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Zagallo: O velho lobo da seleção

A Copa do Mundo de 1958, na Suécia, não é o marco apenas dos 50 anos do primeiro título mundial de futebol do Brasil. É também a estréia de Zagallo na seleção brasileira

Flávia Ribeiro Publicado em 01/06/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

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Aventuras na História - Arquivo Aventuras
Aventuras na História - Arquivo Aventuras

Oito anos antes de ser campeão do mundo pela primeira vez, Mário Jorge Lobo Zagallo teve uma experiência emocionalmente avassaladora numa final da Copa do Mundo. Ao lado de, estima-se, 200 mil pessoas, viu o Brasil ser derrotado pelo Uruguai em pleno Maracanã em 1950, quando o franco favoritismo transformou-se num “silêncio monumental”, nas palavras do escritor e tricolor carioca Nelson Rodrigues. Ainda jogador das categorias de base do América, Zagallo servia ao Exército e fez parte do grupo de soldados responsáveis pela segurança do Maracanã na final de 50. “Eu nem me imaginava numa final como aquela”, relembra ele. Em 1958, já um veterano com 26 anos, foi convocado pela primeira e tardia vez para a seleção brasileira, às vésperas da Copa do Mundo da Suécia. O Brasil vinha de grandes decepções, especialmente a de 1950. Zagallo era um azarão, poucos acreditavam que iria à Copa. Mas não só foi como conquistou a vaga de titular na ponta-esquerda, sendo fundamental para o esquema tático do técnico Vicente Feola. Quatro anos depois, o Formiguinha, como era conhecido, foi bicampeão do mundo no Chile. Em 1970, já como treinador, Zagallo foi tri, no México. Por fim, em 1994, nos Estados Unidos, foi tetracampeão como coordenador técnico. Uma marca difícil de ser alcançada. O Velho Lobo, como passou a ser chamado por causa de seu sobrenome, também foi jogador do Flamengo e do Botafogo. E anunciou sua aposentadoria no ano passado, após quase 60 anos dedicados ao futebol – 50 deles em íntima relação com a seleção brasileira. Patriota, conhece como poucos os caminhos para a “amarelinha”, da qual fala sempre com afeto de pai. Aos 76 anos, lembra-se com saudade da primeira Copa que ganhou, há cinco décadas, e do futebol daquela época: “Era um futebol mais arte. Havia mais prazer”.

História – Em 1950, Nelson Rodrigues identificou no Brasil o “complexo de vira-latas”, ou falta de fé nele mesmo. Quando a seleção de 1958 percebeu que era melhor que as outras?

Zagallo – De fato saímos desacreditados. Não tínhamos ganhado nada até então. Em 1950 éramos favoritos e perdemos em casa. Fomos derrotados também na Copa da Suíça, em 1954. Chegamos a Estocolmo depois de 34 horas de viagem com escalas em Recife e Dacar. Mas nós, jogadores, acreditávamos. Vencemos o Paraguai num amistoso por 5 a 1. Eu fiz dois gols. Na seleção, você só percebe que pode vencer durante a própria Copa. O primeiro jogo é fundamental. Estreamos com um 3 a 0 em cima da Áustria, deu moral para a equipe. Eu só senti mesmo [que ganharia a Copa] no jogo contra a Rússia, quando entraram o Garrincha e o Pelé e ganhamos por 2 a 0.

Você só foi convocado aos 26 anos. O caminho era mais difícil naquela época?

Tudo era mais difícil. Antigamente o jogador de futebol não era aceito na sociedade. Comecei a jogar há 60 anos, em 1948. Meus pais não queriam. Só continuei porque meu irmão interferiu, convenceu os dois de que eu tinha uma boa base familiar e que não iria me perder. Me formei técnico em contabilidade. Quanto mais jogadores com estudo e cultura, melhor para o futebol. Para ele próprio e para o treinador, que se faz entender melhor. Esse preconceito que existia melhorou com a conquista da Copa de 58. O atleta, como o artista, tem um dom. Quando está entre os melhores, vira um mito. Foi o que aconteceu. E a visão da sociedade melhorou ainda mais com a entrada maior de jogadores que tinham estudo.

É verdade que Didi, Nilton Santos e Bellini se encontraram com o dirigente Paulo Machado de Carvalho e o técnico Vicente Feola para pedir a entrada de Garrincha e Pelé, até então no banco?

