrão, era preparado de acordo com os costumes dos vizinhos, principalmente chineses – a grande potência da época – e coreanos. Foi nos séculos seguintes que as influências estrangeiras passaram a ser transformadas e adaptadas às condições e preferências locais. Nascia, finalmente, a autêntica gastronomia japonesa.

O grão e o pescado

Embora o peixe cru seja apontado com freqüência como a mais perfeita tradução da culinária japonesa, ele demorou bastante a ganhar espaço no prato. A base de tudo foi o arroz. Desde o século 3 a.C., o Japão cultiva regularmente esse grão em campos alagados. Foi em função dele que a sociedade rural japonesa se formou e que a economia do país se estruturou – no fim do século 19, os impostos nipônicos ainda eram pagos em arroz. Até hoje esse alimento, que deu origem a tantos rituais e cerimônias, simboliza a bonança e a fartura. “A refeição tem duas categorias de comida, o arroz e os outros pratos. Naturalmente, é melhor que ambos sejam deliciosos, mas se for preciso decidir qual terá prioridade, a tradição manda que seja o arroz”, diz o antropólogo japonês Naomici Ishige no livro The History and Culture of Japanese Food (“A história e a cultura da comida japonesa”, inédito no Brasil).

Não é de estranhar que a existência ou não de arroz por perto tenha pautado também a emigração. Os japoneses que deixaram o país no século 20 em busca de melhores condições de vida podiam até abrir mão da convivência com a família. Mas viver sem arroz era pedir demais. “As colônias japonesas que inicialmente se fixaram no norte da Bahia e em Pernambuco, onde não havia a tradição de plantar arroz, acabaram se mudando para São Paulo”, afirma Koichi Mori, professor do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo e autor de uma pesquisa sobre a culinária dos imigrantes japoneses. Como a espécie encontrada aqui era o popular tipo agulha, bem diferente da variedade que fazia sucesso no Japão, o jeito foi improvisar. “Os imigrantes passaram a prepará-lo à moda japonesa, sem qualquer tempero”, diz Mori.

Formado por um arquipélago, o Japão tem uma costa bastante extensa. E, por ser um ponto onde as correntes marítimas quentes do Sul se encontram com as águas frias do Norte, ela permite a existência de uma variedade enorme de peixes. Não por acaso, o japonês ainda é o povo que mais come peixe no mundo. E, além das condições naturais, há outro fator para a consolidação desse hábito alimentar: a religião. “O tabu de comer carne de mamíferos, originário do budismo, colocou o peixe na posição de principal alimento animal por muitos anos, e sem dúvida foi responsável por fazer do Japão a nação de amantes de peixe que é hoje”, escreve Naomici Ishige.

Mas, se o hábito de comer peixe é antigo, o pescado raramente chegava fresco às mesas do antigo Japão. Durante séculos, versões fermentadas em sal, algumas intragáveis para o nosso paladar, foram desenvolvidas como forma de preservar grandes quantidades de peixe após o fim da temporada de pesca. Em algumas dessas técnicas de conservação, caso do shiokara, o peixe era reduzido a uma pasta. Em outras, como o milenar narezushi, o pescado, misturado a arroz cozido, permanecia inteiro por um ano ou mais dentro de potes lacrados. A palavra “sushi” originalmente se referia a esse tipo de peixe longamente fermentado.

Só muito tempo depois, mais precisamente no fim século 17, uma nova receita começaria a aproximar o sushi da versão que comemos hoje. Consistia de uma combinação de arroz e peixe com sabor ácido causado pela adição de vinagre. Mais tarde, no século 19, esse novo sushi tornou-se popular nas ruas da atual Tóquio com o nome de nigiri-zushi. “Foi o estágio final na transformação do sushi de alimento preservado em fast food”, afirma Ishige.

O sashimi contemporâneo também é bem diferente do original. No século 8, textos já citavam uma receita chamada namasu: fatias de peixe cru eram servidas num molho feito de vinagre e missô (pasta de soja). O peixe já vinha misturado ao molho e ninguém reparava se tinha sido bem ou mal cortado. Só no século 15 o japonês passou a preparar o sashimi como faz hoje: peixe cru fatiado com maestria, para que o chef possa exibir toda sua habilidade de cortar e arrumar o peixe.

Para manter o costume de comer peixe, os imigrantes que chegaram ao Brasil em 1908 tiveram que aceitar algumas modificações. Como as colônias se estabeleceram nas plantações de café do interior de São Paulo, a quilômetros do mar, os únicos pescados disponíveis eram bacalhau salgado e sardinha em conserva. “Eles assavam um pouquinho e comiam com arroz, mas logo começaram a se encaminhar para Santos, na direção do litoral”, afirma o professor Mori. Enquanto isso, hábitos brasileiros, como o desjejum à base de café e pão, foram sendo assimilados.

As visitas e o chá

A partir do século 15, quando o comércio com outros países cresceu, uma enxurrada de novos sabores vindos do Ocidente (entre eles a abóbora e a pimenta) tomou conta do Japão. O açúcar, que antes era importado da China como medicamento, passou a ser comprado em grandes quantidades e, finalmente, produzido internamente. Em pouco tempo, receitas de bolos e doces desenvolvidas na Europa começaram a circular nas cozinhas japonesas, com uma ou outra modificação local.

