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Kama Sutra: O côncavo e o convexo

Criado na chamada

Fábio Marton Publicado em 01/01/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Na Inglaterra de 1883, dizer a palavra “perna” diante das damas era considerado ofensivo. Tão obscenas eram que até as pernas de mesa precisavam ser cobertas por panos. Para ir à praia, moças usavam a “máquina de banho”, espécie de vagão de madeira que permitia a entrada da água do mar sem que elas fossem vistas. Desde 1857 vigorava o Ato de Publicações Obscenas, cujo idealizador, John Campbell, considerava a pornografia como “veneno mais letal que ácido prússico, arsênico e estricnina”.

Nessa mesma época, fotografias eróticas contrabandeadas da França podiam ser compradas na tabacaria, prostitutas tomavam o bairro de Whitechapel (mais tarde tornado infame por Jack, o Estripador), Oscar Wilde se encontrava com rapazinhos da classe trabalhadora e Lewis Carroll (autor de Alice no País das Maravilhas) já tinha causado rebuliço ao tirar fotos de garotinhas nuas. Meio que para coroar a contradição vitoriana, foi nesse ano de 1883 que Richard Burton, explorador que já havia passado por Meca, pela África, pela Ásia e até por Santos, publicava o primeiro livro por sua Sociedade Kama Shastra, dedicada a traduzir para um “grupo de estudantes” trabalhos orientais considerados ofensivos. Era o Kama Sutra, com meros 250 exemplares distribuídos em segredo – e que só ganharia outra tradução direta do sânscrito em 1980.

Kama Shastra significa “escola do kama”, a vasta tradição de textos indianos sobre sexo, como o Ratirahasya (datado do século 12), o Ananga Ranga (de 1172) e o próprio Kama Shastra, livro mitológico que teria sido escrito pelo touro sagrado Nandi, guarda (e, ocasionalmente, montaria) do deus Shiva, de acordo com a tradição hindu. Nandi resolveu compartilhar com os homens o que aprendeu ao ficar parado na porta do quarto de Shiva enquanto ele estava no bem-bom com a patroa, Parvati. A lenda é contada pelo filósofo indiano Mallanaga Vatsyayana na introdução de seu Kama Sutra, o original, do século 4. Lá, ele afirma que o livro é a compilação final desse texto do deus Nandi – que, por sua vez, também teria separado 1000 capítulos de um tratado de 100 mil sobre tudo e um pouco mais, feito pelo deus Prajapati. O Kama Shastra foi assim sendo resumido até chegar às sete partes e 36 capítulos do Kama Sutra de Vatsyayana.

O Kama Sutra, de fato, é considerado pelos historiadores como uma compilação de trabalhos anteriores. Mas, publicado por volta do século 4, é o mais antigo dos livros da Kama Shastra que sobreviveu na íntegra. E, mesmo assumidamente resumido, pretende-se um guia para absolutamente tudo em matéria de amor e sexo, para mulheres e para homens – incluindo como usar brinquedos sexuais, sexo grupal, sadomasoquismo, homossexualismo, sedução, conquista, como se casar, como segurar o marido/esposa e como lidar com prostitutas e cortesãs (e também como elas devem lidar com os clientes).

Fora os capítulos iniciais, nos quais Vatsyayana pondera sobre as razões para escrever o livro e o certo e o errado no sexo, o enfoque é surpreendentemente neutro, cru e científico – fala inclusive de práticas condenáveis para o autor. Lá estão as diversas descrições sugestivas que fizeram sua fama, por exemplo: “Como um caranguejo dobrando suas garras, a mulher, por baixo, dobra suas pernas curvadas sobre sua parte vulnerável, o rapaz pressionando seu umbigo contra as pernas dela. Coito nessa posição é chamado de ‘o caranguejo’”.

