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A história do patrimônio da Igreja Católica

No século 7, a Igreja já era a maior proprietária de terras do Ocidente. Hoje, a Santa Sé opera no vermelho, mas é dona de um patrimônio bilionário e alvo de denúncias de corrupção

Eduardo Szklarz Publicado em 04/07/2012, às 15h54 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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patrimonio igreja infografico - Arquivo Aventuras
patrimonio igreja infografico - Arquivo Aventuras

O papa Leão XIII controlava de perto as finanças da Santa Sé. Tanto que guardava o dinheiro, o ouro e as joias do papado dentro de uma arca de ferro debaixo de sua cama. Quando ele morreu, em 1903, foi um deus nos acuda: ninguém sabia onde estava o baú. O pânico aumentou quando os empregados do Vaticano protestaram por melhores salários - os membros da Guarda Suíça até ameaçaram renunciar. Os assessores encontraram apenas 82 mil liras e joias. Mal dava para cobrir 10% do custo do conclave que tinha eleito o novo papa, Pio X. A agrura só terminou um mês depois, quando o monsenhor Nazareno Marzolini se apresentou com o cofre. Ele explicou que havia recebido instruções para demorar a entregar o dinheiro de modo a lembrar ao novo papa que ele deveria administrar bem o patrimônio da Santa Sé.

O alerta faz sentido. A Igreja sempre penou para lidar com sua riqueza de forma equilibrada. Com o agravante de que vários líderes não foram tão escrupulosos como Leão XIII. No século 11, por exemplo, o papa Bento IX vendeu o cargo por 680 kg de ouro. Foi condenado por simonia (o comércio de sacramentos e postos eclesiásticos) em 1049. Apenas no século 20, a Igreja começou a contratar profissionais para administrar suas finanças - mas volta e meia surge um escândalo. O grande alvo das denúncias tem sido o Banco do Vaticano, que já foi acusado de participar de esquemas de propina de políticos e até de lavagem de dinheiro para a máfia. Em setembro de 2010, as autoridades italianas colocaram sob suspeita 30 milhões de dólares depositados numa conta. Em resposta, o papa Bento XVI criou a Autoridade de Informação Financeira - uma espécie de cão de guarda, que chega com a função de prevenir delitos e garantir mais transparência aos negócios papais. Há pelo menos uma década, a Santa Sé tem um orçamento deficitário.

"Quando Pedro precisou pagar o imposto do templo, Jesus fez um milagre para ele. Desde então, os papas têm rezado por milagres para conseguir seus objetivos", diz o padre Thomas J. Reese, autor de O Vaticano por Dentro.

Clique nas imagens para ampliar (ilustração: Kleber Sales / design: Débora Bianchi)

E apenas rezar não adianta: sem dinheiro, o papa não conseguiria exercer seu magistério. Não poderia pagar funcionários, manter a Cúria Romana (o governo central da Igreja) ou prestar assistência às dioceses necessitadas. Tampouco poderia custear os missionários na África, onde o catolicismo mais cresce hoje. Conseguir recursos foi uma tarefa bastante árdua desde os primórdios da Igreja. No século 1, quando o cristianismo era uma seita perseguida, seus membros se reuniam nas próprias casas. Nesses templos improvisados, eles também coletavam roupa e comida para os mais pobres.

Constantino


A Igreja só pôde possuir propriedades a partir do século 4, quando o imperador Constantino transformou o cristianismo na religião oficial de Roma. Queria utilizar a fé para manter a coesão de seus domínios. Mas não deu certo: a parte ocidental do Império Romano se desmembrou em 476, e quem lucrou mesmo foram os papas, que se tornaram peças-chave do poder político. Sua influência em Roma se comparava com a do Senado local. E sua riqueza cresceu graças aos presentes da nobreza.

Constantino construiu igrejas, doou o Palácio de Latrão, imóveis do Egito às ilhas do mar Adriático e até termas em Roma. Sem falar na avalanche dos regalos de ouro e prata. Com tanta bonança, alguns sacerdotes se esqueciam do voto de pobreza, como Virgílio. Na sua primeira tentativa de se tornar papa, em 536, ele levou sacos de dinheiro oferecidos por Teodora (esposa do imperador Justiniano) para subornar apoiadores para sua eleição.

