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Sangue no mar, azeite em terra

A caça às baleias cumpriu papel importante na economia do Brasil colonial. Estimulou a ocupação do litoral e ajudou a iluminar a nação

Érica Georgino Publicado em 26/08/2010, às 06h21 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Sem que o baleote perceba, a embarcação se aproxima - os caçadores espreitavam o momento em que o filhote se afastaria da baleia mãe. De pé na proa do barco, o arpoador arremessa sua arma assim que a cria emerge. O animal tinge a água de sangue, tentando livrar-se do arpão de quase 3 metros de comprimento cravado em seu lombo. A fêmea ouve os gritos e nada para tentar protegê-lo, mas a ponta do instrumento funciona como anzol e cordas o retêm junto ao barco, que balança violentamente a cada investida da mãe. O arpoador mais uma vez aguça a mira. Ela, enfim, é alvo fácil. Assim que é arpoada, o resto da tripulação atira lanças de ferro. A baleia precisa sangrar muito para desistir da luta. Arrasta a embarcação até por horas antes de morrer. Outros barcos então se aproximam para levar as presas à praia, à força de remos e cordas.

Ao longo de quase toda a trajetória do Brasil colonial, vários povoados litorâneos viveram cenas como essa. Entre junho e setembro, as baleias abundavam todo ano na costa brasileira em busca das águas calmas e mornas do Atlântico Sul. A obediência ao ciclo natural de reprodução as tornava vulneráveis aos caçadores, interessados em sua espessa camada de gordura. Já no século 17, produtos derivados do cetáceo, como o óleo apurado (ou "azeite de peixe") e as barbatanas tinham grande demanda no mercado europeu. Apareciam ao lado de açúcar, tabaco, algodão, pau-brasil e jacarandá na pauta de exportação para Portugal. As barbatanas eram essenciais à moda da época, aplicadas nas armações de espartilhos e chapéus, por exemplo. O óleo servia como combustível para a iluminação de ambientes públicos e privados e tinha fins medicinais, entre outras aplicações. De início, era produzido na Bahia e levado também às outras capitanias. "Quando faltava, clamavam, em desespero, as populações, por não terem com que abastecer suas candeias e se alumiar de noite", diz Myriam Ellis em A Baleia no Brasil Colonial.

Proprietário de terras no Recôncavo Baiano, Gabriel Soares de Sousa escreveu em 1587 que havia tantas baleias no litoral que, se caçadas, "se fará tanta graxa que não haja embarcações que a possam trazer á Hespanha" (sic). Relatos como esse chamaram a atenção de Filipe III, rei de Espanha e Portugal. Em 1602, o monarca concedeu a dois súditos naturais de Biscaia (tradicional região baleeira espanhola) o direito de caçar baleias nas costas do Brasil. O capitão Pêro de Urecha e seu sócio Julião Miguel trouxeram o que havia de mais avançado nas técnicas de caça. O contrato garantia a eles a exclusividade na exploração das águas nacionais até 1612. Já no ano seguinte, no entanto, a população da Bahia começou a aplicar o que aprendera com os estrangeiros.

Nas praias de Salvador, a população aglomerava-se. Esperava que tremulasse a bandeira branca anunciando a vitória da tripulação contra os animais, às vezes maiores que 20 metros de comprimento. Cerca de 80 escravos escalavam a baleia e separavam postas de toucinho com 20 a 50 centímetros de espessura. À revelia dos espanhóis, a Câmara Municipal estimulou a caça e a fabricação caseira do azeite. A qualidade do produto era baixa, mas derrubou os preços do original. Terminado o prazo do contrato, Urecha e Miguel desistiram da empreita.

A metrópole, porém, não abriu mão da fonte de tributos. Em 1614, a baleia foi decretada "peixe real" e o monopólio de exploração, reinstaurado. Ao longo dos séculos 17 e 18, o litoral brasileiro foi pontilhado pelas armações e feitorias baleeiras, como se chamavam os núcleos de exploração e beneficiamento do óleo do cetáceo. Da Bahia, a expansão seguiu rumo ao Sul, subdividindo-se nas áreas fluminense, paulista e catarinense (veja à esq.). A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (mais tarde, apenas Rio de Janeiro) era o centro administrativo do real monopólio da caça e tornou-se o principal núcleo da região.