No século 16, os navegantes portugueses e espanhóis trouxeram ainda mais novidades em seus navios. E acabaram por deixar marcas definitivas na culinária japonesa, principalmente nos textos dos menus. A palavra “tempura”, que dá nome a uma receita com alimentos empanados, por exemplo, muito provavelmente vem do português. “Há várias teorias da etimologia portuguesa. Uma aponta para a palavra tempero”, diz Ishige. E tem mais. O hikado, prato feito de atum em cubos, rabanete, cenoura e batata-doce cozidos com molho shoyu, vem do português “picado”. E algumas das guloseimas mais conhecidas do japonês também têm nomes portugueses, como konpeitô (confeito) e karumera (caramelo).

Na gastronomia japonesa, o século 16 também foi marcado por outro divisor de águas, a criação da cerimônia do chá. Inventado pelo monge zen Sen no Rikyû (1522-1591), o ritual mudaria para sempre os hábitos do japonês à mesa. No início, as reuniões para o chá eram cheias de ostentação. Rikyû criou regras em que prevaleciam a simplicidade e a eliminação do supérfluo. Logo essas características saíram do ato de tomar chá e se transmitiram para as refeições como um todo.

Banquetes extravagantes, por exemplo, foram banidos do Japão. “Os pratos do jantar medieval eram inteiramente cobertos de comida, empilhada simetricamente”, escreve Ishige. Com o ritual do chá, o alimento ganhou outro visual. “Passou a ser arrumado com cautela, valorizando a beleza dos espaços vazios, um princípio que sobrevive hoje como a base da estética da cozinha japonesa.”

Cozinha fechada

Se o século 16 foi de portas abertas às influências estrangeiras, o período a seguir seria de isolamento. Durante o período Edo (ou Tokugawa), entre 1603 e 1867, o Japão foi dominado pelos líderes militares conhecidos como xoguns. Eles baniram o cristianismo e expulsaram os estrangeiros do país, fechando as fronteiras para o comércio internacional. Foi quando se consolidou a gastronomia do Japão. “Esse período assistiu ao surgimento do que são hoje considerados os valores supremos da culinária tradicional japonesa”, afirma Ishige. “A maioria dos pratos tradicionais comidos hoje data desse período de reclusão.” Hábitos refinados, nascidos e aprimorados nas cozinhas da aristocracia, foram gradualmente chegando a outros níveis da sociedade. Nesse tempo também surgiram os primeiros restaurantes japoneses.

A partir de 1853, os Estados Unidos começaram a pressionar pela reabertura do Japão ao comércio internacional. Em 1868, com a Restauração Meiji (que tirou o poder dos xoguns e o devolveu à família real), os japoneses redescobriram o mundo. Ingredientes até então tidos como exóticos, como a carne bovina e o leite, entraram na dieta cotidiana. Utensílios e móveis ocidentais, como os talheres e a mesa de jantar, foram gradativamente incorporados. E até o sushi ganhou versões moderninhas, enroladas em algas (nori), com direito a frutas e outros ingredientes coloridos.

O período de modernização coincidiu com a criação de regras de etiqueta que, ainda hoje, são respeitadas em ocasiões formais. “As normas mais rígidas prevaleceram até a Segunda Guerra, em todas as classes sociais”, diz Luci Fujimoto, especialista em etiqueta. No presente, a rigidez não é tanta e os encontros entre amigos são tão descontraídos quanto uma happy hour à brasileira. Mas, antes de se sentar à mesa com um autêntico japonês, vale a pena aprender a usar o o-hashi de maneira correta. Ou você vai pagar um mico milenar.

Um ritual, várias receitas

Veja uma típica refeição familiar da elite japonesa durante o período Edo (entre 1603 e 1867)

Nem tão light assim

No século 16, quando o tempurá surgiu, frito por imersão, desafiou a tradição japonesa de ausência de gordura na comida. Mas, em meados do século 19, sob influência ocidental, os japoneses passaram a apreciar receitas do gênero.

Essa é minha

Até hoje, é comum que cada membro da família tenha sua própria tigela de cerâmica. Elas sempre foram mais usadas que os pratos, pois facilitam o uso do o-hashi, especialmente no caso do arroz.

Cada um na sua

Não havia sala de jantar. As mesas portáteis permitiam que a refeição fosse feita em qualquer cômodo, mas sempre seguindo a hierarquia. O chefe de família ficava no lugar de honra e os empregados do lado oposto.

É massa!

O macarrão conquistou o Japão a partir do século 7. Era feito e cortado em tiras por hábeis fazendeiros. No século 16, o udon, longo e oco, tornou-se bastante popular. Quase toda casa tinha uma mesa de pedra para seu preparo.

Chazinho no fim

O chá se disseminou no Japão no século 14. Um abade chamado Eisai foi convocado para curar a ressaca do shogun Sanetomo. Ele indicou a bebida como remédio. Funcionou – graças ao efeito da então desconhecida cafeína.

