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Tatuagem: À flor da pele

Símbolos de bravura, nobreza, rebeldia, divindade ou simples adornos corporais, as tatuagens estão em homens e mulheres desde os primórdios da civilização

Celso Miranda Publicado em 01/04/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Está fazendo 238 anos. Agora mesmo em abril. Era uma manhã de sol de 1769, quando o enorme navio Endeavour contornou o pequeno istmo de areia branca e algumas pedras salientes e adentrou uma aprazível baía. Ali, o comandante James Cook conduziu as manobras do poderoso três-mastros da Marinha britânica e ancorou. Enquanto isso, na praia ensolarada uma gente bronzeada se juntava para ver o que acontecia. Era a primeira vez que aquela ilhota, no meio do oceano Pacífico, recebia visita tão ilus­tre. Após meses no mar, sem comer nada fresco, sem banho ou água limpa, Cook não precisou pensar muito para resolver desembarcar, mas, por via das dúvidas, mandou uma pequena expedição na frente para testar os ânimos dos nativos. Quando viu que sua tripulação não era trespassada por setas nem caía morta vítima de feitiçarias, e que, pelo contrário, confraternizava com os nativos e deles recebia flores e frutas, o experiente capitão inglês encheu o peito de coragem e decidiu: bom, é hora de descobrir o Taiti. Entre a paisagem exótica, no entanto, uma coisa chamou-lhe a atenção mesmo antes de pousar a bota na areia: os estranhos desenhos que os locais traziam gravados na pele. Curioso, Cook quis saber o que eles significavam e como eram feitos. Descobriu o que parecia ser um ritual sagrado e doloroso, no qual os taitianos cutucavam uns aos outros com uma ferramenta feita de madeira e um pente de ossos afiados. Para furar a pele e introduzir a tinta escura e, assim, formar os desenhos, os nativos batiam com um pedaço de pau na parte de trás do instrumento, pressionando a agulha na carne do sujeito. Por causa do som produzido por essas batidas repetidas (tá-tá, tá-tá, tá-tá) os nativos chamavam a coisa toda de tatau.

Nos dias seguintes, o capitão Cook anotou em seu diário, ao lado dos vários retratos que mandou fazer de homens e mulheres com corpos desenhados: tattow. Nascia a palavra tattoo (em inglês), que viraria tatuagem, em bom e velho português. A prática de fazer na pele desenhos que não podem ser apagados, porém, é muito, mas muito mais velha. “Ela é tão antiga quanto a própria civilização”, afirma a historiadora e antropóloga inglesa Jane Caplan, professora da Universidade de Oxford. “A tatu­agem surgiu em diversos lugares do mundo, em épocas diferentes e de forma independente umas das outras”, diz a especialista, autora de Written on the Body – The Tattoo in European and American History (“Escrito no corpo – A tatuagem na história européia e americana”, inédito no Brasil).

O primeiro tatuado de que se tem notícia é um desconhecido, que viveu há cerca de 5 300 anos, cujo corpo congelado foi encontrado nos Alpes, entre a Itália e a Áustria, em 1991. Apelidado de Ötzi, ele apresentava alguns traços azulados desenhados nas costas, uma cruz atrás do joelho esquerdo e faixas no tornozelo direito. Ao todo, Ötzi tinha 57 tatuagens, que os especialistas acreditam ter significados religiosos ou místicos. “Certamente não são adornos, mas talvez servissem de amuleto, ou como terapia contra a dor. Dada a localização das perfurações, achamos que elas possam fazer parte de um tratamento médico primitivo”, diz Konrad Spindler, arqueólogo austríaco que chefiou uma das equipes que pesquisa os restos mortais do pobre Ötzi.

Se o primeiro homem foi Ötzi, a primeira mulher tatuada foi a princesa Amunet, encontrada em Tebas, no Egito. Sacerdotisa de Hathor, a deusa do amor, ela viveu por volta de 2000 a.C. e em seu corpo mumificado foram encontrados desenhos enigmáticos, destacando-se uma elipse tatuada na barriga, que os especialistas acreditam estar ligada a algum ritual de fertilidade. Outros que acreditavam nos poderes mágicos das tatuagens eram os membros de um povo que viveu no norte da Europa e a quem o historiador grego Heródoto, no século 5 a.C., chamou de pictos (do latim pictum, que quer dizer, veja você, “pintado”). Os pictos, que chegavam a cobrir o corpo inteiro, ganhavam suas tatuagens por atos de bravura. Ou seja, quanto mais tatuados, mais corajosos eles deviam ser. “Eles acreditam que os desenhos lhes conferem força e que ficam gravados em suas almas, o que permite que sejam identificados depois da morte por seus antepassados”, escreveu Heródoto.

