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João Havelange: Diplomata da bola

Após participar de duas Olimpíadas - incluindo a de 1936, na Alemanha nazista - João Havelange virou dirigente esportivo. Ajudou o Brasil a ganhar três Copas e usou o futebol para aproximar rivais

Flávia Ribeiro Publicado em 01/09/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Aos 91 anos, Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange acompanhou de perto – e por diversos ângulos – a história do esporte. Carioca de ascendência belga, João Havelange jogou no Fluminense na época em que o futebol brasileiro saía do amadorismo. Depois, como nadador, esteve nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, e viu o atleta negro americano Jesse Owens estragar a festa “ariana” planejada por Adolf Hitler. Mas foi como dirigente que Havelange mais se destacou. Presidiu a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, antecessora da CBF) de 1958 a 1974, época em que o Brasil conquistou suas três primeiras Copas do Mundo. Em seguida, chegou à presidência da Fifa (Federação Internacional de Futebol), onde ficou até 1998. Havelange aumentou de 146 para 196 o número de países na entidade – ajudando a deixá-la, até hoje, com mais filiados que as Nações Unidas. Organizou seis Copas e, muitas vezes, tentou usar o esporte para aproximar nações inimigas. Essa trajetória, aliás, acaba de virar biografia: Jogo Duro, do jornalista Ernesto Rodrigues, lançada no fim de julho.

Apesar de ter sido interlocutor privilegiado de reis, presidentes, ditadores e primeiros-ministros, Havelange não gosta de falar sobre política. Diante de perguntas a respeito desse tema, deixa clara sua insatisfação: “Nos 20 anos em que fui presidente da Fifa, nunca me intrometi em qualquer assunto de origem política, pois minha obrigação era desenvolver o desporto”. Mesmo assim, diplomaticamente, Havelange respondeu a todas as questões feitas por História. Entre as muitas viagens internacionais que ainda faz em nome do esporte (é presidente honorário da Fifa e decano do Comitê Olímpico Internacional), estava no Rio de Janeiro para acompanhar os Jogos Pan-Americanos – em que diversas provas foram disputadas no estádio que leva o seu nome.

História – Como o senhor começou a praticar esportes?

João Havelange – Aos 6 anos, conduzido por meu pai, aprendi a nadar no Fluminense, tornando-me depois campeão carioca, paulista e brasileiro. Também me dediquei ao pólo aquático, conseguindo os mesmos títulos que havia alcançado como nadador.

Jogando futebol, o senhor chegou a ser campeão juvenil em 1931 pelo Fluminense. Qual era a sua posição?

Minha posição era o que chamaríamos hoje na defesa de central esquerdo. Acredito que eu tivesse qualidades como jogador, já que fui convidado pelo dirigente do Fluminense daquela época para continuar no futebol. Mas em 1932 iniciou-se o profissionalismo no futebol e meu pai me pediu que voltasse a ser nadador. Fiz isso respeitando seu pedido.

O senhor esteve nas Olimpíadas de 1936, em Berlim. Como foi a viagem da delegação brasileira?

Nas Olimpíadas de 1936, participei das provas de 400 e 1500 metros nado livre. A viagem da delegação foi no navio San Martin, com duração de 21 dias do Rio de Janeiro a Hamburgo, com escala em Lisboa. Lá fizemos um treinamento, pois o navio não tinha instalações apropriadas para o meu esporte. Durante toda a viagem havia sido improvisada uma piscina de lona de 3 por 5 metros. Isso não nos facilitava em nada o treinamento, nos prejudicando, no aspecto físico, para a competição que nos esperava.

Aquelas Olimpíadas ficaram marcadas como os jogos em que Hitler tentou fazer propaganda da “raça ariana”. Mas o americano Jesse Owens estragou seus planos ao conquistar quatro medalhas de ouro no atletismo e se tornar um símbolo esportivo para a igualdade racial. Como os atletas acompanharam esses acontecimentos?

Indiscutivelmente, os Jogos Olímpicos de Berlim foram marcados por uma organização excelente e instalações perfeitas. Quanto ao episódio referente a Jesse Owens – o grande atleta que se destacou com uma bela vitória nos 100 metros rasos –, ele foi estrondosamente aplaudido por todo o Estádio Olímpico. Até hoje é lembrado como representante de uma raça que se antepôs ao ditador. Foi ovacionado. Guardarei eternamente essa imagem viva de um exemplo a ser seguido por todos os atletas.

Como foram as Olimpíadas de Helsinque, em 1952, já durante a Guerra Fria, em que o senhor esteve como jogador de pólo aquático?

Os Jogos Olímpicos de Helsinque serviram para mim como um belo exemplo de superação, uma vez que a Finlândia era um país que havia sido sacrificado com a guerra e pelas dificuldades que existiam entre ela e a Rússia na ocasião. Mesmo assim, realizou uma Olimpíada que deve ser lembrada como exemplo da vontade de um povo em demonstrar ao mundo sua capacidade de realização e organização em meio a dificuldades. Mesmo que não nos envolvêssemos em política, sentimos o que era a pressão da Guerra Fria.

Entre tantas partidas de futebol a que o senhor assistiu, qual foi a mais marcante?

