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Notícias / Segunda Guerra

Albert Battel: o oficial nazista que traiu o partido para salvar judeus

Enfrentando seus colegas, o membro Wehrmacht arriscou a vida para salvar os prisioneiros; ele percebeu que não estava sozinho

Rodrigo Casarin Publicado em 03/08/2020, às 07h00

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Battel em foto rara - Domínio Público
Battel em foto rara - Domínio Público

“Com a absurda precisão à qual em breve nos acostumaríamos, os alemães fizeram a chamada. Ao final – Wieviel Stuck? – ‘quantas peças?’, perguntou o sargento. E o cabo, batendo continência, respondeu que as ‘peças’ eram 650, e que tudo estava em ordem. Embarcaram-nos, então, nos ônibus e nos levaram até a estação de Cárpi.

Lá nos esperavam o trem e a escolta para a viagem. E lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e absurdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana?”.

A cena e a pergunta estão em É isto um homem?, livro do judeu italiano Primo Levi. A obra é considerada um dos relatos mais brutais a respeito da talvez maior atrocidade infligida por seres humanos a outros seres humanos. A questão levantada por Levi tem muitos desdobramentos no próprio livro: como pode um homem manter o outro sem acesso até mesmo à água, fazendo com que reze para um punhado de neve cair do céu?

Como pode trancafiar o próximo em centros de trabalhos forçados submetendo-o constantemente a humilhações diversas e deixando-o praticamente sem ter o que comer, vestir, como se aquecer ou onde dormir? Como pode um ser humano tocar o outro, tal qual gado, até uma câmara e acionar o gás mortal que matava centenas, milhares de judeus – e ciganos, e homossexuais, e qualquer outra coisa contrária ao mundo idealizado pelos nazistas? Como de uma só vez?

Levi sobreviveu ao Holocausto e pôde escrever sua obra-prima, publicada em 1958. Como ele, outros judeus escaparam da morte certa, alguns graças a improváveis heróis: oficiais nazistas que, de alguma forma, sentiam-se tocados pela condição à qual seus pares submetiam outros seres humanos.

Eles decidiram contrariar as ordens vindas de seus superiores e dar uma chance para que os prisioneiros se salvassem. Um alemão étnico nascido em 1891 em Prężynka, cidade polonesa próxima à fronteira com a República Tcheca, Albert Battel, seria um deles.

Opções limitadas

Veterano da Primeira Guerra Mundial e advogado atuante, Battel se filiou em 1933 ao Partido Nazista, o único que podia atuar no país naquele ano em que Adolf Hitler foi nomeado chanceler alemão. Ao longo da carreira, já tinha dado algumas pequenas demonstrações de simpatia aos homens que eram referidos como “ratos” por seu partido.

Contrariando ordens superiores, emprestara dinheiro a um conhecido judeu em certa oportunidade. Em outra, tratou de maneira amistosa, até gentil, quando, já com perseguições em andamento, encontrou um amigo de faculdade que logo viria a carregar a estrela de Davi amarela em sua vestimenta.

O ato que gravaria para sempre seu nome na História seria bem mais dramático. Seria em 1942, quando a guerra ainda tinha três anos pela frente e a caça nazista aos judeus atingia seu auge. Estava em andamento a Solução Final. No dia 26 de julho, o primeiro-tenente Battel, então um oficial de reserva do Exército alemão e membro das forças defensivas Wehrmacht, estava em Przemysl, cidade polonesa próxima à Ucrânia.

Quem comandava as ações no gueto da região, cuidando dos judeus que trabalhavam para os militares em uma indústria de armamentos, era o major Max Liedtke, que tinha Battel como seu braço direito. Quando tropas da SS aproximaram-se da cidade para levar judeus à primeira onda de aniquilações, tiveram uma grande surpresa: foram traídos pelos seus colegas do Exército.

Amigos na ponte

Para chegar a Przemysl era preciso cruzar o Rio San. Percebendo que os outros nazistas levariam os judeus aos campos de extermínio, Battel e Liedtke ordenaram que suas próprias tropas bloqueassem a ponte utilizada para a travessia do curso d’água. Os membros da SS, claro, não deram meia-volta de mãos vazias. Enquanto avançavam sobre a ponte, encaravam os soldados comandados por Battel. Este, a certa altura, prometeu ordenar que os seus abrissem fogo contra a SS se a marcha prosseguisse.

A dizer o mínimo, a situação era tensa. Percebendo que não conseguiria manter aquilo durante muito tempo, Battel colocou em prática uma outra estratégia. Enquanto a SS tentava resolver o imbróglio na ponte, arrumou caminhões do Exército e saiu pelo gueto recolhendo os judeus que encontrava pelo caminho.

Ao todo levou entre 80 e 100 trabalhadores e suas famílias para base militar local, onde a Wehrmacht poderia garantir a segurança de todos - daqueles cento e tantos sob sua guarda, ao menos. Quando a SS conseguiu enfim chegar a Przemysl, outros seriam levados para Belzec, campo de concentração na Polônia onde cerca de 450 mil teriam sua vida abreviada.

