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Sambaquis: castelos de areia, conchas e mortos

Construídos camada a camada, há 8 mil anos, pelos primeiros povos conhecidos do Brasil, os sambaquis serviam de moradia, cemitério e palco de festas. Mas sua história ainda é um mistério

Juan Torres Publicado em 18/06/2009, às 06h45 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Eles se elevam na paisagem como simples colinas à beira-mar, mas ainda guardam segredos que desafiam os estudiosos. Não são acidentes da natureza. São construções frutos de um trabalho de formiga executado durante anos, que podia passar de geração em geração. Esses montes, que parecem dunas cobertas de grama, foram feitos com pequeníssimos fragmentos, principalmente conchas, em pedacinhos, em lascas, inteiras, depositadas umas sobre as outras, num esforço obstinado e caprichoso. São os sambaquis, nome formado de tamba, que em tupi significa concha, e ki, amontoado. A maioria mede até 6 metros, mas, em Santa Catarina, já foram encontrados alguns com 30 e até 70 metros, a mesma altura do vão central da ponte Rio-Niterói e bem maior que ada Estátua da Liberdade (46 metros). Às conchas, somavam-se areia, ossos de peixes, restos de fogueira e ferramentas, e também os corpos dos mortos da comunidade. Esses materiais iam formando camadas e constituindo plataformas elevadas que, hoje, são um extraordinário registro dos grupos pré-históricos que viveram há cerca de 8 mil anos no Brasil.

Exímios conhecedores do mar, eles ocuparam uma grande parte do litoral e foram senhores desse espaço até a chegada dos índios tupis à região, por volta de 2 mil anos atrás. O que permitiu que arqueólogos no século 21 se debrucem (na verdade, escalem) sobre os costumes desses povos foi, exatamente, o costume enigmático que tinham de construir morros, os sambaquis.

A quantidade de conchas nesses sítios é tamanha que, até meados da década de 80, pensava-se que vinha delas o alimento preferido pelos seus habitantes. Hoje, sabe-se que podiam até aproveitar como tira-gosto
os berbigões, ostras e mexilhões encontrados na praia, mas seu prato principal era mesmo o peixe. O surgimento das colinas artificiais não foi casual, nem efeito do mero descarte de resíduos alimentares, como se acreditou durante muito tempo. Atualmente, os estudiosos concordam que sua construção teve um propósito.

O desafio, agora, é conseguir decifrar que propósito era esse. As pesquisas ainda não chegaram a uma conclusão, mas levantaram várias hipóteses. Os sambaquis podem ter sido um amontoado sobre o qual vivia uma população confusa, que ia largando tudo sob si (lixo, comida, restos de mortos), ou um tipo de cemitério, ou um ambiente misto, loteado em áreas destinadas a diferentes funções, ou, ainda, podem ter servido a rituais e como altivo símbolo de status.

A partir do sul do país, os sambaquis estão presentes numa faixa contínua, desde o balneário de Torres (RS) até Cabo Frio (RJ). Desse ponto em diante, os registros passam a ser pontuais, no litoral baiano, no Piauí, Maranhão e Pará. Mas pode haver mais. "É muito provável que existam sambaquis no Espírito Santo e no restante do Nordeste, mas há pouquíssima pesquisa nessas regiões", afirma Maria Dulce Gaspar, professora do departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das principais especialistas no assunto no Brasil. Segundo ela, havia, há dez anos, cerca de mil sítios cadastrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). "Mas, para obter o número real, podemos multiplicar esse número por cinco, seis ou sete. Eu não me surpreenderia se fosse multiplicado por dez", diz.

Muitos sambaquis não resistiram ao tempo, atingidos pela mão dos homens ou engolidos pelo mar. Foram destruídos por indústrias, que os utilizaram como matéria-prima para produção de cal, ou pela urbanização das cidades costeiras. Algumas plataformas também podem ter variado de nível ao longo dos anos e, rebaixadas, submergido sob as ondas. Com isso, ainda haveria muita coisa encoberta pelas águas, à espera da evolução das tecnologias de exploração.