A Igreja também recebeu doações de líderes do Império Romano do Oriente (Bizantino) e, à medida que a doutrina cristã se espalhava pela Europa, os papas negociavam para ter suas próprias porções de chão. A chamada Doação de Constantino é um atestado dessa "ganância". Atribuído ao imperador, o manuscrito concedia Roma e nacos da Itália e Europa ao papa Silvestre I. Era uma fraude elaborada por volta do século 8 para favorecer o papado na negociação com Pepino, o Breve, mas foi tomada como verdadeira até quase o fim da Idade Média. Nesse meio tempo, garantiu soberania e o controle sobre vastos territórios.

Em 754, Pepino ocupou parte do reino lombardo e, em troca do apoio do papa, doou as terras para a Santa Sé. Era o início dos estados papais (leia à pág. 33). Ali, os sucessores de Pedro instauraram uma monarquia absoluta, acumulando o papel de autoridades civis, líderes religiosos, senhores feudais e chefes de exércitos. "No século 9, os papas eram joguetes nas mãos das famílias da nobreza, como os Spoletos, que se aliavam a milícias e controlavam cidades como Veneza e Florença", diz Brenda Ralph Lewis em A História Secreta dos Papas. O cenário (marcado ainda por escândalos sexuais) tardou a mudar. Bento V, depois de seduzir uma jovem, fugiu para Constantinopla, em 964, levando o tesouro papal. A grana acabou logo, e ele voltou a Roma. "Acabou morto com mais de 100 punhaladas por um marido ciumento."

"Na Idade Média, a instituição não era todo-poderosa", afirma o medievalista Marcelo Pereira Lima. "Havia muitas divergências, negociações e complementação de poderes." Os estados papais ajudaram a tirar as igrejas da esfera de influência da aristocracia local. Mas muitos de seus terrenos continuaram administrados por famílias de sangue azul. E, como diversos membros do clero tinham filhos, parte do patrimônio das igrejas corria o risco de ser engolfada pela herança dos parentes. Entre os séculos 11 e 13, a Igreja de Roma deu uma guinada para botar ordem na casa e montar sua hierarquia. A Cúria (governo da Igreja), a tesouraria e a chancelaria se organizaram, e os cardeais conquistaram autonomia para eleger o papa. A disciplina endureceu contra a simonia e a favor do celibato. "A Igreja se tornou muito maior e intrincada. E o patrimônio também aumentou", diz Lima.

Árbitro

No fim desse período de reestruturação, o papado se destacava como um árbitro da sociedade. Podia até ser em casos de disputa conjugal, como o de uma aristocrata que queria se separar do marido impotente. Se não conseguia resposta do tribunal local, ela apelava ao papa para anular o casamento. Tais pendengas rendiam belas doações.

No século seguinte, os cofres do papado se abasteceram de tributos feudais, donativos e impostos para uso das terras protegidas por suas tropas. A Câmara Apostólica foi criada para gerir as propriedades e os gastos. E a Cúria montou uma rede de coletores de taxas e aluguéis em toda a Europa. Fiéis europeus faziam sua parte enviando o Óbolo de São Pedro, uma doação iniciada com os saxões na Inglaterra, por volta do século 9, e que ia direto ao papa. Os estados papais também geravam renda com tributos, comércio e produção agrícola, embora os custos com defesa e administração fossem elevados. Outra fonte de renda era a venda de indulgências aos fiéis, que assim obtinham a remissão dos pecados. Muitas pessoas até faliam para doar quantias vultosas à Igreja e se garantir no pós-morte.

Como em qualquer organização, porém, o orçamento do papado sempre viveu altos e baixos. No século 16, a cobrança de indulgências para paramentar a Basílica de São Pedro, em Roma, acendeu o estopim da Reforma Protestante. E, com ela, diminuíram os ingressos vindos de terras germânicas, escandinavas e britânicas. A crise se aprofundou no século 18, com a ascensão dos déspotas ilustrados, que buscavam limitar a ingerência da Igreja às questões morais. Em 1789, quando estourou a Revolução Francesa, a Santa Sé chegou à beira do abismo. Dez anos depois, Napoleão deteve o papa Pio VII por quatro anos. Com as ideias liberais correndo livres, propriedades da Igreja foram saqueadas, e seus territórios, desmembrados. A boa relação com a Europa seria retomada após a derrota do francês, em 1815.

