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Viagem ao Rio antigo

Conheça as ruas e os personagens da capital no Brasil do século 19

Reportagem Rose Esquenazi, Celso Miranda e Antonio Neto Publicado em 01/04/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Prostituta é presa em flagrante prestes a tomar o sangue de um bebê roubado de um orfanato. Não foi manchete nos jornais da época, mas bem que poderia ter sido, porque a história é real. Bárbara dos Prazeres se prostituía no Arco dos Teles, perto da praça 15, no centro do Rio de Janeiro. Ficou na ativa até contrair sífilis. Na sua ignorância, Bárbara achava que só ficaria curada se tomasse sangue fresco de bebês e crianças. Não era tão difícil assim arranjar sangue de bebê naquela época. Os hospitais e os conventos tinham uma portinha especial para as mães que queriam largar os filhos recém-nascidos. Era só colocar o bebê em uma roda de madeira e girá-la, que a criança ia direto para dentro. Bárbara só tinha que roubá-los dali.

Era mais ou menos assim que as coisas funcionavam no Rio de Janeiro do começo do século 19, entre o fim da Colônia e o começo do Império. Hoje, quem anda apressado pela rua Direita, que agora se chama Primeiro de Março, nem imagina que por ali já andaram reis e rainhas, personagens importantes da história do Brasil e mulheres usando roupas negras, pesadas e longas. Ali ficam a igreja do Carmo, a de São José e a de Santa Cruz dos Milagres. Na época de dom João VI e dom Pedro I, a rua Direita era considerada tão chique quanto Londres. Foi ali que surgiu o primeiro banco da nossa história, o Banco do Brasil.

Foi ali também, em 1834, que se fabricou e vendeu o primeiro sorvete da nossa história. Seu fornecedor era o italiano Luís Bassini, dono da confeitaria Café do Círculo do Comércio. Como ele fazia sorvete sem geladeira? Fácil: enterrava o gelo em buracos fundos, e com isso ele durava até cinco meses. dom Pedro I adorava, vivia pedindo sorvete em cone sabor pitanga, caju, carambola ou abacaxi. Era o tempo de grandes confeitarias, que reuniam a elite da sociedade.

"Matérias fecais S/A"

Mas também era o tempo dos esgotos a céu aberto e dos lagos fedorentos e cheios de moscas. Certa vez, dois empreendedores resolveram melhorar um pouco a situação. Criaram a “empresa de matérias fecais Mesquita & Moreira” e começaram a cobrar para levar os dejetos direto para o mar. Imagine como seria ruim pegar uma praia naquela época... A outra opção era mandar os escravos fazerem isso. Quando eles ficavam inconformados com a humilhação e fugiam, o Jornal do Commercio anunciava: “Procura-se escravo fugido”. Outros anúncios de classificados diziam assim: “Vende-se ama-de-leite”. Tudo isso era muito normal, já que os escravos eram uma propriedade que podia ser vendida do mesmo jeito que hoje alguém vende um videogame usado.

Para passear e conhecer as belezas naturais do Rio, era só pegar um táxi. Na verdade, eram carroças puxadas por burros chamadas de tílburis. Existiam outros tipos de “carros”: as charretes, as vitórias e as serpentinas. Quando desciam de seus veículos, as mulheres ricas apareciam na rua, num calor de 40 graus, com roupas iguaizinhas às que tinham visto em Paris: espartilhos de barbatanas de aço que apertavam o corpo e diminuíam a cintura. Por cima deles, roupas de seda, veludo, renda ou crepe da China, além dos chapéus de plumas, das flores e dos sapatos de marcas famosas. Os homens não ficavam atrás. Eles usavam colarinhos altos, jaquetão, sobrecasaca, cartolas, luvas, polainas, monóculos, sapatos da empresa Incroyable e chapéus da Chapelaria Watson. E tudo isso debaixo do sol do Rio de Janeiro.

Esse povo todo passeava na rua do Ourives, que hoje se chama Travessa do Ouvidor. Ali eles visitavam 66 joalherias, uma do lado da outra. Foi ali que surgiram as primeiras carroças que entregavam leite engarrafado em casa. Antes, cada leiteiro andava pelas ruas com sua vaca, e o morador pagava para parar o bicho por uns minutos e ordenhar suas tetas até encher o caneco. Perto dali, no Beco dos Barbeiros, estava outro tipo de profissional, o barbeiro-dentista-médico. Além de cortar o cabelo e fazer a barba, eles também arrancavam dentes – sem anestesia, que só foi inventada tempos depois. Eles também aplicavam sanguessugas no corpo dos doentes. Existia uma canaleta especial para jogar fora esse sangue tirado das pessoas. Ela está lá até hoje. Basta passear pelo Beco dos Barbeiros para mergulhar de perto nessa história fascinante.

Gangues do Rio

A capoeira chegou ao Brasil por volta de 1600 e só foi aceita oficialmente pelo governo durante a presidência de Getúlio Vargas, em 1937. Não que ela fosse considerada crime; isso só aconteceu no começo da República, em 1890. É que negro que jogava capoeira era considerado suspeito pela polícia e tinha mais chance de ser preso por outros motivos, reais ou não. Com a chegada de dom João VI, em 1808, a polícia engrossou um pouco. Em 1815, dez escravos foram detidos de uma só vez por fazer “capoeiragem”. Mas por que esse tipo de luta incomodava os governantes? Porque, em 1791, os negros do Haiti destruíram as fazendas e tomaram conta do poder. A partir de dom Pedro I, capoeirista preso fazia trabalhos forçados. Só que, por duas vezes, em 1827 e 1831, os negros foram chamados para lutar ao lado do imperador. Ganharam as brigas, mas isso só deixou seus proprietários ainda com mais medo de uma revolução.

Cidade doente

Em 1904, um pouco depois da proclamação da República, o Rio de Janeiro viveu tempos de muita revolta. Em novembro, o povo saiu às ruas para protestar contra a campanha de vacinação do governo do presidente Rodrigues Alves. Alves estava bem intencionado, só queria curar a população. Naquela época, o Rio era uma cidade doente. Não tinha quase nenhuma estrutura de água e esgoto, e isso ajudava a espalhar epidemias de febre amarela e varíola – para não falar da tuberculose. A coisa era tão feia que os melhores navios europeus pararam de desembarcar no Rio de Janeiro e começaram a ir direto para Buenos Aires, na Argentina. Para tentar melhorar a situação, o prefeito carioca da época, o engenheiro Pereira Passos, tentou derrubar bairros inteiros de uma só vez. Quando o médico Oswaldo Cruz chegou à cidade dizendo que ia entrar na casa das pessoas, levantar a roupa de todo mundo e enfiar em cada morador uma agulha antiga, que mais parecia um estilete, ninguém gostou. Foi então que a população foi para as ruas, onde ficou protestando durante dez dias. Nesse meio tempo, 67 pessoas ficaram feridas e 23 morreram.

Saiba mais

• História das Ruas do Rio, Brasil Gérson, Lacerda. Um ótimo guia para andar pela cidade e aprender sua história. A origem e a importância das principais ruas do Rio

• A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), Carlos Engênio Líbano Soares, Unicamp, 2001. Registra a vida escrava do Rio de Janeiro no início do século 18 e mostra como os negros usaram a capoeira como jogo e como arma

• Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não Foi, José Murilo de Carvalho, Companhia das Letras, 1987. Retrato delicioso sobre o Rio do começo do século 20