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Espanha: A pátria das touradas

Nas arenas lotadas, há muito mais que violência e crueldade. A disputa entre touro e toureiro tem tradições milenares que se confundem com as próprias raízes da Espanha

Cláudia Gurfinkel Publicado em 01/12/2006, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

O escritor americano Ernest Hemingway dedicou a elas vários de seus livros. Os pintores espanhóis Pablo Picasso e Francisco de Goya pintaram uma série de quadros sobre o tema. O compositor francês Georges Bizet compôs sua famosa ópera Carmen inspirado no assunto. Não é à toa que o Dicionário da Real Academia Espanhola defina as touradas como uma arte.

Apesar dos protestos dos grupos que defendem os animais, as touradas sobrevivem como uma das mais controversas manifestações populares do mundo. Presentes em diversos países, na Espanha elas ganharam um destaque incomparável. Lá, estima-se que cerca de 6 mil touros sejam mortos em cada temporada, que dura de março a outubro. Os espetáculos empregam cerca de 200 mil pessoas, ou 1% de toda a mão-de-obra do país. O toureiro Julián López, “El Juli”, uma espécie de Ronaldinho Gaúcho das touradas, não entra na arena por menos de 150 mil euros – mais de 400 mil reais.

Segundo José Ortega y Gasset, um dos principais filósofos espanhóis, morto em 1955, não dá para entender a história da Espanha sem as corridas de touros. “Essa festa tem feito os espanhóis felizes há muito tempo, embebido suas conversas e sua vida”, escreveu ele no livro La Caza y los Toros. Reconhecendo essa importância, a União Européia protege as touradas como parte da “cultura nacional” espanhola. Mas, afinal, de onde veio essa tradição?

Durante séculos, todos pareciam ter certeza quanto às origens das touradas, que teriam sido levadas à Espanha pelos muçulmanos no século 8. Mas pesquisas com textos medievais comprovaram que os próprios árabes só tiveram contato com os jogos taurinos ao chegarem à península Ibérica. “Apesar de esses estudos terem desmentido a origem árabe da festa, a associação entre as touradas e a cultura moura está presente até hoje na decoração das arenas”, diz o escritor espanhol Antonio Santainés, especialista em touradas.

Hoje pesquisadores acreditam que as touradas espanholas receberam influências de diversas tradições e culturas. Sabe-se, por exemplo, que jogos envolvendo touros existem desde o século 16 a.C. – como revela a cena de um afresco encontrado na ilha de Creta que mostra jovens agarrando os chifres desses animais. Na região da Espanha, os primeiros a lutar com touros teriam sido povos da época do Império Romano. Por volta do século 3 a.C., os celtiberos do norte da península Ibérica já sabiam que os touros que habitavam as florestas locais eram muito agressivos. Eles enfrentavam os animais, mas também utilizavam-nos na guerra, soltando-os enfurecidos em direção aos exércitos inimigos.

Ao sul de onde viviam os celtiberos, a caça de touros acabou se transformando num verdadeiro jogo. Relatos romanos do fim da era pré-cristã descrevem rituais em que guerreiros enfrentavam touros selvagens na cidade ibérica de Baética. A forma como isso ocorria tem a cara das touradas modernas: os toureiros primitivos da região se esquivavam do bicho usando uma pele para distraí-lo e, ao final, matavam-no com uma lança ou um machado.

Após o fim do Império Romano do Ocidente, no século 5, os visigodos ocuparam a península Ibérica. E, no que diz respeito aos jogos com touros, fizeram jus ao apelido de “bárbaros”. Em vez de se contentar em golpear o bicho com objetos cortantes, eles se jogavam sobre o touro, que normalmente já estava ferido, para imobilizá-lo e sufocá-lo com as próprias mãos (essas lutas corpo a corpo ainda existem fora da Espanha, nas touradas portuguesas).

CHEGA A CAVALARIA

Com a invasão dos muçulmanos, vindos da região africana do Magreb em 711, os costumes da península Ibérica sofreram uma reviravolta – que incluiu uma inovação no mundo das touradas. Conhecidos por sua habilidade na arte de montar, os magrebinos deram aos cavaleiros o papel central nos jogos com touros. Eles matavam o animal com lanças, apoiados por auxiliares que, a pé, cercavam os animais.

No fim do século 11, grandes festivais com touros já haviam se tornado comuns no sul da península Ibérica, dominado pelos árabes. Anfiteatros de cidades como Sevilha eram palco de concursos em que cavaleiros armados com lanças competiam entre si para ver quem matava touros com mais eficiência. Nas cidades em que não havia locais mais apropriados, esses festivais aconteciam em grandes praças públicas – é daí, aliás, que vem a expressão “praça de touros”, usada até hoje para se referir às arenas.

