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Iídiche: a pátria é minha língua

Ele continua sendo falado nos quatro cantos do mundo, mas está cada vez mais restrito às comunidades ortodoxas

Eduardo Lima Publicado em 01/05/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Há judeus espalhados por mais de cem países, nos cinco continentes. A história, ao longo de milênios, tratou de moldar comunidades judaicas absolutamente distintas ao redor do mundo, cada qual com tradições, “leis” e costumes que não se repetem em nenhuma das outras. A brasileira é diferente da argentina, que é diferente da russa ou da americana... e assim por diante. Mas quase todas têm pelo menos um traço em comum: o iídiche. Os mais jovens podem até não ter o domínio completo da língua, mas com certeza já ouviram – e repetiram – bordões que passam de geração para geração.

Nascido há cerca de mil anos na região que hoje é ocupada por pedaços da França e da Alemanha, o iídiche desenvolveu-se principalmente entre os judeus ashkenazim, oriundos da Europa Central e Oriental. A língua é derivada principalmente do alemão medieval, embora também tenha sido influenciada pelo hebraico, pelo aramaico e, mais tarde, por elementos eslavos. Estima-se que no ano de 1939, véspera da Segunda Guerra Mundial, aproximadamente 11 milhões de judeus falavam o iídiche. Mas sobreveio o Holocausto e os campos de extermínio nazistas silenciaram boa parte dessas vozes.

Mais tarde, em 1948, a própria criação do Estado de Israel acabaria se revelando outro duro golpe para o idioma. “Israel queria uma língua oficial que todo judeu falasse, mas que não tivesse as características ou trouxesse as lembranças do período do exílio”, afirma Genha Migdal, professora de iídiche da USP. O idioma, então, acabou sendo descartado e começou a perder seu caráter de língua do dia-a-dia. O hebraico tornou-se o idioma oficial de Israel – não sem antes, porém, passar por uma profunda reforma gramatical e de estrutura, que o adaptou à modernidade.

Hoje, o iídiche está fundamentalmente restrito a comunidades ortodoxas, que reservam o hebraico apenas para as atividades religiosas. Este seria um sintoma de que a língua está com seus dias contados? Depende de quem analisa a situação. Para Jacó Guinsburg, membro do Centro de Estudos Judaicos da USP e professor emérito da mesma universidade, o iídiche está perdendo as condições básicas de subsistência. Como exemplo, ele cita a literatura. “Ela está soterrada sob as cinzas do Holocausto”, diz Guinsburg. “Tornou-se uma árvore que floresce sem ter raízes.” Mas Miriam Koral, diretora do California Institute for Yiddish Culture & Language, acredita que o iídiche é mais que uma língua – está associado à própria “alma do judaísmo”. Ou seja: enquanto o segundo existir, a sobrevivência do primeiro estará garantida. “O idioma representa mil anos de história”, diz Miriam. “É uma língua riquíssima, a única falada em lugares tão díspares ao redor do mundo.”

Significados ocultos

A riqueza sugerida por Miriam Koral não se resume à origem milenar do idioma. O iídiche, além de língua, é uma linguagem, repleta de palavras e expressões que encerram significados ocultos ou dissimulados. Para o professor universitário e comediante canadense Michael Wex, autor do livro Born to kvetch: yiddish language and culture in all its moods (Nascido para reclamar: língua e cultura iídiche em todos os seus humores, sem tradução para o português), trata-se da língua da reclamação por excelência. “O iídiche é o idioma nacional de lugar nenhum”, escreve Wex. “O judaísmo é historicamente definido pelo exílio, e exílio sem reclamação é turismo.”

Entre os que conhecem e estudam as nuances do iídiche, há quem garanta: poucas línguas transformam-se em armas tão sutis, bem-humoradas e “letais” quando colocadas a serviço da ironia ou do insulto. São famosas, por exemplo, as pragas rogadas nesse idioma (leia mais no quadro ao lado). “Não é uma questão de simplesmente gritar palavrões”, diz Wex. “O truque é simples: colocar boas palavras juntas e do modo mais pernicioso possível.”

A frase “Ikh darf es vi a lokh in kop”, dita a alguém que não pára de tagarelar a seu lado, é um exemplo dessa “malícia”. A tradução literal: “Preciso disso como de um buraco na cabeça”. Como ninguém precisa de um buraco na cabeça, seria o equivalente a dizer ao tagarela: “Nada disso me interessa”. A expressão “Es vet helfen vi a toiten bahnkes” vai pelo mesmo caminho. Traduzida ao pé da letra: “Ajudará como ventosas a um morto”. Considerando que, depois da morte, não há ventosa que ajude, é como dizer ao pobre coitado do interlocutor: “Tudo isso é simplesmente inútil!”

Consultoria para escrita em iídiche: Frania Lichtenstein Hochman.

Origem de alcova

"Encrenca" veio do iídiche e surgiu nas zonas de prostituição

O português tem palavras que vieram do iídiche. “Encrenca” é um exemplo e sua origem é das mais surpreendentes. Entre o fim do século 19 e o começo do século 20, muitas judias nascidas no Leste Europeu foram trazidas para o Brasil como escravas brancas, para trabalhar nas zonas de prostituição de São Paulo e Rio de Janeiro. Na época, a sífilis era uma doença comum. Ao oferecer seus serviços, as chamadas “polacas” diziam em iídiche: “Ikh hob mit kein krenk” (“Não tenho doenças”). O “kein krenk” foi se modificando até virar “encrenca”.