Indiscutivelmente, a final da Copa do Mundo de 1950, entre Brasil e Uruguai, em que fomos derrotados por 2 a 1, quando o empate bastaria para nos tornar campeões. Tendo assistido a esse jogo, fiz um juramento a mim mesmo de que, se algum dia viesse a presidir a CBD, eu daria a meu país esse momento de glória. Quis o destino que isso ocorresse. Como presidente da CBD, pude oferecer ao povo brasileiro o tricampeonato de 1958, 1962 e 1970.

Nos anos 70, dirigentes, técnicos e atletas da seleção brasileira sofreram alguma pressão do governo militar? Havia desconforto no fato de a ditadura usar as conquistas da seleção em sua propaganda?

Quero lhe afiançar que isso jamais aconteceu. E, de minha parte, não aceitaria. Portanto, não houve nenhum desconforto. Muito ao contrário, tive o respeito das autoridades da época.

Como a Fifa se fortaleceu após sua chegada à presidência, em 1974?

Quando fui eleito presidente da Fifa, as associações filiadas eram 146. Quando a deixei, em 1998, eram 196 filiadas e, neste ano de 2007, o número se elevou a 209. A Fifa tem mais filiadas que a ONU tem de nações, o que demonstra a força do futebol, com uma penetração positiva, valiosa e desejada. Para chegar a esse resultado, procuramos adaptar e adotar o sistema empresarial. Durante minha presidência, num período de 24 anos, visitei 185 associações pelo menos três vezes, o que me obrigou a despender 27 mil horas em vôos internacionais.

Enquanto o senhor presidiu a Fifa, quais foram os principais momentos em que o futebol serviu para aumentar a integração entre os povos?

Em 4 de maio de 1975, cheguei à cidade de Pequim pela primeira vez, para elaborar com a Federação Chinesa a sua reintegração à Fifa, da qual se havia alijado 25 anos antes. Foram cinco anos de tentativas até chegarmos a um ponto de consenso entre China e Taiwan, aprovado pelo Congresso da Fifa em 1980 (Taiwan, ilha que se tornou independente da China após a revolução comunista de 1949, insistia em chamar de “China” a sua seleção de futebol. Após o acordo, cada país passou a usar o próprio nome nas competições internacionais). Tivemos também, na Copa de 1998, na França, o problema entre Estados Unidos e Irã. O jogo fazia parte do calendário e se desenrolou com harmonia, disciplina e respeito, numa demonstração da importância do futebol para a congregação de equipes – nesse caso, de países. O jogo foi aplaudido de pé. Também não me esquecerei do Campeonato Mundial Sub-20 de 1991, em Portugal. As duas Coréias se classificaram para a competição e conseguimos a unificação das duas seleções. São exemplos que mostram a força do futebol no entrelaçamento dos povos.

Houve algum caso em que o esporte, por mais que o senhor tenha tentado, não conseguiu superar as barreiras da intolerância religiosa ou política?

Na Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, o vice-presidente americano Al Gore me solicitou para uma audiência. Ele afirmou que as instâncias políticas internacionais, comerciais e diplomáticas não haviam conseguido apaziguar a Palestina e Israel. Pediu-me que procurasse, pelo futebol, atingir esse objetivo. Visitei Israel e apresentei ao presidente do país, ao primeiro-ministro e ao presidente da federação de futebol o objetivo. Israel aceitou. Em seguida procurei um entendimento com a Palestina, representada por Yasser Arafat, e uma reunião em Gaza foi marcada. Mas uma tragédia impediu esse encontro: dois dias antes da data, na fronteira do Egito com Gaza, um ônibus com turistas alemães foi atacado e todos foram dizimados. A segurança então interditou minha ida àquela região. Não satisfeito, solicitei ao rei da Jordânia que a reunião com o presidente Arafat fosse em Amã (a capital jordaniana). Mas, no momento do encontro, fui informado de que Arafat havia sido convidado para uma reunião em Camp David (casa de campo da presidência americana), nos Estados Unidos. Ainda com a responsabilidade de atender ao pedido que me havia sido feito, procurei na Arábia Saudita o príncipe Faisal, alto dirigente político e desportista, para realizar a reunião em seu país. Mas quis o destino que, em seguida, eu tenha decidido não mais me reeleger para presidente da Fifa. Com isso, o encontro não se realizou.

Qual foi o seu maior orgulho nos 24 anos comandando a Fifa? E a maior decepção?

O maior orgulho foi – depois de visitar os países filiados e verificar que, em todo o mundo, a infância está abandonada – ter solicitado ao Comitê Executivo da Fifa a associação a uma organização internacional, a SOS Crianças do Mundo. Em conjunto, estamos atendendo a 154 países e aliviando, acredito, a preocupação que a Fifa e o futebol mundial têm com essas crianças. Quanto à maior decepção, foi não ter realizado, no meu período de presidente, uma Copa do Mundo na África. Mas, com a continuidade do programa, sob a presidência de Joseph Blatter, essa decepção desaparecerá em 2010, quando a Copa será jogada na África do Sul.

O que o senhor espera da Copa de 2014, que provavelmente será realizada no Brasil?

A Copa de 2014 foi designada para o Brasil por justiça, primeiro por sermos cinco vezes campeões do mundo e segundo pela expressão do futebol de nosso país, que é um exemplo para as demais associações. A expectativa é pelo que representará de felicidade para todo o nosso povo.

Saiba mais

Livro

Jogo Duro – A História de João Havelange, Ernesto Rodrigues, Record, 2007

Traça um perfil completo de Havelange, desde sua trajetória como atleta até a opinião de seus desafetos.