Para mim, isso foi coisa criada. Eu estava dentro da concentração e não participei de reunião alguma, nem nunca ouvi falar nisso. Falavam de uma reunião para tirar o Joel. Mas éramos 22 companheiros, nunca um iria pedir para tirar o outro. Só que uma mentira que sai constantemente acaba parecendo que é verdade. Foi como em 1970, quando entrei no lugar do João Saldanha [como técnico da seleção]. Ele dizia que o Dario [centroavante, o Dadá Maravilha] foi convocado pelo [Emílio Garrastazu] Médici. Você acha que um presidente da República ia descer do pedestal para mexer na seleção? E ainda ia obrigar a convocação de um jogador para ele ficar na reserva? Quem jogou foi o Tostão. Isso foi dito para mostrar que o Saldanha saiu porque não obedeceu ao Médici. Nunca aceitei intervenção no meu trabalho.

Na Copa de 58 vocês tinham consciência de que “nasciam” aqueles que muitos consideram os dois maiores jogadores da história do Brasil?

Eu já tinha jogado contra o Garrincha e ao lado dele. Quem viu, viu. Quem não viu fica com saudade de não ter visto. Já se sabia que ele era diferente. Do Pelé, ninguém tinha idéia. A primeira vez que o vi foi na seleção. Pensei: “Quem é esse menino? Deve ser uma coisa extraordinária, para ser convocado com essa idade!” E era.

Vou repetir uma pergunta que Nelson Rodrigues fez sobre Garrincha: como marcar o imarcável?

Era desconcertante. Você sabia o que ele ia fazer, mas mesmo assim não conseguia evitar. Eu gostava de jogar ao lado dele, porque ele acabava com qualquer sistema tático do adversário. Vi outros grandes pontas, Joel, Jairzinho, Júlio Botelho... Mas igual a ele, nunca.

Na final da Copa, a atitude do Didi, de pegar a bola depois que a Suécia marcou 1 a 0 e levá-la calmamente ao meio-de-campo, foi importante para a virada brasileira?

Teve impacto. Lembro que gritei: “Didi, para que essa calma? Estamos perdendo o jogo!” Estava ansioso. Mas aquilo que ele fez foi bom para acalmar a equipe. Outro fato importante, que pouca gente fala, é que depois que a Suécia abriu o placar, na continuidade, ela atacou com Skoglund pela ponta-esquerda. O Gilmar escorregou e eu, que estava atrás do Gilmar, tirei a bola de cabeça, evitando o 2 a 0. Num jogo desses, você dá tudo. Em 1950, estava no Maracanã vendo a Copa. A primeira coisa que pensei foi naquele Brasil e Uruguai [na ocasião, perdemos a final por 2 a 1, de virada].

Como é marcar um gol em final de Copa do Mundo? E ser campeão do mundo?

Só de estar presente, o hino tocando, a bandeira tremulando, já é de arrepiar. Fazer gol? Indescritível. Você sabe que está ajudando a dar a vitória ao Brasil.

Depois da final da Copa, Nelson Rodrigues escreveu outra crônica em que dizia, sobre você: “De Zagallo diremos apenas o seguinte: estava em todos os lugares ao mesmo tempo”.

Ah, num jogo desses você dá tudo. Foi em 1958 que o apelido de Formiguinha surgiu, com a amarelinha. Eu estava em tudo que é lugar do campo. Se tecnicamente eu não era um Garrincha ou um Pelé, era o jogador mais tático.

Você foi campeão outras três vezes – como jogador em 1962, técnico em 1970 e coordenador técnico em 1994. O que a conquista de 1958 teve de singular? O que ela representou?

Foi um presente que você não esperava ganhar. Para mim, pelas circunstâncias: o Brasil nunca havia sido campeão, eu nunca havia sido convocado. Estava no lugar certo na hora certa. Para o Brasil, foi muito importante. Achavam que nossa capital era Buenos Aires. No hotel em que estávamos concentrados, na Suécia, todas as bandeiras estavam tremulando, menos a do Brasil. Eu e Joel é que percebemos, fomos à gerência reclamar. Só que não falávamos inglês, muito menos sueco. Foi na base da mímica. “Brésil!”, dizíamos, apontando as bandeiras. O gerente então apontou para uma delas, mostrando que estava ali. Sabe qual era? A de Portugal! E eu e Joel: “Portugal, no Brésil”. Até que ele entendeu. Fomos à sala dele, que abriu um livro com todas as bandeiras. Achamos a do Brasil e mostramos. Aí ele abriu um armárioe pegou a bandeira. Ele tinha a bandeira do Brasil lá, só que não sabia que era ela! Desceu a de Portugal e hasteou a nossa. Por isso que eu digo: o futebol fez muito mais pelo Brasil do que qualquer embaixada. Sem desfazer das embaixadas.