Mesmo assim, o livro está muito longe de ser o mero guia de posições sexuais que resumos ilustrados de gosto duvidoso retratam atualmente. Vatsyayana diz existirem “apenas” 64 posições. A única parte do livro que se refere apenas ao rala-e-rola é a segunda, “Avanços Amorosos”, que tem dez capítulos: “Estímulo ao Desejo Erótico”, “Agarros”, “Carícias”, “Arranhões”, “Mordidas”, “Cópula e Gostos Especiais”, “Pancadas e Suspiros”, “Comportamento Viril em Mulheres”, “Felação” e “Prelúdios e Conclusões ao Jogo do Amor”. Nas cinco partes seguintes, descrições explícitas de masturbação e todo o resto voltam à cena apenas para ilustrar uma idéia ou outra.

Apesar da origem divina atribuída pelo autor e dos freqüentes conselhos sobre a necessidade da religião – numa das partes ele ensina as mulheres a evitar mendigos, magos e budistas –, o Kama Sutra não é um livro sagrado. Na literatura hindu, os Sutras – diferentemente dos Vedas, os textos sagrados propriamente ditos – são algo como “tratados educacionais”. Existem deles sobre guerra, arquitetura e gramática. Não se filosofava independentemente da religião, mas nem por isso a função do filósofo se confundia com a do sacerdote.

O Kama Sutra também não tem nada a ver com sexo tântrico. A palavra “tantra” que aparece no livro se refere à magia, às poções de amor e afrodisíacos. A idéia de sexo tântrico era incipiente e seus defensores eram – e ainda são para os hindus ortodoxos – considerados membros de uma seita herética. Vatsyayana também se declara contrário ao hedonismo e deixa claro na introdução que o kama, a realização amorosa, é só a terceira coisa mais importante na vida. Antes vêm a virtude espiritual (dharma) e a prosperidade (artha) – sendo que sem riqueza não há virtude. Para o filósofo, a vida é incompleta sem o kama, pois sem ele não há reprodução – mas, pasmem os católicos mais ortodoxos, no século 4 Vatsyayana já dizia que sexo só para reprodução era coisa só para bicho. Além disso, defensor do autocontrole, o filósofo fala de como pessoas privadas de sexo se tornam ansiosas e irritadiças.

Puritano e vitoriano

Sabe-se pouco sobre Vatsyayana, mas seu livro é uma das melhores referências históricas para a época em que viveu. Ele morava na cidade de Pataliputra (hoje Patra), próspera capital do antigo reino de Magadha, no século 4. Era o chamado período Gupta (320-550), ou “Era de Ouro da Índia”. Chandragupta, príncipe de um reino insignificante, casou-se com uma herdeira de Magadha e pôs-se a unificar o norte da Índia, tornando-se o primeiro marajá (de maharajadhiraja, “rei dos reis” em sânscrito). O período foi marcado por paz, prosperidade e imenso florescimento artístico, científico e filosófico. Os matemáticos inventores dos sistema decimal moderno e do número zero foram contemporâneos de Vatsyayana, que menciona comerciantes, burocratas, cortesãs finas, dançarinos, poetas, músicos, atores.

Também fala sobre teatros, festas, bebidas, perfumes, maquiagem, banhos diários, higiene bucal, tintura para os cabelos, temperos, ouro, jóias e uma enorme lista de outros luxos que nessa época seriam exclusivos das sociedades mais avançadas. O modo de vida dos indianos era comparável apenas ao dos romanos e chineses. Ele chama o público-alvo de seu livro de “o homem elegante”: cidadão que deve ser culto, gentil, versado em literatura, artes, ciência, religião e filosofia e pertencente a uma das três castas altas que podiam ter esses luxos. Podia ser um brâmane (dos intelectuais e sacerdotes), xatria (dos guerreiros) ou vaixia (dos proprietários rurais e comerciantes). A última casta, os sudras, de trabalhadores braçais, assim como os escravos sem casta, ficavam, evidentamente, de fora, exceto em referências a hábitos de pessoas necessitadas ou descontroladas.

