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O doutor da mulher

O oncologista brasileiro Fernando Gentil revolucionou o tratamento do câncer de mama

Bia Mendes e Rodrigo Casarin Publicado em 24/10/2016, às 09h09 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

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Representação de uma mastectomia no século 17 - divulg.
Representação de uma mastectomia no século 17 - divulg.
Durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto os americanos estavam em batalha na Europa, lutando contra as tropas de Hitler e dos países do Eixo, médicos de diversas partes do planeta eram levados para Os Estados Unidos do então presidente Franklin Roosevelt para suprir a falta dos residentes que apoiavam os militares nos campos de batalha. Entre esses médicos estrangeiros um brasileiro foi recrutado, Fernando Campello Gentil. Em 1942, Gentil foi para Nova York para trabalhar no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, e chegou a ser assistente do doutor George T. Pack, na época uma das maiores autoridades em cirurgia oncológica e pioneiro no uso da quimioterapia como meio de combate ao câncer. 
Quando o conflito chegou ao fim, no entanto, os médicos americanos regressaram ao país, prontos para retomar seus postos. Os serviços dos estrangeiros não eram mais necessários, todos os médicos seriam dispensados. Contudo, como uma espécie de homenagem, decidiram escolher um dos residentes estrangeiros para que permanecesse trabalhando no hospital em Nova York. O escolhido foi o brasileiro, e Gentil se tornou o primeiro médico do país a se especializar em oncologia. Esse tempo trabalhando e pesquisando no Memorial Hospital foi essencial para que, ao voltar para o país natal, trouxesse na bagagem, além do grande conhecimento adquirido, novas técnicas de cirurgias feitas no primeiro mundo para um país em desenvolvimento.
O homem que encontrou nos Estados Unidos um novo caminho para sua vida profissional e pessoal – ele se casaria com a americana Ellen Bunker – revolucionou o tratamento do câncer de mama, foi protagonista na História do tratamento oncológico no Brasil e no mundo.

O homem
Fernando Gentil nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1920, numa família de nove irmãos. Teve uma infância confortável, seu pai era um dos donos do Banco Frota & Gentil. Aos 16 anos, foi para o Rio de Janeiro cursar medicina na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Formou-se médico aos 21 anos.
Gentil sempre gostou de esporte. Na juventude, praticava jiu-jítsu em Fortaleza, onde chegou a treinar com a família Gracie, famosa na modalidade, cujo nome se confunde com o do esporte. Durante a faculdade, no Rio de Janeiro, gostava de impressionar as moças nadando em Copacabana em dias de mar revolto. Diz-se que não era difícil impressioná-las, porque era um homem bonito. Em São Paulo, gostava de praticar tênis.
Conhecido pela refinada educação e aparência bem-cuidada, apreciava o conforto, as boas amizades, bons carros e roupas elegantes. Chegou a ser considerado, na vida social, um bon-vivant e galanteador. Entretanto, nunca levou uma vida desregrada: sempre seguiu uma rotina rigorosa, desde a faculdade. Segundo o filho Eduardo, no livro O Sonho de Carmen, Como a Sociedade Ajudou a Transformar a História do Câncer no Brasil, sua dedicação na vida era quase totalmente para a medicina. Ele só saía de casa aos domingos, quando “jogava sua partida de tênis no Clube Harmonia e no almoço bebia uma única taça de vinho”, relata o filho. E completa: “Os dias mais felizes eram os de cirurgia, quando ele acordava assoviando e às 6 horas já estava na rua. Voltava depois das 9 da noite. Ficava todo esse tempo entre o A.C. Camargo e seu consultório”. No documentário Dr. Fernando Gentil – Inovação e Pioneirismo na Cirurgia Oncológica, de João Pavese, outro filho, Fernando, conta que, embora seu pai fosse uma pessoa introspectiva, se abria muito quando o assunto era esporte. A ligação com a família era grande por meio dele, principalmente pelo tênis.    

