Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História

Machado de Assis: O gênio amargo

Ainda abalado pela morte da esposa, o brilhante escritor Machado de Assis impressiona pelo ceticismo, mas nega ter abandonado de vez seu lado romântico

Daniel Piza Publicado em 01/12/2005, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Parece tão frágil. Pequeno, magro, tímido, Machado de Assis me recebe em sua casa no Cosme Velho, no charmoso bairro carioca das Laranjeiras. Estamos em 1906. Já faz dois anos que sua amada Carolina morreu e, desde então, Machado tem passado a maior parte do tempo recluso, segundo me contam seus amigos. Só sai para o trabalho no Ministério da Viação e Obras Públicas, de onde costuma ir direto para a livraria Garnier. Depois de meia hora de bate-papo, volta para casa, onde atravessa as horas lendo e escrevendo. Ele também tem o hábito diário de cuidar de seu jardim e de suas borboletas, às quais já comparou seu estilo literário – ágil e inquieto, usado para desenhar seu humor melancólico. A casa é modesta, mas bem apanhada. Há uma mesa de xadrez e uma estante com pilhas de papéis e muitos livros. Consigo enxergar alguns nomes nas lombadas quando passo: Schopenhauer, Voltaire, Shakespeare, Poe... Durante a entrevista, Machado vai se soltando aos poucos. Há momentos em que até mostra a espirituosidade anterior à morte de Carolina.

História - Por que o senhor não teve filhos? Foi por não querer legar a eles nossa miséria, como está escrito nas Memórias Póstumas de Brás Cubas?

Machado de Assis - Eu bem que gostaria de ver esta casa movimentada. Desde que minha Carola se foi, nada mais aqui tem graça, nem mesmo as borboletas. Mas quero crer que o senhor não tenha vindo fazer-me perguntas de cunho íntimo.

Peço desculpas. É que parece haver tanta desesperança em suas histórias... O senhor não acha que a esperança é importante?

A esperança é importante, mas pode tornar-se um demônio, uma planta daninha que come o lugar de outras plantas melhores. A esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto.

Vejo ali um belo espelho emoldurado em madeira e me lembrei do conto O Espelho, em que a imagem do alferes, de farda, se confunde com a imagem real. Por que há tantos espelhos em sua obra?

Porque a vaidade é um tema que me fascina. Ela tem mil formas, inclusive a mais comum, a da modéstia. E os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas.

O senhor foi um poeta romântico e escreveu alguns livros românticos, em que o coração é guiado por paixões contraditórias. Por que o senhor abandonou o romantismo?

Será que o abandonei algum dia? Continuo achando, como escrevi em Ressurreição, que, para um coração desenganado, não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes consolações. E que a descrição da vida não vale a sensação da vida. Desculpe-me pelas autocitações. Mas eu mesmo sou exemplo de como é insubstituível a sensação de amar e ser amado.

Mas o senhor é tido como o escritor que rompeu com o romantismo ao escrever Brás Cubas.

É verdade, meu jovem, mas nenhuma verdade é inteira. O romantismo foi meu leite de infância, meu doce licor de juventude. Nunca apreciei o rosbife naturalista, isto sim. O realismo a que aderi em meus anos de teatro não foi uma simples oposição ao romantismo. Entre um e outro tentei trabalhar, pois no homem há lugar para todas as contradições. Os extremos se tocam.

Daí vem o seu gosto pela ironia?

Precisamente. Contraí esse gosto dos gregos decadentes, de Luciano, de Swift e Voltaire, dos céticos e desabusados. Aqui no Brasil não prezam a ironia. Preferem a chalaça, a gozação, que têm platéia cativa. Em nosso país, a vulgaridade é um título, a mediocridade, um brasão. E assim continua no regime republicano.

Muitos, porém, o acham extremamente melancólico e pessimista.

É que eles prefeririam que eu lhes dissesse que está tudo bem. Os otimistas costumam ser bobos. Eu tenho minhas rabugens de pessimismo, mas também tenho momentos de expansão alegre, ao menos na presença dos amigos próximos. De resto, prefiro ser reservado. O estilo não é o homem.

O senhor diria então que concentrou suas farpas mais agudas para a ficção?

Sou um budista desencantado, consciente de que os atos humanos têm causas secretas. O que tentei mostrar é que o ser humano vive numa escravidão moral, da qual pouco pode fazer para libertar-se, e tanto pior fica quanto mais busca dissimular sua dor. Não é só o inferno que está calçado de boas intenções. O céu emprega os mesmos paralelepípedos.

O senhor foi crítico literário, defendeu a independência da literatura brasileira, fundou a Academia Brasileira de Letras para proteger os escritores da desagregação política. Vê bom futuro para a literatura nacional?

Nossa independência não se fará em uma ou duas gerações. Mas o senhor pode observar os livros que têm sido escritos nos últimos dez ou 15 anos, como Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Minha Formação, de Joaquim Nabuco, para encher-se de ânimo. Lá na Academia temos, além desses, nomes como José Veríssimo e Olavo Bilac. Exemplos não faltarão para o futuro.

Esses amigos e colegas acadêmicos chamam-no de mestre. É bom saber que se tem a reputação de um sábio?

Agora, meu rapaz, sou obrigado a concordar com Brás Cubas. É como ele diz: “Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas”. Eu trocaria minha reputação pela vida de Carolina, que era o meu par de botas, senão minha roupa inteira. E aqui sigo aquecendo os pés como posso, suportando os remédios amargos que atenuam meus pecados do corpo. Os da alma não têm cura. A alma é tão sutil e complicada que traz confusão à vista nas suas operações exteriores.

*Daniel Piza é editor-executivo e colunista do jornal O Estado de S.Paulo e colaborador de revistas como a Bravo!, da Editora Abril. Escreveu 11 livros, entre os quais Perfis & Entrevistas, em que, além de falar com gente viva, cria conversas “imaginárias” com o poeta português Fernando Pessoa e o escritor inglês Oscar Wilde. Organizou coletâneas de Bernard Shaw e George Orwell. No fim de novembro lança, pela Imprensa Oficial, a biografia Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro.

Saiba mais

Livros

Machado de Assis, Lúcia Miguel Pereira, Itatiaia/Edusp, 1936 - Biografia que transformou a interpretação de Machado nos anos 30, mostrando como ele não era um autor “europeizado”.

Um Mestre na Periferia do Capitalismo, Roberto Schwarz, Duas Cidades, 1990 - O estudo mais citado sobre o grande romancista brasileiro. Usando conceitos marxistas, Schwarz revela o crítico social em Machado.

Machado de Assis Historiador, Sidney Chaloub, Companhia das Letras, 2003 - Mostra como Machado batalhou pela abolição como funcionário público – e levou a questão para sua ficção, ao contrário do que pensam muitos.