Razão secreta

Os estudiosos têm mais dúvidas que certezas, quando o assunto são sambaquis. A principal questão é, exatamente, saber por que razão essa população praieira empenhava tanto tempo e esforço em construí-los. Para responder a ela, há várias hipóteses. Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que essa forma de ocupação do espaço predominou no litoral brasileiro durante cerca de 5 mil anos. Um mesmo sambaqui, o Jabuticabeira-II, de 6 metros de altura, 400 metros de comprimento e 200 metros de largura, em Jaguaruna (SC), esteve ativo durante mil anos. Ou seja, morros desse tamanho não se construíam da noite para o dia. Eram necessárias gerações e gerações, que iam formando milhares de camadas de sedimentos, em diferentes períodos históricos.

Durante muito tempo, os arqueólogos imaginaram que os sambaquieiros viviam em cabanas instaladas em cima desses morros. Conchas, ossos de peixe, lascas, ferramentas, esqueletos e buracos de estaca, todos esses elementos misturados seriam indícios de que eles não separavam os ambientes destinados a ações como comer, despejar o lixo, enterrar os mortos. Faziam tudo no mesmo lugar. Recentemente, no entanto, os estudiosos fizeram novas pesquisas, reviram os estudos, mudaram de ideia e apontaram outros cenários.

De acordo com um deles, os sambaquieiros poderiam viver em uma parte específica dos morros e depositar os restos de comida (ossos e onchas) em outra. "Ninguém faz lascas para sentar em cima", acredita Maria Cristina Tenório, arqueóloga do Museu Nacional. Escavações feitas no sítio do Condomínio do Atalaia, em Arraial do Cabo (RJ), mostraram "uma nítida divisão entre área de habitação e de descarte, descoberta que nos
fez rever a afirmativa de que esses grupos tinham suas casas sobre o próprio lixo, hipótese defendida por muitos arqueólogos", escreveu ela, em seu artigo "Os fabricantes de machados da Ilha Grande". Há ainda outro estudo que contesta a teste do multiuso para os sambaquis. As escavações conduzidas por Madu Gaspar em Jabuticabeira-II sugerem que ele fosse usado apenas como cemitério. Calcula-se que estejam ali nada menos que 43 mil corpos enterrados, equivalentes a uma média de cerca de 1500 sepultamentos por geração. Isso permite supor que, em alguns casos, haveria uma separação de funções entre os sítios. "A ideia, agora, é desenvolver mais estudos para saber se o Jabuticabeira-II é uma exceção ou se é um modelo usado apenas como cemitério. Calcula-se que estejam ali nada menos que 43 mil corpos enterrados, equivalentes a uma média de cerca de 1500 sepultamentos por geração.
Isso permite supor que, em alguns casos, haveria uma separação de funções entre os sítios. "A ideia, agora, é desenvolver mais estudos para saber se o Jabuticabeira-II é uma exceção ou se é um modelo para os outros sítios”, diz Madu. As novas interpretações também afirmam que montanhas de conchas mais altas, despontando na paisagem, funcionariam para representar status na hierarquia da comunidade. Deviam pertencer, numa hipótese, às famílias mais poderosas. Os arqueólogos arriscam imaginar que, em cada morro, a população estabelecida não deveria passar de algumas centenas de habitantes. Possivelmente de uma mesma família, embora não se possa dizer com certeza.

Festa para os mortos

Esses povos pré-históricos comiam vegetais, mas sua dieta vinha essencialmente do mar. Hábeis pescadores, mergulhadores de águas profundas, navegavam de canoa e chegavam a capturar tubarões, baleias, golfinhos e arraias. "As inserções musculares nos ossos deles, as marcas deixadas pelos músculos, são muito acentuadas, além de os esqueletos serem robustos", diz Diogo de Cerqueira Pinto, mestrando do Museu Nacional. E eles também escolhiam, para se instalar, lugares bem servidos pela natureza, com mar, mangue, enseadas e matas. Essa diversidade ambiental lhes garantia o necessário para sobreviver: peixes e pequenos mamíferos para alimentação, madeira para canoas e cabanas.