O campo de concentração de Belzec atualmente /Crédito: Wikimedia Commons

Heinrich Himmler, o principal arquiteto da Solução Final, recebeu as notícias. E ficou furioso. Preparou um dossiê e enviou ao Partido Nazista pedindo que, após a guerra, o rebelde fosse para a cadeia.

Mas, na prática, pouco aconteceu. Com a guerra se acirrando, o caso acabou ficando em segundo plano. Battel chegou a ser promovido e enviado para uma unidade de linha de frente antes de ser dispensado do Exército, em 1944, por questões médicas. Retornou à cidade natal, e ainda assim terminou recrutado para uma milícia local formada enquanto as últimas balas do conflito eram disparadas. Capturado pelos soviéticos, tornou-se prisioneiro de guerra. Viveria.

Ele não estava só

E isso não aconteceu apenas com Battel. “Pesquisas históricas revelam pelo menos uma centena de casos documentados de soldados ou policiais alemães e membros da SS que recusaram ordens para matar judeus, outros civis desarmados ou prisioneiros de guerra. Nenhum desses alemães foi morto por recusar essas ordens e poucos deles sofreram sérias consequências.

Esses dados contradizem o discurso convencional mantido durante a guerra pelos combatentes alemães de que qualquer ordem vinda de oficiais superiores precisava ser obedecida, caso contrário as consequências seriam drásticas”, aponta o historiador David Kitterman, autor de Those Who Said ‘No’ to the Holocaust (“Aqueles que Disseram Não ao Holocausto”).

No caso mais célebre de todos, essa foi a defesa que Adolf Eichmann, responsável pela logística da Solução Final, tentou diante de um tribunal israelense em 1961, no talvez julgamento mais célebre do século 20. Defesa recusada, ele seria enforcado – a única vez em que Israel condenou um civil à morte (o único outro caso de execução no país fora de uma corte marcial).

Diversas eram as táticas adotadas por esses alemães que se recusavam a seguir as ordens superiores e dar cabo da vida principalmente de judeus, explica Kitterman. Alguns simplesmente refutavam os comandos. Outros protestavam com veemência, algo que funcionava principalmente quando as unidades da polícia ou do Exército não estavam sob controle direto das SS.

Havia até aqueles que alegavam os danos físicos e psicológicos que as ações desumanas poderiam causar ou diziam que os atos eram contrários à própria consciência, aos credos religiosos ou aos escrúpulos morais. Mais raros, poucos apelavam pedindo transferência de unidade. Também havia os que fingiam insanidade para desobedecer.

Esquecimento por décadas

Battel morreu em 1952. Sua história ficou no limbo até que o advogado israelense Zeev Goshen a resgatasse e no começo de 1981 pedisse que o rebelde fosse honrado com o seu nome na galeria dos Justos Entre as Nações, criada por Israel em 1953 para reconhecer e cultivar a memória de homens e mulheres que ajudaram judeus a escapar dos massacres nazistas e na qual está a brasileira Aracy Guimarães Rosa.

O que teria levado o oficial a contrariar as ordens superiores e resguardar os judeus que estavam sob sua guarda? Helena Lewin, doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo e professora colaboradora e coordenadora do Programa de Estudos Judaicos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro elenca no artigo Solidariedade em Tempos Sombrios alguns fatores que normalmente motivam pessoas a tomaram atitudes nobres como a do oficial alemão

“Quais teriam sido os motivos que levaram indivíduos a salvar judeus da morte e da deportação enquanto eles mesmos e suas famílias corriam perigo de vida? As respostas desses salvadores, quando inquiridos, centravam-se em um núcleo recorrente que permite compreender a ação corajosa destes indivíduos. As respostas mais frequentes eram: Foi uma decisão deliberada de se comportar de maneira civilizada; Nós fizemos o que tinha que ser feito; Qualquer pessoa faria o mesmo; É dever do homem salvar seu semelhante. Essas respostas demonstram a corajosa atitude que tomaram, sabendo de antemão dos grandes perigos que assumiam, além de revelarem a grandeza de caráter e de atitudes de solidariedade e piedade”.

“O Holocausto foi uma tragédia sem paralelos. No entanto, no meio do horror, heróis surgiram”, afirma David Kitterman. “São aqueles que disseram ‘Não!’. Aqueles que superaram a doutrinação do medo e a pressão de seus pares e se recusaram a participar de crimes contra a humanidade. A história deles mostra que era possível se recusar a participar do holocausto. Contrariando o pensamento popular, não havia um sistema automático de terror e justiça operando contra quem fazia essa recusa. A capacidade de coerção dos nazistas durante a guerra eram impotentes ou ineficazes, conforme apontam quase todos os casos documentados de gente que se recusou a assassinar humanos desarmados”.

Para Kitterman, se mais alemães tivessem feito o mesmo que fez Battel, a carnificina teria sido evitada. Os milhões de assassinados não teriam sido mortos. Famílias não permaneceriam destroçadas por gerações. E primo Levi não teria passado pelo intenso processo de desumanização que registra em seu É isto um homem?

“Imagina-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência. Ficará claro, então, o duplo significado da expressão ‘Campo de extermínio’, bem como o que desejo expressar quando digo: chegar ao fundo”.


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