Devido à proibição católica que pesava havia séculos sobre o empréstimo com juros (a usura. Em 325, o Conselho de Niceia, impediu empréstimos de clérigos), papas medievais já haviam dependido de banqueiros judeus para sobreviver. No século 19, James de Rothschild se transformou em banqueiro de Roma. Era um paradoxo: desde a Idade Média, a Igreja acusava e perseguia os judeus pela busca do lucro, mas amparava-se neles para manter a própria máquina. Os Rothschilds foram condecorados pelos serviços prestados, mas não conseguiram apoio para melhorar a condição da população judia. E os papas recorreram a outros banqueiros (mesmo protestantes) para se financiar. Com a unificação italiana, em 1870 (e a perda de terras), os impostos minguaram. O sustento veio por meio do Óbolo de São Pedro e de iniciativas como a promoção de bingos - o pilar financeiro de muitas paróquias no século 20.

"Em 1850, o papado se limitava a um pequeno estado semifeudal e dependente das rendas agrárias. Nos 100 anos seguintes, ele se transformou numa holding global com investimentos em agricultura, imóveis, terras, indústria, comércio e ações, distribuídos de Roma a Nova York, de Manila ao Rio de Janeiro", diz John F. Pollard em Money and the Rise of the Modern Papacy (sem edição no Brasil).

Mesmo sem suas rendas tradicionais, a Santa Sé ainda precisava bancar sua enorme estrutura, inclusive as embaixadas (nunciaturas) fora de Roma. Para arrecadar fundos, Pio IX se declarou "prisioneiro no Vaticano" e lançou um novo chamado ao óbolo. A resposta dos fiéis foi mais forte que nunca. A cargo da reforma financeira, o cardeal Giacomo Antonelli aplicou o superávit do óbolo em bancos estrangeiros e comprou ações e bônus no exterior. Graças a Antonelli, no fim do reinado de Pio IX, o Vaticano começou a substituir a exploração de um sistema feudal de riqueza, baseado em latifúndios, pelos investimentos em créditos capitalistas e empresas.

Aos poucos, portanto, o Vaticano aceitava o capitalismo, que tanto atacava. Sob Pio X, a Santa Sé começou a diversificar os investimentos em Roma e a aderir a companhias de saneamento e seguros, entre outros setores. Parte dos lucros era emprestada às famílias aristocráticas romanas, que, assim, tocavam seus empreendimentos. A Primeira Guerra deixou as finanças da Santa Sé na corda bamba. E as doações de católicos americanos tornaram-se cruciais.

Tratado de Latrão

Em 1922, Pio XI assumiu decidido a resolver a "questão romana" (a disputa gerada com a anexação dos estados papais pela Itália) como forma de solucionar os problemas econômicos da Santa Sé. Dito e feito. Em 1929, o secretário de estado do Vaticano e o ditador Benito Mussolini firmaram o Tratado de Latrão. A Itália reconhecia o Estado soberano e pagava 750 milhões de liras em dinheiro e 1 bilhão em bônus do governo para compensar as perdas territoriais. Graças à indenização, a recém-criada Cidade do Vaticano virou um canteiro de obras. E tomou a feição atual. Nos anos 1930, para driblar os efeitos do crack de Wall Street, o Vaticano começou a "globalizar" seus investimentos. A participação em empresas dentro da Itália também cresceu.

Com a derrota italiana na Segunda Guerra, o Vaticano apostou as fichas nos Estados Unidos. O namoro que havia começado nos anos 1920, com as doações das dioceses, virou um casamento com aliança de ouro - quilos de ouro enviados para a Reserva Federal dos EUA, cerca de 7,6 milhões de dólares. Até hoje, suspeita-se que parte desses recursos era fruto de lavagem de dinheiro nazista obtido espuriamente do confisco de judeus. Em 1958, a carteira do Vaticano somava 500 milhões de dólares, além de outros 940 milhões do IOR (Instituto para as Obras de Religião), mais conhecido como Banco do Vaticano.

