Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História

Pesquisadores ajudam filhos de vítimas de hanseníase a encontrar seu passado

As vítimas de hanseníase foram tratadas como prisioneiros no Brasil. Um grupo de pesquisadores quer identificar os filhos que foram afastados dos pais doentes

José Francisco Botelho Publicado em 15/03/2012, às 15h24 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Filhos Hanseníase - Arquivo Aventuras
Filhos Hanseníase - Arquivo Aventuras

Desde que se conhece por gente, a assistente social Teresa Oliveira sempre desconfiou que era adotada. Não que tivesse problemas com os parentes - amava os pais e teve uma infância feliz em São Paulo. Ainda assim, não podia deixar de notar certas diferenças - todos os familiares tinham cabelos lisos, e os dela eram crespos. E havia a sensação estranha de que a história de sua vida não estava bem contada. "Eu sabia, desde os 3 anos de idade, que havia algum segredo envolvendo minha origem biológica", diz Teresa, hoje com 56 anos. A dúvida permaneceu até a morte dos pais, em 1993. Só então seu irmão de criação contou a verdade. Uma verdade mais terrível do que ela jamais havia imaginado. Teresa nasceu no Hospital-Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes. Não era um hospital como os outros - era um local de isolamento, para pacientes com hanseníase. A mãe de Teresa, Maria José Amélia - assim como milhares de vítimas da hanseníase no Brasil - foi internada à força. Engravidou dentro do hospital e, logo após o parto, mãe e filha foram separadas e nunca mais se viram. Levada para outra instituição, Teresa foi adotada ainda bebê.

A história de Teresa é uma entre muitas tragédias familiares causadas por uma política sanitária que vigorou no Brasil de 1920 a 1967. Uma política que era vista como medida essencial à saúde pública, mas que, na prática, separou e traumatizou mais de 50 mil famílias. Sucessivos governos aplicaram o sistema de "isolamento compulsório" às vítimas de hanseníase, doença cercada de preconceitos e conhecida por um nome assustador: lepra. Mesmo após a descoberta da cura, graças ao médico norueguês Gerhard Hansen, que deu nome ao bacilo causador do mal, em 1873, as sequelas sociais permaneceram.

Tradicionalmente associada à punição divina, a hanseníase já existia antes de a Bíblia ser escrita, claro. Seus sintomas eram descritos na Índia e no Japão, entre os séculos 15 e 10 a.C. No Oriente Médio, foi uma praga endêmica por séculos. Nas Escrituras, a doença é mencionada várias vezes - há famosos personagens bíblicos afetados, como o mendigo Lázaro, que mais tarde foi canonizado pela Igreja e se tornou o "padroeiro dos leprosos". "Durante séculos, não houve explicação para o surgimento de um mal tão cruel, que não apenas cobria seu portador de chagas, mas podia fazê-lo até perder partes do corpo", explica Éverton Quevedo, historiador do Museu da História da Medicina (MUHM), em Porto Alegre. "Por isso, muitos acreditavam que o doente estava sendo punido por um pecado grave e podia contaminar quem estivesse próximo. Só havia uma coisa a fazer: isolar os impuros."

Os bebês, separados de seus pais logo depois do nascimento (Arquivo Pessoal)

No Antigo Testamento, há passagens determinando que os leprosos vivessem afastados, em lugares desertos. A prática do isolamento ganhou força na Idade Média. Quando a lepra era diagnosticada, a vítima era obrigada a assistir a uma missa fúnebre e um enterro simbólico celebrando a própria morte antecipada - rituais que excluíam o doente do convívio e o lançavam em uma sombria região intermediária entre vivos e mortos. Depois, eram obrigados a andar balançando um chocalho ou um sino para anunciar sua presença. Muitos iam viver em leprosários para esconder as marcas da desgraça.

O Brasil teve leprosários desde o século 17 - como no resto do mundo, os locais eram mantidos por doações e administrados por ordens religiosas. "Os religiosos estavam menos preocupados com a saúde do corpo do que com a salvação das almas", explica Quevedo. Nessa época, não havia lei obrigando as vítimas de hanseníase a viverem isoladas - algumas habitavam acampamentos nas matas, outras viviam como mendigos nas cidades. No fim do século 19, países como os Estados Unidos e a Noruega passaram a substituir os leprosários por hospitais-colônia. "Essas colônias eram vistas como uma forma mais 'civilizada' de isolar os pacientes. Em vez de ficarem largados à própria sorte, receberiam cuidados médicos e viveriam num sistema ordenado e racional", afirma Quevedo. Ou seja: dos braços da Igreja, passariam aos cuidados da ciência. Mas o abraço da Razão não foi lá dos mais afetuosos.