Essa era da Índia acabou no começo do século 5, com as invasões dos hunas pelo nordeste – alguns historiadores os relacionam aos hunos que atacaram os romanos, mas isso é incerto. Após a queda do poder central, o país se dividiu em feudos, pequenos reinos e repúblicas, com curtos períodos de união, como o reinado de Harsha (606-647). A religião islâmica chegou lá cedo, já no século 7, através de mercadores árabes. Teve grande disseminação entre os sem-casta, segregados pela religião hindu. Em 664, durante a conquista árabe da Pérsia (atual Irã), incursões já eram feitas no noroeste do país (hoje Paquistão). No século 11, Mahmud de Ghazni conquistava o Paquistão atual e, em 1206, o general Qutb-ud-din Aybak se declarava o sultão de Délhi. Um detalhe: o general Aybak era um ex-escravo (mas turcomeno, não indiano). O poder ficaria em mãos islâmicas, com alguns períodos de instabilidade e reinos hindus regionais, até 1857, com a conquista inglesa. O que nos leva de volta a Richard Burton.

A cultura indiana mudou muito tanto com o puritanismo islâmico quanto com os ingleses vitorianos – a ponto de hoje em dia o beijo ser tabu em filmes de Bollywood, a indústria cinematográfica da Índia. Mahatma Gandhi, mentor da independência indiana em 1946, defendia o celibato. Ironicamente, as ilustrações pornográficas que vemos no Kama Sutra foram feitas a partir do século 15 por pintores do período islâmico. Mais irônico ainda: a descoberta de culturas que tratavam o sexo de forma mais natural – e com um papel de destaque para a satisfação da mulher – ajudou a motivar muitas das mudanças radicais no comportamento ocidental durante o século 20. O Kama Sutra continua sendo motivo de orgulho na Índia. Mas, com todo seu pudor atual, é provável que os indianos tenham saído perdendo nessa troca com o Ocidente.

Sem-vergonha

Os acintes do Kama Sutra

Vatsyayana defende a monogamia, o amor consensual, a não-agressão e também o sistema de castas e a religião hindu. Mesmo assim, com o rigor de um cientista, ele não deixa de ensinar várias atitudes indecentes ou violentas até para os padrões atuais. Por exemplo, o Kama Sutra condena, mas demonstra, como chegar à mulher do próximo e como prostitutas devem fazer para arrancar dinheiro dos clientes. Abaixo, exemplos do lado sem-vergonha do livro:

"Assim que ela tenha se apaixonado por mim, pode assassinar seu marido e, tomando posse de seus bens, devemos viver juntos em grande luxo."

(parte I-capítulo 5-verso 11)

"Não há nada de errado em ter um caso com uma mulher desinteressante. Se eu não tenho um tostão, sem quaisquer meios para viver, e, graças a essa mulher, posso ficar rico fácil, farei amor com ela."

(I-5-12. A seguir Vatsyayana explica como o golpe pode dar errado)

"Quando, sob o efeito da excitação, o rapaz começa a maltratá-la, a garota começa a gritar “Mamãe! Mamãe!”, chorando e suspirando e continuamente soltando gritos de dor e outros protestos, de maneira a fazê-lo parar."

(II-7-20. Mais tarde, ele condena os exageros sadomasoquistas, citando um rei que matou sua mulher assim)

"Em circunstâncias como o festival do oitavo dia dedicado à lua, a serviçal (subornada) cuida de deixar a garota beber e, sob o pretexto de fazer alguma coisa, leva-a a um lugar isolado onde o garoto será encontrado. Após isso, ele a estupra enquanto está semidormente, assim consumando o matrimônio."

(III-5-26)

"Após perfurar o sexo de um garoto, ele é mantido sob a água enquanto o sangue correr."

(VII-2-16, sobre uma técnica para aumento de pênis)

A obra

The Complete Kama Sutra

Vatsyayana, trad. Alan Daniélou, Park Street Press, 1994, 29,95 dólares