Os jogadores daquele tempo tinham mais amor à camisa que os de hoje?

Nós tínhamos muito amor. Mas esse grupo também tem. Dizem que eles têm muito dinheiro, que têm amor a isso, mas posso dizer, porque estive com eles: amor à camisa da seleção todo mundo sente: os que não ganharam muito dinheiro, da minha época, e os de hoje, que ganham.

Mesmo um jogador de seleção ganhava pouco dinheiro?

Hoje é mais badalado, é mais tudo. Um cara que nem é de seleção ganha muito mais que os maiores craques daquela época ganhavam. Você vê jogadores que foram campeões do mundo em 1958, 1962 e até em 1970 e que não estão bem. Era difícil. Vai tudo embora, acaba. Era outro ritmo. Os de hoje ganham e fazem a vida, nós não. Se eu não tivesse continuado como treinador, não sei como estaria.

Você tem saudade do futebol jogado naquela época?

Tenho. Era um futebol mais arte, com mais espaço para jogar. Hoje há grandes jogos, mas sempre com aquela coisa de “não deixa jogar!”, “pega!”. Jogador que não é bom anula o que é bom. Naquela época, havia tempo para raciocinar. Havia prazer.

Há quem diga que isso é saudosismo, que o futebol de antes era lento.

A velocidade atrapalha, porque permite que muito cabeça-de-bagre esteja jogando. Atletas que não jogariam naquele tempo. É difícil comparar épocas, mas o bom de antes jogaria hoje.

Com toda a velocidade e marcação pesada, com o pouco espaço, Garrincha teria sido Garrincha hoje em dia? Teria deixado tanta gente no chão?

Exatamente por causa da velocidade, o tombo do adversário seria mais feio hoje.

Dizem que, quando Havelange assumiu a Confederação Brasileira de Futebol [então CBD, em 1958], um relatório afirmava que o maior problema do jogador brasileiro era ser emotivo. Isso é problema ou qualidade?

Não sei te afirmar se esse relatório existiu, porque nunca li. Agora, eu sou muito emotivo e isso não atrapalhou. A emoção, a mim, favorece. Ela me coloca para cima.

Como você analisa a mudança de comportamento das torcidas daquela época e de hoje?

Com o torcedor da minha época não havia problema de arrastão, de violência nos estádios. Ele levava a família toda, era um programa de domingo. Sabia que futebol é festa. Nos últimos anos atravessamos uma fase muito ruim. Mas acho que foi momentâneo, está passando. O futebol é o maior esporte do mundo, só traz alegria. Esses que levam violência aos estádios não são desportistas e estão perdendo espaço. As famílias estão voltando.

Há 50 anos você vestiu a camisa da seleção pela primeira vez. Qual foi a emoção que você sentiu?

Foi um dia maravilhoso, vibrei muito. Desde garoto pensava naquilo. Vivia uma expectativa muito grande, porque uns dias antes da convocação houve um Flamengo e Botafogo, eu estava no Flamengo. Ganhamos por 3 a 0 e joguei muito bem. Depois, soube pelo Paulo Amaral [preparador físico da seleção, morto em maio] que a comissão técnica do Brasil estava no Maracanã e que eu estava sendo observado. Meu primeiro jogo pelo Brasil foi a vitória por 5 x 1 sobre o Paraguai, quando fiz dois gols. Depois, ainda fiz alguns amistosos antes da Copa.

Você é conhecido por ser muito patriota. Desde o início foi assim?

Isso foi aumentando com o tempo. Mas quando tocou o hino brasileiro, antes do nosso primeiro jogo na Copa, já vibrei muito. É de arrepiar. Esse momento antes de começar um jogo de campeonato do mundo é indescritível, de muita tensão. Você está representando seu país, e fora dele! O hino me arrepiou. Quando fiz o primário no Instituto de Educação, a gente cantava o hino todos os dias.A gente vai encarnando isso, o patriotismo. Então quando tocava na Copa, isso vinha ainda mais forte.

Saiba mais

Livro

À Sombra das Chuteiras Imortais, Nelson Rodrigues, Companhia das Letras, 1993

Seleção das crônicas de futebol feitas por Nelson Rodrigues para a extinta revista Manchete Esportiva e o jornal O Globo entre 1955 e 1970 – inclusive sobre a Copa de 1958.