No tempo da Coroa portuguesa, o estado mal interferia na saúde pública - os ricos pagavam seus médicos, e o resto ficava ao deus-dará. Além da hanseníase, várias enfermidades se tornaram endêmicas no país, como a ancilostomose, a malária e a doença de Chagas. Essa insalubre confusão foi sendo domada a partir de 1904, por campanhas de saneamento público. Muitas vezes de forma violenta: pessoas eram vacinadas à força, bairros considerados "infectos" eram postos abaixo. A ideia de sanear o país na marra continuou no governo de Getúlio Vargas. Em 1934, o Ministério da Saúde ordenou a construção de cerca de 30 hospitais-colônia no Brasil. Sempre distantes das cidades, as colônias seguiam um modelo parecido. De um lado, havia uma "zona limpa", com casas para os diretores, médicos e enfermeiros. De outro, ficava a "zona suja" - um vilarejo esquecido do mundo, com ruas, casas, igrejas, armazéns, cinemas, oficinas, cemitérios e até cadeias.

A direção dos asilos estimulava os internos a casarem uns com os outros e os pacientes em razoáveis condições físicas trabalhavam. "Havia de tudo: hortas, sapatarias, padarias, pomares de frutas, currais com porcos, vacas de leite, olarias, carpintarias", conta o assistente social Jaime Prado, que trabalhou durante 36 anos no hospital-colônia Aimorés, em Bauru, São Paulo. "Os internos produziam tudo o que consumiam. Os mais saudáveis construíam prédios e pavimentavam as ruas." Nessa cópia do mundo, faltava um elemento crucial - liberdade. Em alguns asilos, havia até mesmo toque de recolher. Quem se rebelasse ia preso. Os guardas que impediam as fugas também eram doentes. "Quando chegava algum paciente grandalhão e em bom estado de saúde, era cooptado para integrar a guarda", diz Jaime Prado.

História sem fim

No Brasil do pós-guerra, funcionários da Vigilância Sanitária circulavam em camburões com as temidas iniciais D.P.L. - Departamento de Profilaxia da Lepra. Denúncias anônimas podiam levar ao internamento de famílias inteiras, capturadas na rua, amarradas e levadas embora, sem tempo para se despedir. Como Maria José Amélia, muitas pacientes namoraram, casaram e tiveram filhos dentro das colônias. E todas foram separadas de suas crianças. Os filhos (nascidos fora ou dentro das colônias) eram enviados para instituições chamadas preventórios. "Fui separada de meus 4 filhos - 3 meninas e 1 menino", conta Juracy Brizola. Hoje com 82 anos, ela foi internada na colônia Itapuã, no Rio Grande do Sul, juntamente com o marido, quando tinha 28. "O pessoal do preventório trazia as crianças aqui a cada 6 meses. A gente só se via de longe. Eles ficavam na zona limpa, e eu, na zona suja. Tinha uma cerca de arame entre nós. Se um dos meus filhos tentasse estender a mão e me tocar, era espancado." O isolamento compulsório acabou na década de 60. "O próprio governo chegou à conclusão de que o sistema não funcionava", conta Juliana Serres, professora da Universidade Federal do Pampa, que pesquisou o hospital-colônia de Itapuã. "As pessoas tinham tanto medo de serem internadas que acabavam escondendo os sintomas. A doença continuava progredindo, mas em segredo."

Mesmo após o advento da cura, muitos pacientes continuaram vivendo nas colônias. Maria José Amélia ficou em Santo Ângelo até 1988 - quando partiu rumo a São Paulo, em busca da filha. Mas jamais conseguiu reencontrá-la. "Até hoje, não conheço o destino final de minha mãe", afirma Teresa.

Reparação simbólica

Anos após o fim do isolamento compulsório, o Estado brasileiro admitiu que havia cometido um erro. Em 2007, foi aprovada uma lei concedendo indenizações aos pacientes internados nos hospitais-colônias. O valor é de 750 reais mensais vitalícios - o dinheiro pode não ser muito, mas a carga simbólica é grande. Agora, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) luta para que o ressarcimento seja estendido aos filhos de ex-internos. "O Estado brasileiro cometeu um crime contra a humanidade ao isolar os doentes", diz Artur Custódio, do Morhan. Nem sempre é fácil fazer a identificação dos filhos: muitas das crianças nascidas em hospitais-colônias tiveram certidões de nascimento irregulares, e outras tantas foram adotadas sem os devidos trâmites legais. Em colaboração com o Inagemp (Instituto Nacional de Genética Populacional), o Morhan está montando um banco de dados genéticos para identificar pessoas que tenham sido separadas de sua família pelo isolamento compulsório. "A inspiração veio do movimento das Avós da Praça de Maio", explica a médica geneticista Lavínia Schüller-Facini, do Inagemp. O programa já tem 11 mil pessoas cadastradas.