Durante os séculos 12 e 13, os cristãos da península Ibérica se empenharam em expulsar os muçulmanos. Por volta de 1250, boa parte do território já tinha sido reconquistado. Mas, entre os muitos traços culturais deixados pelos árabes, ficou o gosto pelas touradas a cavalo. Na época em que os reinos cristãos da península Ibérica se uniram para formar a Espanha, em 1469, as touradas públicas já tinham consolidado seu posto como esporte favorito da nobreza. Em ocasiões como casamentos e nascimentos, as corridas de touros tinham lugar de destaque nas comemorações. Um exemplo disso está no que fez o rei espanhol Carlos I (que também comandou o Sacro Império Romano sob o nome de Carlos V): em 1527, ele enfrentou um touro para celebrar o nascimento de um filho, o futuro rei Felipe II.

No século 17, os nobres que se destacavam nas touradas eram convidados a se exibir fora de seus domínios. Mas, muitas vezes, quem roubava a cena com coragem e destreza eram seus auxiliares. Plebeus, lutavam a pé, usavam capas para enganar os animais e passaram a participar mais da morte do touro. Quando os nobres da casa Bourbon, de origem francesa, subiram ao poder na Espanha, em 1700, a participação em touradas começou a ser vista como algo impróprio para aristocratas. Enquanto a corte se deleitava com hábitos afrancesados, homens comuns viraram protagonistas das corridas de touros.

OS MESTRES FICAM A PÉ

Ainda no século 18, as touradas começaram a ganhar as feições que têm até hoje. A cavalo, os coadjuvantes picadores enfraqueciam o touro com suas lanças, antes da participação decisiva dos matadores, a pé com suas capas e espadas. Eram homens simples, que se enobreciam na arena. Joaquín Rodríguez, o Costillares, nascido em 1729, trabalhava num matadouro e foi pioneiro no modo de manusear a capa – e nas roupas bordadas e enfeitadas. Já o carpinteiro Pedro Romero, principal rival de Costillares, popularizou o estoque, o tipo de espada usado hoje para matar o touro. Naquela época nasceu também o hábito de tourear por dinheiro.

O florescimento das touradas foi interrompido no início do século 19. Em 1805, Carlos IV resolveu proibir todos os festejos com touros. A proibição durou até 1808, mas coincidiu com a invasão da Espanha pelas tropas francesas de Napoleão. Os espanhóis só conseguiram voltar a ser independentes em 1814, mas as touradas demoraram a se reerguer (uma das razões foi a falta de cuidado, durante a guerra, com a criação e o treinamento dos touros).

As touradas voltaram com força total no início do século 20. As disputas entre os matadores José Gomez Ortega e Juan Belmonte, a partir de 1912, marcaram a chamada “Idade de Ouro” das touradas. O período acabou em 1920, com a morte de Ortega, ferido por um touro na arena. Os anos seguintes costumam ser chamados de “Idade de Prata”, interrompida pela Guerra Civil espanhola, travada entre 1936 e 1939.

Com o fim do conflito, surgiu aquele que, para muitos, foi o maior toureiro de todos os tempos: Manuel Rodríguez, o Manolete. Hábil e destemido, acabou morto por um touro em 1947. Sua vida deve chegar aos cinemas em 2007, numa produção anglo-hispânica estrelada por Adrien Brody (ganhador do Oscar por O Pianista). É garantia de polêmica entre os amantes e os críticos das touradas – que ainda devem continuar brigando durante muito tempo, assim como os homens e os touros.

Arquitetura taurina

Nobres mandavamconstruir praças para as corridas de touros

As touradas também têm seu Maracanã. É a arena de touros de Las Ventas, na capital espanhola, Madri, que comporta quase 25 mil pessoas e foi construída há exatos 75 anos. Atualmente, há mais de 600 locais como esse na Espanha. No passado, entretanto, as touradas aconteciam em locais públicos – herança da época do domínio muçulmano. Quando os cristãos adotaram essas festas, há cerca de mil anos, passaram a fazê-las em praças retangulares, delimitadas por grandes paredes de conventos e santuários. Para delimitar o espaço em que touro e cavaleiro se enfrentavam, eram usados tapumes de madeira. Fanáticos por touradas, alguns nobres mandavam projetar praças já pensando em usá-las para as corridas de touros – não é por acaso que, na Espanha, toda cidade que se preze tem uma “praça Maior”. Em 1561, depois de um incêndio que atingiu Valladolid, o rei Felipe II ordenou a construção da praça Maior da cidade. Ao redor de um grande espaço retangular aberto, foram erguidos edifícios com balcões, de onde os nobres podiam assistir às façanhas de seus pares contra os touros – o povo tinha que se arriscar, ficando no nível do chão e em arquibancadas improvisadas. O modelo de Valladolid foi copiado por diversas cidades, incluindo Madri, cuja praça Maior foi construída em 1617, no reinado de Felipe III. O problema do formato retangular, entretanto, era que as festas acabavam ficando monótonas: normalmente, em vez de enfrentar os cavaleiros, os touros buscavam refúgio nos cantos da praça retangular. Isso deu origem ao formato circular usado nas arenas fechadas, que surgiram no fim do século 18 e depois se espalharam pelo país.

Saiba mais

Livros

Bullfight, Garry Marvin, University of Illinois Press, 1994

O autor, antropólogo, explora a profunda relação entre as touradas e a cultura espanhola.