Destaque
Perfeccionista em tudo o que fazia, tanto na vida pessoal quanto profissional, logo que se formou Gentil conseguiu a citada residência no início desta reportagem no Memorial Hospital  (uma oportunidade oferecida pelo governo americano para que médicos estrangeiros preenchessem o espaço deixado pelos americanos que estavam na Guerra). Ele foi assistente do oncologista dr. Pack, de quem recebeu o convite para continuar na residência, mesmo depois da volta dos médicos locais. Ficou no país até o fim de 1949.
Foi nos Estados Unidos, também, que sua vida pessoal mudou. Conheceu a americana Ellen Mudge Bunker, filha do proeminente diplomata americano Ellsworth Bun­ker. Ellen e Fernando se apaixonaram, namoraram e se casaram. 
Durante o período em que esteve no Memorial Hospital, foi apresentado ao cirurgião brasileiro Antonio Prudente, que visitava o hospital americano e teve referências excelentes sobre o jovem residente. Quando Gentil voltou para o Brasil, Prudente o convidou para encabeçar o projeto que estava desenvolvendo, o primeiro hospital especializado em câncer no país. 
Era uma ideia audaciosa, numa época em que falar sobre a doença no Brasil ainda era um tabu. O A.C. Camargo seria fundado em 1953, com Gentil na chefia do departamento de cirurgia pélvica. O primeiro serviço de clínica cirúrgica esteve sob sua direção desde o início. 
No hospital, o trabalho de Gentil na formação dos primeiros médicos com especialização em oncologia do país é inegável. “Ele teve papel fundamental na formação de muitos cirurgiões oncologistas que estão pelo Brasil afora”, diz no documentário o também cirurgião oncologista Ademar Lopes, que trabalhou ao lado do médico e o substituiu na direção da cirurgia pélvica no A.C. Camargo após sua morte.

Técnica revolucionária
Mesmo gerindo sua área no hospital, Gentil nunca deixou de se dedicar às pesquisas. E sua preocupação sempre foi colocar o indivíduo no centro das discussões. Com isso, entre o fim da década de 1970 e início dos anos 1980 desenvolveu uma técnica mais humana de cirurgia para o câncer de mama, que alterou definitivamente a forma como se lidava então com a doença. 
Na cirurgia que passou a fazer em suas pacientes, retirava somente o tumor e a parte do seio que estava imediatamente próxima a ele, preservando a pele, a aréola e o mamilo, e em seguida fazia a reconstrução com prótese de silicone. Esse procedimento era bem diferente do utilizado, o método preconizado pelo médico americano William Halsted, difundido em todo o mundo até então.
No século 19, com o avanço de técnicas de anestesia e de assepsia, o médico Halsted iniciou um tipo de procedimento em pacientes com câncer de mama que passaria a ser conhecido pelo seu sobrenome. Ele “desenvolveu a mastectomia radical, que removia o peito, os nós axilares e os músculos do peito para prevenir que o câncer se propagasse caso os membros fossem removidos individualmente”, relata a doutora Ananya Mandal, especializada em farmacologia clínica, no artigo History of Breast Cancer. Era um procedimento extremamente agressivo, “uma mutilação horrível, e faziam aquilo para qualquer tipo de tumor, e você não operar usando aquela técnica era quase um crime”, diz o escritor e oncologista Drauzio Varella no documentário de João Pavese.
O novo método, criado e executado por Gentil, ficou conhecido como “método conservador”, porque conservava ao máximo o corpo da mulher. Ele também apostou em implantes de próteses de silicone para preencher os seios então esvaziados pela cirurgia contra o câncer, mostrando, dessa forma, como sua preocupação com as pacientes ia muito além da doença em si – para ele, o bem-estar e a autoestima das mulheres que passavam pela operação de câncer de mama eram primordiais.
Foi um dos tratamentos mais revolucionários do câncer de mama, e, por ser tão inovador na época, era também polêmico. Quando começou a ser conhecido, o método de Gentil chegou a ser ironizado por médicos e pesquisadores de outros países. 
Em 1975, quando o médico apresentou os primeiros resultados de sua cirurgia em uma reunião entre especialistas no Hospital A.C. Camargo, foi criticado pelos defensores da técnica de Halsted: Umberto Veronesi, de Milão; Jerome Urban, responsável pela área de mama do Memorial Hospital, onde Gentil havia feito residência; e os brasileiros Adair Eiras, do Instituto Nacional de Câncer, e José B.S. Neto, do A.C. Camargo. Tempos depois, esses mesmos renomados cirurgiões reconheceram que uma revolução acontecia naquele momento com relação ao tratamento do câncer de mama e, passados alguns anos, o doutor Veronesi apresentou ao mundo a quadrantectomia, técnica mais conservadora ainda que a de Gentil, em que se retira somente um quarto da mama. O médico ficou mundialmente conhecido a partir de então.
As 60 primeiras experiências de Gentil testando o novo tratamento foram publicadas na década de 1980 no conceituado Journal of Surgical Oncology e a “cirurgia do Gentil”, como era conhecida a sua técnica no Hospital A.C. Camargo, se popularizou pelo mundo, tornando o procedimento de Halsted obsoleto. 