Marinheiro só

Na América, muito antes do descobrimento, os índios já usavam pinturas corporais, incluindo as indeléveis, ou seja, as que não dá para apagar, como formas ritualísticas. No Brasil, os kadiwéus fotografados pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, na década de 30, tatuavam-se como os animais de quem desejavam obter alguma característica: a onça para ter coragem, os pássaros de quem almejavam a beleza. Na Amazônia, os meninos ianomâmis são pintados e perfurados para demonstrar coragem. As meninas waujás, do Xingu, pintam os seios e a barriga para indicar que já menstruaram e se tornaram mulheres. Mas, apesar da proximidade, não foi deles que herdamos nossas atuais tatuagens. Então como as tatuagens dos polinésios chegaram até as barriguinhas durinhas das meninas e às pernas cabeludas dos meninões do Big Brother? Segundo Jane Caplan, é hora de voltar ao capitão Cook e a seus companheiros de viagem: os marinheiros.

Segundo ela, que em seu livro mapeou a trajetória da tatuagem desde sua origem, a data de nascimento da tradição que chegou até nós é mesmo a viagem do Endeavour, no fim do século 18. “Se hoje a tatuagem se difundiu pelo mundo, devemos isso aos ingleses. Mais precisamente aos marinheiros ingleses”, afirma. Mas quem está pensando num Daniel Craig (o bonitão que assumiu o posto de James Bond) metido num uniforme branco pode ir tirando o cavalo-marinho da chuva. Os marujos daquela época eram pouco mais que piratas, beberrões e briguentos. Homens rudes, que passavam meses, às vezes anos, longe de casa, se arriscando por lugares exóticos e até então inexplorados que iam do Caribe à Nova Zelândia, do cabo Horn ao mar do Japão. “As tatuagens de dragões, serpentes-marinhas e sereias eram feitas pelos marinheiros como prova de suas aventuras e coragem demonstrada diante do desconhecido”, diz a historiadora. Nas costas e braços dos marinheiros, as tatuagens ganharam o mundo seguindo a rota dos navios, de seus tripulantes e seus desejos. Em pouco tempo, o hábito havia se espalhado pelo submundo, tatuado na pele de prostitutas, lutadores de rua, piratas, malfeitores de toda espécie e presidiários.

Contra a corrente

No Japão, também parece ter havido uma tradição ancestral da tatuagem, já que foram encontradas estatuetas que mostram que desenhos na pele eram praticados há pelo menos 2500 anos. No entanto, não há muitos indícios de o que essa tradição significava, se eram desenhos permanentes ou, ainda, como eram feitos. “A tatuagem oriental hoje conhecida e espalhada pelo mundo inteiro não é tão antiga e vem de uma tradição importada dos chineses e os coreanos, que durante o período Edo, entre os séculos 17 e 19, eram os únicos autorizados a entrar no país, pelo porto de Nagasaki,” diz William Seii, pesquisador norte-americano. “Na época, a tatuagem era utilizada, ainda, por prostitutas e cortesãs, que escreviam no braço o nome de seus amantes e no cotovelo faziam pontinhos coloridos em número equivalente à idade dos parceiros.”

No início do século 19, época de grande repressão militar e crise no sistema feudal dominado pelos xoguns, uma famosa novela chinesa chamada Suikoden tornou-se popular no Japão. No enredo, 108 heróis da cavalaria imperial da China se rebelavam contra o governo em favor da população pobre. Pelo menos 18 desses guerreiros eram tatuados. “Acredita-se que, a partir da difusão do Suikoden, os japoneses adquiriram o hábito de se tatuar”, explica Seii. Quem não viu essa moda com bons olhos foi o governo Edo, que proibiu o costume mas não conseguiu impedir que sociedades secretas, como os machi-yokku, se tatuassem em locais escondidos sob a roupa. Segundo o historiador ameri­cano David Kaplan, autor de Yakuza: Japan’s Criminal Underworld (“Yakuza: o submundo do crime no Japão”, sem versão em português), essa seria uma das possíveis origens da tradição da conhecida máfia japonesa, cujos membros tatuam o corpo inteiro, como sinal de lealdade, sacrifíci , elas eram literalmente atrações de circo, onde pessoas totalmente tatuadas dividiam o picadeiro com anões, gêmeos siameses e mulheres barbadas, nos chamados freak shows. A mais famosa dessas atrações tatuadas foi o Grande Omi, ou o Homem-Zebra, que se apresentou nos circos americanos até 1912. Omi tinha o corpo completamente coberto por tatuagens, num trabalho que levou sete anos para ficar pronto. Ao todo foram 500 milhões de picadas com o tatuógrafo, inventado por Samuel O’Reilly (na verdade, uma adaptação de uma máquina de pintar patenteada por Thomas Edison, em 1871).