As conchas serviam para os sambaquis e para rituais funerários. Segundo Madu Gaspar, o calcário retarda o processo de decomposição dos ossos - e permite que hoje eles possam ser observados e estudados. Esculturas de pedra e outros materiais, como colares de dentes de diversos animais (porcos-do-mato, tubarões e jacarés), eram enterrados com os mortos. As pessoas de maior prestígio no grupo ganhavam mais ornamentos, penas e oferendas de comida. Sobre os corpos soterrados, os sambaquieiros acendiam uma fogueira e faziam uma festa.

De onde eles vieram, não se sabe. "Acredito que tenha existido uma cultura marítima muito antiga, que não sabemos de onde partiu, e que alguns ramos possam ter surgido no interior do país. Mas ainda falta informação para localizarmos as origens desses grupos", diz Maria Cristina Tenório, lembrando que sambaquis não são uma exclusividade da costa brasileira. Aparecem em países como Argentina, Chile, México, Estados Unidos, Japão e Dinamarca. Mas a falta de comunicação entre pesquisadores e a desigualdade no investimento entre os países atrasa os estudos.

As camadas superiores (portanto, mais recentes) de muitos sítios apresentam restos de cerâmica. Esse material não era produzido pelos
sambaquieiros, com exceção daqueles do Nordeste, que dominavam a técnica. Isso significa que, em algum momento, começou a haver contatos com povos tupi e jê. Outras mudanças em rituais de sepultamentos, como a prática de cremar os corpos, também são indicativos de uma aculturação. "Na ilha de Cabo Frio [em Arraial do Cabo] e em Saquarema, no Rio de Janeiro, há esqueletos cremados de sambaquis, todos com menos de 2 mil anos, sendo que a cremação é característica do grupo jê [ramificação do tupi]. Por isso, é mais fácil falar em aculturação que em guerra", diz Cerqueira Pinto. Esse processo se estendeu até o ponto em que, na chegada dos portugueses, não havia mais nenhum povo dos sambaquis para contar a história.

Artesãos dos escombros
Sambaquieiros fizeram esculturas, machados e peças de cerâmica

Sabe-se que os sambaquieiros, de norte a sul, eram pescadores, untavam conchas, construíam morros e ali enterravam seus mortos. Mas desde a função dos sambaquis até as habilidades manuais desses grupos, passando por rituais de sepultamento e de manejo de vegetais, há diferenças marcantes de uma região para outra. Por exemplo, no artesanato criado com a matéria dos sambaquis. Ao sul do Vale da Ribeira, em São Paulo, faziam esculturas de pedra, os chamados zoólitos, que chamam a atenção pelo polimento perfeito e pela quantidade de detalhes. Em algumas reproduções de peixes, distingue-se a espécie e até o sexo do bicho. Outros motivos mostram figuras geométricas ou rodas dentadas. Os zoólitos são tão bonitos quanto raros. Até agora, só foram encontradas 220 peças. No Rio de Janeiro, por sua vez, os grupos fabricavam lâminas de machado. No sítio Ilhote do Leste, na ilha Grande, Maria Cristina Tenório, arqueóloga do Museu Nacional, estima que teriam sido polidas mais de 200 mil pedras para servirem como lâminas. Ainda hoje, caminhando na região, pela praia do Aventureiro, podem ser vistos os blocos de pedra usados para fabricar essas ferramentas. Como não há sinais de conflitos internos ou com outros grupos, acredita-se que essas ferramentas serviam para cortar a madeira para a construção de canoas e cabanas, ou em trocas com grupos de outros sambaquis próximos. No Nordeste (Bahia, Pará e Maranhão), os escassos estudos feitos até agora encontraram cerâmicas. Os pesquisadores não sabem explicar, até hoje, por que só os grupos dessa região desenvolveram essa técnica. Cristiana Santana, arqueóloga da Universidade do Estado da Bahia, diz que, no litoral norte do estado, encontraram material em camadas de 4300 anos a 3500 anos atrás. Já na baía de Todos os Santos, há cerâmicas mais recentes, de 2800 anos.