O câncer de mama
Os primeiros registros referentes ao câncer de mama datam da Antiguidade. Há mais de 3 500 anos, os egípcios já a descreviam, como comprova um papiro no qual falam de inchaços incuráveis que aumentavam os peitos. O conhecimento sobre o funcionamento e o interior do corpo humano era mínimo, e qualquer tipo de mal era encarado como uma batalha contra espíritos amaldiçoadores que habitavam o corpo doente. 
Em 480 a.C., Hipócrates, que começou a olhar mais para o interior do corpo de seus pacientes do que para as supostas forças ocultas ao redor, entendeu que a função do médico deveria ser equilibrar os humores que o enfermo possuía dentro do corpo – a saber: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra – e que o câncer era causado por excesso de bílis negra. Foi ele quem batizou a doença com o nome que conhecemos – para ele, os tumores pareciam ter patas como as de um caranguejo.
No início do primeiro milênio, o médico grego de origem romana Claudio Galeno deu o norte do que seria a base da medicina pelos séculos seguintes: controle da dieta e melhoria da higiene. Com a dissecação de seres humanos proibida em seu tempo, costumava basear seus estudos abrindo e analisando o corpo de macacos (muitas vezes ainda vivos) e experimentando ideias em outros animais. No século 16, após abrir, vasculhar e estudar uma quantidade significativa de pessoas mortas, o belga Andreas Vesalius, considerado o “pai da anatomia moderna”, conclui sua enciclopédia sobre o corpo humano, em 1543. Os sete volumes de De Humani Corporis Fabrica (Da Organização do Corpo Humano) se dividiam em ossos, músculos, sistema circulatório, sistema nervoso, abdômen, cérebro e coração e pulmões.
Esses avanços fizeram com que no final do século 17 a teoria de que o câncer vinha do excesso de bílis negra começasse a ser questionada. O alemão François de la Boë Sylvius indicou que a doença poderia ser consequência de um processo químico pelo qual os líquidos linfáticos passavam. O francês Claude-Deshais Gendron, já no século 18, cogitou que o câncer era a consequência de problemas nos nervos e tecidos glandulares. Pouco antes disso, uma teoria estapafúrdia: como a ocorrência de câncer de mama em freiras era bastante alta, em 1713 o italiano Bernardino Ramazzini sugeriu que a doença seria consequência da falta de sexo. O problema também foi atribuído ao leite que se coalharia no peito, a inflamações de pus, à esterilidade, a transtornos mentais depressivos e até ao estilo de vida sedentário de certas mulheres.
Um dos primeiros médicos a realizar nesse século com sucesso uma mastectomia, removendo os gânglios linfáticos, tecido mamário e alguns músculos da região foi o cirurgião também francês Jean-Louis Petit. 
Em 1895, o escocês George Beatson notou que, ao remover o ovário de uma de suas pacientes, o tumor no peito encolheu – isso graças às mudanças hormonais provocadas pela ação –, e tal prática passou a ser adotada. Aliando a técnica de Halsted à de Beatson, o câncer de mama promoveu uma difícil escolha para as mulheres: conviver com a doença até onde fosse possível ou retirar o tumor e viver completamente mutilada, desfigurada, com a autoestima comprometida severamente.
Somente na segunda metade do século 20 que pesquisadores começaram a indicar que o câncer talvez não fosse algo pontual. O americano Bernard Fisher sugeriu que a doença poderia avançar por metástases e, na década de 1970, propôs cirurgias mais simples seguidas de radioterapia e quimioterapia, eficazes tanto quanto as técnicas de Halsted, porém, embora ainda agressivas, muito menos aniquiladoras para as mulheres. É nesse momento que Fernando Gentil entra com peso decisivo na História do tratamento da doença, propondo suas intervenções conservadoras. 