Foi só a partir dos anos 1950 que a tatuagem começaria a deixar para trás sua fama de maldita. Nessa época, o mundo começava a virar de pernas para o ar. As cidades cresciam como nunca, o mundo ficava menor, as mulheres trabalhavam e tornavam-se donas dos próprios narizes, o sexo deixava de ser um assunto proibido, as drogas deixavam os guetos, a arte e a literatura ficavam mais bagunçadas, menos organizadinhas, e nascia um novo tipo de gente: o jovem. Parece loucura, mas até aquela época não existia uma “cultura jovem”. As pessoas nasciam, comiam mingau de aveia e cresciam para serem iguais a seus pais. A TV, a publicidade e o rock’n’roll são dessa época. A década de 50 desembocou nos loucos anos 60, quando tudo quanto é símbolo de contestação, dos cabelos compridos às tatuagens, dos brincos às drogas, foi tomado pelos jovens da classe média e deixou os guetos. E então vieram o surfe, o rock, o punk, o rap, cada vez mais rápido, cada vez mais rápido...

Hoje todo mundo quer ser jovem. Todo mundo quer se diferenciar. Ou seja, a tatuagem tem tudo a ver com os dias de hoje. Para alguns, é a transgressão que atrai. Fiéis aos velhos marinheiros, queremos demonstrar nossa coragem e nossa disposição para a aventura de ir a lugares nos quais ninguém esteve. Para outros, é a moda, aquela vontade aparentemente paradoxal de se diferenciar e de pertencer a um grupo. Para outra turma, ainda, o legal é a mistura e o fascínio de diferentes culturas e histórias, que junta Japão e Egito, ianomâmis e pictos numa tribo do tamanho do mundo. Um mundo que cabe na palma da mão. Ou no ombro, no tornozelo, em qualquer pedacinho de pele.

Até tu, Vitória?

A paixão pela Marinha era estampada em corpos reais ingleses

No século 19, a Inglaterra era um império global, tipo os Estados Unidos de hoje. Os ingleses estavam em todos os lugares ao mesmo tempo graças à poderosa Marinha de sua majestade, na época a rainha Vitória, que reinou de 1837 até 1901, quando morreu. A chamada Era Vitoriana ficou conhecida pela rigidez dos costumes e pela extrema discrição. Nada que pudesse indicar o costume da família real de se tatuar. O primogênito de Vitória e futuro rei, Eduardo VII, tinha uma cruz de malta, uma âncora e um dragão tatuados nos braços. Um tradição entre os oficiais da Marinha britânica. A mulher de Eduardo, a princesa Alexandra da Dinamarca, também tinha uma tatuagem, assim como seu filho George (mais tarde também coroado George V, rei da Inglaterra), que tinha o desenho de um dragão no braço feito pelo tatuador japonês Hory Chyo, o mesmo que tatuou o czar da Rússia, Nicolau II, que, por sinal, era casado com a imperatriz Alexandra, neta de quem, de quem? Da própria: a rainha Vitória. Além de George, a rainha tinha outros dois netos tatuados, Albert Victor e Guilherme. Na época, era tão notória a mania familiar que muita gente sugere que a própria rainha tivesse uma tatuagem sob aqueles vestidões sem graça que usava. Mas Vitória, como é típico dos vitorianos, nunca confirmou (ou negou) o assunto.

Saiba mais

Livro

Tatuagem, Piercing e Outras Mensagens do Corpo, Leusa Araujo, Cosac Naify, 2005

A jornalista pesquisou a tatuagem ao longo de 5 mil anos e deu um “quê” de almanaque à obra