Os escândalos


A economia dos papas cambaleou de novo nos anos 1960. As ofertas dos fiéis caíram e, em 1968, o governo italiano introduziu uma taxação sobre os dividendos da Santa Sé retroativos a 1942. "Para fugir da mordaça fiscal, o papa Paulo VI iniciou a transferência das participações societárias do Banco do Vaticano para o exterior. Confiou a missão a um sacerdote e a um leigo", diz o jornalista Gianluigi Nuzzi em Vaticano S.A. O sacerdote era Paul Casimir Marcinkus. O leigo, Michele Sindona, um siciliano que controlava aportes de capitais da máfia. Em 1971, já bispo, Marcinkus tornou-se secretário do Banco do Vaticano. "Ambos controlaram a mais maciça exportação de capitais jamais ocorrida nos subterrâneos blindados do Swiss Bank, em parceria com a Santa Sé", diz Nuzzi. Para o autor, que teve acesso ao arquivo do monsenhor Renato Dardozzi, um alto dirigente das finanças papais entre os anos 1970 e 2000, houve uma série de alquimias com os ativos do Vaticano, que passaram de mão em mão para driblar impostos e lucrar em cada participação. As operações teriam servido, por exemplo, de moldura para financiamentos do Partido da Democracia Cristã e da campanha contra o divórcio na Itália. Sindona usaria contas da Santa Sé para transferir o dinheiro da máfia. O siciliano ficou conhecido como o "banqueiro da máfia". Marcinkus era o "banqueiro de Deus". Com Roberto Calvi, principal executivo do Banco Ambrosiano na Itália, formaram um trio "intocável". Os negócios de Calvi incluíam empresas off-shore nas Bahamas. O esquema começou a ruir em 1974, na crise do petróleo. O Ambrosiano entrou em colapso e motivou investigações nos EUA. Em 1978, João Paulo I assumiu o papado disposto a fazer uma limpeza no IOR. No mesmo ano, morreu misteriosamente. "Embora o Vaticano tenha negado qualquer procedimento ilícito, em 1984 o Banco do Vaticano pagou 244 milhões de dólares aos credores do Ambrosiano para que abrissem mão de denúncias", diz Thomas Reese. O episódio nunca foi totalmente esclarecido.

Os segredos continuam sendo a mola mestra das finanças da Santa Sé. O Banco do Vaticano, por exemplo, não publica seus números. AVENTURAS entrou em contato reiteradamente com a Secretaria Geral e o Serviço de Imprensa do Vaticano, mas nenhum deles forneceu informações além das que estão na página da internet. "O Vaticano desenvolve seus negócios em total sigilo, protegendo a delicada relação entre a teocracia e o dinheiro", diz Nuzzi. "As intensas atividades da holding da Santa Sé são um dos segredos mais bem guardados do planeta. Até mesmo o orçamento consolidado da Igreja, divulgado em julho de cada ano, oferece apenas dados genéricos. O silêncio é tutelado a qualquer custo."

Problemas ligados à administração financeira não são exclusivos dos católicos, claro (vide a condenação dos líderes da evangélica Renascer), mas o mesmo sigilo de Roma se repete pelo mundo. Na Alemanha, o cientista político Carsten Frerk tardou anos para apurar a arrecadação das dioceses católicas e protestantes. Concluiu em 2009 que as paróquias alemãs tinham 200 bilhões de euros em patrimônio. E receberam 9,3 bilhões em taxas. "Com o chamado imposto da Igreja, cerca de 9% do que os católicos declarados pagam de imposto de renda ao Estado vai para a Igreja", afirma, relatando ter sido "muito difícil" concluir o levantamento. No Brasil, a CNBB tampouco forneceu detalhes de suas finanças.
A Autoridade de Informação Financeira pode ser uma nova fonte de transparência. "Hoje, o Vaticano enfrenta normas bancárias internacionais mais rigorosas e não pode se dar ao luxo de ter um banco offshore dentro de São Pedro ou manter informações em sigilo", diz Nuzzi.