Perto do chão

As mesas baixas individuais surgiram no século 8. Em refeições com vários pratos, cada pessoa usava duas ou mais delas, sentada sobre uma almofada. No período Edo, um jantar de primeira classe tinha cinco mesas.

Dá uma proteína aí

O primeiro relato a respeito do tofu, uma espécie de queijo de soja, é de 1183: proibidos de comer carne, os monges tinham nele uma fonte de proteína. A técnica de fabricação foi trazida da China.

Dois pauzinhos

Conheça melhor as varetas que servem de talheres

Manipular as hastes do o-hashi com habilidade é uma questão de honra – usado desde o século 8, o acessório foi privilégio da nobreza durante séculos. “Ele não deve ser mantido na boca, usado para empurrar objetos sobre a mesa ou apontar na direção de pessoas e muito menos espetado dentro das tigelas de arroz – este ritual é realizado quando morre alguém”, diz Luci Kinue Fujimoto, especialista em etiqueta japonesa. Uma regra básica: só a vareta de cima se move.

Precioso líquido

O molho de soja brasileiro é bem diferente do japonês

“A cozinha japonesa não é possível sem shoyu”, afirma o antropólogo japonês Naomici Ishige. Feito de soja, escuro e bem salgado, o molho de soja foi criado por volta do século 16. Já o missô, versão mais pastosa do molho, é mais antigo (do século 8), mas não tão famoso. Ambos sempre foram usados como tempero, adicionados ao peixe e aos vegetais, ou ainda dissolvidos em vinagre. No século 18, porém, o missô passou a ser usado exclusivamente como sopa – o que ocorre ainda hoje. Até o começo do século 20, toda cidade japonesa tinha sua própria fábrica de shoyu, enquanto o missô costumava ser feito em casa. Os japoneses que se mudaram para o Brasil logo deram um jeito de produzir ambos aqui também. Em 1915, o imigrante Eitaro Kanda inaugurou sua fábrica em Santos, com produção anual de 18 mil litros dos dois produtos. Mas a receita não era fiel à original – foi preciso adaptá-la às matérias-primas disponíveis. “As versões mais comuns eram o shoyu de tamari, fabricado com o soro do missô que ficava no fundo do barril e caramelo, e o shoyu de feijão”, afirma o professor Koichi Mori. Em 1996, o Brasil contava dez fabricantes de shoyu. E, curiosamente, o molho produzido aqui ainda é bem diferente do japonês. “Enquanto o original leva soja, trigo e sal, o brasileiro trocou o trigo por uma mistura de milho, melaço de cana e glutamato. O resultado é um produto mais salgado, que no Japão é considerado molho inglês”, diz Mori.

Cenário culinário

Fique por dentro de uma cozinha do Japão medieval

Sob pressão

No Japão da Idade Média, surgiu uma panela exclusiva para o preparo do arroz: a kamado. Funda, era feita de ferro e trazia uma pesada tampa de madeira – o que a transformava numa precursora da panela de pressão. Era encaixada no fogão a lenha e seu desenho bojudo fazia com que o calor se concentrasse no fundo, impedindo que a água caísse no fogo mesmo quando a tampa era levantada.

À moda do samurai

Se os alimentos são comidos com pauzinhos, tê-los bem cortados é crucial. O manuseio das facas, chamadas de hôchô, foi bastante aprimorado no período Heian (794-1192), quando os anfitriões demonstravam sua habilidade com lâminas para distrair os convidados. Nos restaurantes do Japão, o conjunto de facas não é do estabelecimento, mas do chef – há um modelo para cada finalidade.

Kampai!

Beber saquê envolve um ritual cuidadoso

Para um japonês, o saquê não é uma mera bebida. É um nobre alimento líquido. Ele já era fabricado artesanalmente no Japão, a partir de arroz triturado exclusivamente por mãos femininas, no século 8. Duzentos anos depois, cerca de 15 tipos de saquê eram produzidos para a corte japonesa. Os banquetes oficiais eram divididos entre o momento de comer e o de beber – depois de tudo, se servia o saquê. Hoje, entretanto, ele costuma chegar à mesa primeiro. Depois vem a comida e, por último, o chá verde. “Por ser uma espécie de vinho de arroz, o japonês encara o saquê e o arroz como a mesma coisa e evita ter os dois juntos na boca”, diz o antropólogo japonês Naomici Ishige. As regras de etiqueta com o copo são rígidas. É proibido, por exemplo, inclinar o corpo em direção ao copo e, nas ocasiões formais, convém segurá-lo com as duas mãos. “Para o oriental, beber saquê é um gesto nobre que deve ser reverenciado”, ensina Luci Kinue Fujimoto, especialista em etiqueta japonesa. Um pouco mais descontraído é o brinde. Nesse momento, vale usar só uma das mãos e dizer kampai – que significa “saúde”.

Saiba mais

Livro

The History and Culture of Japanese Food, Naomici Ishige, Kegan Paul, 2001

Conta, com muitos detalhes, a trajetória da cozinha japonesa – da pré-história até os dias de hoje.