A exploração da atividade baleeira era realizada por acordo entre a metrópole e comerciantes particulares, sob contratos que definiam a administração da caça, a licença para comércio e o preço do óleo. Aos poucos, a coroa também determinou fins político-militares: "No início do século 18, um dos meios encontrados pela coroa para garantir a defesa do litoral foi a ocupação do território. Por isso, foram enviados a Santa Catarina casais de açorianos que se dedicaram a pesca, caça e agricultura", diz Fabiana Comerlato, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. "Houve a criação de vilas que impulsionaram a povoação, um processo diferente da Bahia, em que as armações eram apenas núcleos produtivos e as pessoas nem sempre moravam na própria armação."

A atividade baleeira não tinha só peso econômico e social; alimentava crenças nas comunidades. Na Bahia, corria a superstição de que distribuir pedaços da presa favorecia as caças. Assim (e porque tinha menos valor comercial), a carne era entregue aos necessitados ou às negras quitandeiras. Salgada, alimentava escravos ao longo do ano. Uma boa safra na Bahia, por exemplo, representava 200 animais capturados em 12 meses. Mas mudanças climáticas podiam interferir nas rotas e o volume de presas caía para 60 ou 70. Nesses casos, concessionários de armações amargavam prejuízos. Definidos mais por aproximação com a corte do que pela aptidão para a atividade baleeira, esses empresários foram, ao longo das décadas, perdendo o interesse pelos contratos. Encontravam-se endividados já no início do século 19 e faltava à metrópole quem assumisse a caça e a fabricação dos derivados. Em 1817, o Rio importava azeite para suprir a demanda após a chegada da corte.

Os baleeiros careciam também de aperfeiçoar suas técnicas e sofriam com a escassez de mão de obra escrava por causa das restrições ao tráfico negreiro e da concorrência com os engenhos de açúcar. Aos poucos, ficou evidente que o modelo local estava falido. Enquanto os barcos aguardavam a arribada dos animais no litoral, os Estados Unidos avançavam sua participação na produção mundial do óleo e exploravam toda a costa do Pacífico e do Atlântico, a bordo de modernos navios-usinas. "Os americanos interceptavam as baleias em suas rotas, impedindo que a maior parte delas chegasse a seu destino final - as baías e litorais sul-americanos", afirma o historiador Wellington Castellucci Junior, autor de Caçadores de Baleia.

O embate traduzia a posição dos estados frente aos novos tempos. Os americanos seguiam os passos da Inglaterra e buscavam sua Revolução Industrial. "Os EUA precisavam de matrizes energéticas para tocar seus projetos. Aí entra o óleo da baleia", diz Castellucci. A decadência da atividade baleeira no Brasil acompanhava a política econômica de Portugal, atrelada ao Pacto Colonial. Aqui, as armações minguariam cada vez mais. O golpe final ocorreu em 1859, com a descoberta do petróleo (o querosene passou a substituir o azeite de peixe). Escravos libertos e trabalhadores pobres assumiram a atividade, que perdeu escala. No século 20, a pesca artesanal cedeu espaço ao modelo industrial de exploração, a partir da Paraíba. Pressionado pelos movimentos ambientalistas, o governo brasileiro enfim baniu a caça às baleias em 1987.

Vale ouro


Uma baleia de porte médio rendia*:

6,8 mil litros de azeite
30 t carne, barbatanas e ossada
5t espermacete**, no caso dos cachalotes

* aproximadamente

**substância do cérebro do animal, matéria-prima para a fabricação de velas especiais


Saiba mais

LIVRO
Baleia no Brasil Colonial, Myriam Ellis, Edusp/Melhoramentos, 1969
Referência obrigatória sobre o tema no país.

Caçadores de Baleia - Armações, Arpoadores, Atravessadores e Outros Sujeitos Envolvidos nos Negócios do Cetáceo no Brasil, Wellington Castellucci Júnior, Annablume, 2009
O autor narra a evolução da atividade até sua proibição, no fim da década de 1980.