Depois de Gentil
No filme Uma Chance para Viver, lançado em 2008 e protagonizado por Harry Connick Junior, um médico passa mais de dez anos trabalhando em pesquisas que resultarão em uma nova droga para lidar com o câncer de mama. A obra é uma dramatização da vida real do doutor Dennis Slamon, americano que revolucionou o tratamento da doença ao criar, no final da década de 1990, o Herceptin, um dos principais aliados de médicos e mulheres no combate a esse tipo de tumor nos dias de hoje.
O longa pode ser visto como um grande exemplo dos passos que vêm sendo dados no tratamento do câncer de mama. Se na época de Halsted a técnica poderia levar à amputação de membros por causa de tumores minúsculos, hoje a ideia é completamente diferente. Os próprios Bernard Fisher e Fernando Gentil passaram a considerar a doença um problema sistêmico e a se preocupar com o organismo como um todo. Desde então, a cirurgia é uma das possibilidades, mas, com o avanço da ciência, não mais a única. A radioterapia, por exemplo, é um recurso bastante utilizado, que pode evitar retirar parte do corpo da mulher. “Há a técnica que fazemos hoje de cirurgias preventivas, como a que a Angelina Jolie fez”, conta a doutora Fabiana Baroni Makdissi, cirurgiã oncologista e diretora de mastologia do A.C. Camargo. Ou seja, tão importante quanto – ou até mais importante que – curar a doença é fazer com que o bem-estar da paciente seja mantido, assim como se preocupara o doutor Gentil durante sua carreira.
 “A grande mudança veio mesmo quando a medicina passou a tratar o câncer de mama de forma multidisciplinar, levando em conta a autoestima das mulheres, tratando-as com respeito, prezando pela qualidade de vida, já propondo reparações das áreas afetadas, atuando junto com psicólogos e tratando cada caso de acordo com sua particularidade. Há situações em que a utilização de drogas, por exemplo, é mais importante do que o tratamento cirúrgico, porque a resposta a ela é muito boa”, explica a oncologista.
É quando Fabiana pensa em como será o futuro que a conexão com o filme Uma Chance para Viver fica evidente. “Teremos mais trabalhos sobre a biologia do tumor e quais medicamentos podem combatê-lo sem que o paciente seja tão agredido. É preciso encontrar a genética do tumor, saber como ele nasceu, e também apostar em novas drogas como o Herceptin, que fez com que muita gente deixasse de morrer. A melhoria dos tratamentos efetivamente dá mais anos de vida ao paciente, mesmo aos que têm metástase. Hoje há a possibilidade de o paciente viver em comunhão com um câncer metastático, inclusive. E os tratamentos mais efetivos não necessariamente são os maiores. Em alguns casos, menos é mais.” 
Com essa evolução e esses tratamentos, hoje as mais de 1,5 milhão de mulheres que costumam ser diagnosticas com a doença no mundo a cada ano já podem vislumbrar um tratamento e um futuro muito mais afáveis para si, e o doutor Gentil tem papel primordial na História da oncologia mundial. 
O médico de personalidade forte, que amava música clássica – que ouvia sempre durante as cirurgias – e operava sem cobrar nada de quem não tinha dinheiro para lhe pagar, modificou sobremaneira o tratamento do câncer de mama. E entregou às mulheres vítimas da doença uma garantia de esperança e uma vida melhor. 
Fernando Gentil morreu em 1989, aos 69 anos, de ataque cardíaco. Ainda atuava profissionalmente. Em sua clínica, havia mais de 30 000 fichas de clientes, um marco para qualquer profissional da área da medicina. E um marco para cada mulher que passou pelos seus cuidados.



PARA SABER UM POUCO MAIS

O primeiro registro de mastectomia
Ao lado de seu marido, Justiniano I, a imperatriz Teodora governou o Império Bizantino entre os anos de 527 e 548. Dentre suas diversas características, destacava-se pela habilidade para conciliar pessoas com ideias distintas, fossem elas políticas ou religiosas, e também pelo destemor. Em 532, foi fundamental para que seu marido não fugisse após uma revolta contra o poder em Constantinopla, a capital do império, pois estava assustado com a violência dos rebeldes que incendiaram edifícios públicos e até tentaram nomear um novo imperador. No entanto, quando já reunia o batalhão que o levaria para longe dali, foi dissuadido pela esposa: para ela, seria melhor morrer lutando do que viver com medo, escondendo-se.
A solução foi lutar contra os revoltosos, resultando em mais de 30 mil mortos pelo Exército de Justiniano. O casal voltou a governar em paz. Reformaram Constantinopla e a transformaram na cidade digna de ser lembrada até os dias de hoje. Além de soluções e monumentos arquitetônicos, por causa de Teodora a vida das mulheres na região também melhorou: a cafetinagem forçada foi proibida, antigas prostitutas foram acolhidas em centros de trabalho e prostíbulos foram fechados. Mais do que isso, as mulheres passaram a ter direitos quando se divorciavam, o estupro passou a ser penalizado com morte e o assassinato de adúlteras foi banido.
A imperatriz, que tanto fez pelo sexo feminino,  morreu, aos 48 anos, vitimada por um câncer de mama. Registros dão conta que, pouco antes, seu médico, Aécio de Amida, havia lhe proposto retirar o seio. Essa é a primeira anotação que existe sobre alguma ideia de mastectomia, prática extremamente comum hoje em dia, mas que podia soar como algo desatinado numa época em que a medicina era totalmente calcada no empirismo.