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Ecos da Normandia

Visitar a região no norte da França onde ocorreu a invasão aliada em 1944 é uma fascinante aula de História

Flávia Ribeiro e Fábio Varsano Publicado em 01/02/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

A paisagem rural da Normandia é belíssima. Cercas vivas, pomares repletos de maçãs, vaquinhas preto-e-branco em toda parte. Nem parece que, pouco mais de 60 anos atrás, a região estava no meio de uma guerra – e os soldados comentavam como era particularmente horrível o cheiro das vacas mortas apodrecendo. A bela e tradicional arquitetura das cidades normandas também torna difícil imaginar a destruição e o sofrimento que ali eram moeda corrente em 1944, depois do Dia D, a invasão aliada do norte da França.

Em uma breve passagem por Caen foi impossível reconhecer a cidade quase toda destruída por conta dos combates entre britânicos e alemães. Já a pequena Bayeux teve bem mais sorte. Capturada logo de cara, não sofreu praticamente nada com a invasão.

Visitar a Normandia é uma fascinante aula de História. Não há nada comparável à experiência de ter lido livros e artigos, visto filmes e documentários e, de repente, encontrar-se no local de toda aquela ação. Sem essa preparação, a visita perderia em intensidade.

Tome-se a praia que hoje é mais conhecida pelo nome de código aliado, Omaha. Foi ali que a invasão correu mais risco de fracassar. Basta rever as cenas iniciais do filme O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg, para ter uma idéia. O realismo da cena de desembarque foi tamanho que veteranos de guerra americanos passaram mal ao ver o filme.

Hoje a praia é tranqüila, repleta daquelas pedrinhas que tornam as praias de boa parte da Europa tão diferentes das brasileiras. Se não tivesse havido o Dia D, a Alemanha teria sido vencida apenas pela União Soviética, e a “cortina de ferro” separando o mundo livre e capitalista do totalitarismo comunista estaria nessas praias. Com quase toda a Europa Ocidental nas mãos de Josef Stalin, é provável que a Guerra Fria não tivesse acabado tão cedo. Pior, poderia ter acabado em uma guerra nuclear e com o tal “socialismo real” triunfante.

Mitos e feridas

Com a passagem do tempo, diluem-se as impressões e os preconceitos, mas novos mitos podem surgir. Às vezes, é uma questão de conveniência política. Com a divisão da Alemanha em duas, em 1945, tanto a então URSS como os EUA ganharam um aliado “novo”, constituído pelo velho inimigo. Aos dois lados não convinha ficar relembrando o passado nazista. A nova República Federal da Alemanha tomou seu lugar junto às democracias e à aliança ocidental Otan. A República Democrática da Alemanha (ironicamente, comunista e não-democrática) tornou-se um modelo de socialismo e tomou seu lugar na aliança dominada pela URSS, o Pacto de Varsóvia.Mesmo assim, demorou mais de meio século para um líder alemão ser convidado para as cerimônias do Dia D na Normandia. Certas feridas são profundas.

O estudioso de História militar precisa, portanto, de equilíbrio na hora de analisar essa história ainda tão recente. Um bom exemplo dos riscos de estudar o passado é a mitificação que alguns autores fazem das Forças Armadas alemãs. Os nazistas podem ter perdido a guerra, mas sua reputação de grandes guerreiros continua a ser alimentada em livros populares e até em hobbies como o modelismo. Basta ver a seção de blindados de uma loja de plastimodelismo. Para cada opção de tanque Sherman americano ou T-34 russo, você vai encontrar várias dos alemães Panther e Tigre I e II.

Esse culto do “super-homem” germânico era parte fundamental de sua propaganda de guerra. Pilotos de caça, submarinistas e comandantes de tanques bem-sucedidos eram fartamente divulgados para o público.

Wittmann contra Ekins

Se você conhece a história da campanha da Normandia, provavelmente ouviu falar do alemão Michael Wittmann, ás comandante de tanques Tigre I que praticamente parou sozinho o avanço de uma brigada britânica em Villers Bocage. Foi um feito notável, certamente; embora poucos lembrem que era muito mais seguro estar a bordo de um bem blindado Tigre do que dentro de um simples Sherman, cujo canhão básico, de calibre 75 mm, não conseguia penetrar a couraça do adversário nem à queima roupa.

Mas bastou os Tigres e Panthers encontrarem um tanque aliado capaz de penetrar sua espessa blindagem frontal para a história mudar. Os britânicos adaptaram o canhão antitanque de 17 libras em alguns Shermans, rebatizados Firefly (“vagalume”). Apesar da fraca blindagem, pela primeira vez um tanque aliado conseguiria lutar de igual para igual com os “felinos” germânicos.

Mesmo quem já ouviu falar de Wittmann raramente ouviu falar de Joe Ekins. Ele era o atirador de um Sherman Firefly britânico que teve a sorte de estar em uma boa posição de tiro durante o avanço de um grupo de Tigres comandados por Wittmann. A chance de sobreviver a um combate com vários Tigres era minúscula. No entanto, em apenas 12 minutos de combate, o tanque aliado destruiu três Tigres com cinco disparos do canhão de 17 libras de Ekins. Detalhe: o novato Ekins só tinha até então disparado seis tiros com o canhão, em treinamento na Grã-Bretanha.

Só depois da guerra que se descobriu que o ás tanquista alemão estava em um dos Tigres destruídos. Há vários livros sobre Michael Wittmann, e fotos de propaganda dele existem aos montes. Já o verdadeiro herói, Joe Ekins, sobreviveu à guerra, trabalhou em uma fábrica de sapatos, casou e teve filhos. E foi só no século 21 que ele passou a ser lembrado pelo feito de 1944.

Ricardo Bonalume Neto, 47 anos, é repórter da Folha de S.Paulo especializado em ciência e assuntos militares. Cobriu conflitos em vários continentes e é autor de A Nossa Segunda Guerra – Os Brasileiros em Combate, 1942-1945.