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Matérias / Renascimento

A vida misteriosa de um gênio renascentista: Há 570 anos, nascia Da Vinci

Neste dia, em 1452, nascia o artista que tinha um talento universal, e foi provavelmente o mais completo polímata da História

Celso Miranda e Cíntia Cristina Da Silva Publicado em 15/04/2019, às 07h00 - Atualizado às 00h00

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Um autorretrato não assinado do gênio renascentista - Getty Images
Um autorretrato não assinado do gênio renascentista - Getty Images

Talvez nenhuma pessoa jamais tenha representado tão bem um período da história quanto Leonardo da Vinci. Chamado de “o homem da Renascença” (época caracterizada pela valorização do homem e da natureza), ele, ao longo de seus 67 anos de vida, envolveu-se até o pescoço nos experimentos científicos e artísticos que marcaram o fim da Idade Média na Europa.

Da Vinci foi brilhante em praticamente todas as atividades em que se meteu: foi pintor, engenheiro, inventor, músico (compunha e tocava lira), arquiteto, escultor, astrônomo e escritor. E fez tudo isso de uma forma inovadora, revolucionária – genial mesmo.

Por isso, e por outro tanto de coisas que você vai ler nesta matéria, sempre foi motivo de polêmica. Durante sua vida, em suas centenas de biografias, o que se escreve sobre ele ainda faz aumentar a aura de mistério que cerca sua vida e sua obra.

“Já foi dito que ele é o verdadeiro autor do Sudário de Milão, que se auto-retratou na Mona Lisa, que era maníaco-depressivo e que praticava experiências de alquimia”, diz Sarah B. Benson, do departamento de Arte da Universidade de Princeton, em Nova York.

Daí a dizer que ele foi líder de uma sociedade secreta e que escondeu em suas obras mensagens cifradas que provam que Jesus escapou da crucificação e fugiu com Maria Madalena para a França, vai uma grande diferença.

Mas, afinal, o que há na vida e na obra de Da Vinci que levanta tanta polêmica? O que se sabe realmente sobre ele? Por que tanta gente acredita que ele foi um misterioso guardião de segredos indecifráveis?

Infância Humilde

Filho ilegítimo de Caterina, uma camponesa de 16 anos, e de Ser Piero di Antonio, um tabelião 30 anos mais velho, Leonardo nasceu no dia 15 de abril de 1452, num povoado perto de Vinci, a cerca de 50 quilômetros de Florença, na Itália. Teve 17 meios-irmãos: 12 por parte de pai e cinco por parte de mãe.

Na época, a Itália nem era um país, mas um amontoado de cidades-reinos, como Milão, Verona, Nápoles, Gênova, Veneza, além da própria Florença, que rivalizavam entre si e se organizavam em volta do poder religioso e político de Roma e do papa.

A instabilidade política da região não afetou, no entanto, a infância do pequeno Leo, que cresceu sob os cuidados do pai e da madrasta, que lhe proporcionaram educação básica: aprendeu a ler, escrever e amarrar os sapatos. E, tirando o talento precoce para as artes, nada em sua juventude fazia prever destino tão especial.

Foi na adolescência que o gênio de Leonardo começou a surgir. Segundo seu primeiro biógrafo, o italiano Giorgio Vasari, que escreveu Vite dei Più Eccellenti Architetti, Pinttori et Escultori Italiani (“Vida dos melhores arquitetos, pintores e escultores italianos”) apenas 30 anos após a morte de Da Vinci, consta que ele aprendeu sozinho latim, matemática, anatomia humana e física. Passava horas tentando melhorar um desenho.

Quando morava com o pai, em Vinci, Leonardo foi encarregado de ilustrar o escudo de um fazendeiro local. Escolheu fazer uma coisa inspirada na mitológica Medusa, aquela que tinha cobras no lugar dos cabelos. Para realizar o trabalho da maneira mais realista, reuniu serpentes, lagartos e outros pequenos animais para servirem como modelo.

Um dia seu pai entrou no ateliê e encontrou o filho trabalhando em meio a animais em decomposição. Estava tão absorto que nem sentia o mau cheiro dos bichos mortos. Quando tinha lá seus 20 anos, foi aceito como aprendiz no ateliê do artista Andrea Verrochio, em Florença.

Lá conseguiu seus primeiros trabalhos e, com o tempo, obteve notoriedade – de bom pintor e de nunca entregar suas obras no prazo. Ficaram famosas suas pinturas inacabadas. Algumas chegaram aos nossos dias, como o retrato de São Jerônimo, em exposição no Museu do Vaticano.

Trabalhou para a Igreja, fez amigos entre os poderosos e conseguiu alguma fortuna. Foi patrocinado por Lorenzo de Médici, o todo-poderoso de Florença, e em 1502 acabou nomeado arquiteto e engenheiro geral para as regiões de Marche e Romagna por César Bórgia, o capitão-geral do exército (e filho) do papa Alexandre VI. Outro fã de suas obras foi Ludovico Sforza, duque de Milão.

Leonardo nunca se casou e na juventude, em 1476, chegou a ser réu no processo de sodomia de Jacopo Saltarelli, um colega aprendiz como ele, mas a acusação foi arquivada. Hoje, o movimento gay busca clamar seu nome como uma das mais brilhantes figuras históricas homossexuais, mas os historiadores ainda discutem se ele era mesmo gay.

Viajou pela Europa e cultivou inimigos tão poderosos e brilhantes como ele. Michelângelo, um de seus maiores rivais, costumava se referir a Leonardo como “aquele tocador de lira de Milão”.

Emigrou para a França, onde foi amigo do rei. Dos reis, na verdade. Tornou-se o preferido da corte de Luís XII e, mais tarde, amigo pessoal e confidente de seu sucessor, Francisco I. Dele ganhou uma casinha (o castelo de Cloux), onde viveu seus últimos dias.

Morreu em 1519, dizem, dormindo. Segundo seu desejo, seu caixão foi acompanhado por 60 mendigos. Leonardo deixou um legado enorme entre quadros, desenhos e manuscritos. Apenas pouco mais de 20 de suas pinturas sobrevivem até hoje, entre elas algumas das mais famosas pinturas de todos os tempos, como a Mona Lisa e A Última Ceia. Fora os protótipos de invenções que só seriam concretizadas séculos depois, como o pára-quedas, o escafandro e o tanque de guerra.

Lado oculto

Da Vinci viveu na mesma época que Cristóvão Colombo, Maquiavel, Michelângelo, Martinho Lutero e Nostradamus. Enquanto ele pintava Mona Lisa, Pedro Álvares Cabral navegava pelo Atlântico em direção ao Brasil. Mas o que em sua vida ou suas telas deu margem a teorias conspiratórias? Leonardo era tão diferente e misterioso assim? Sua obra ou sua vida permitiram que tantos anos depois tanta coisa fosse inventada sobre ele?

A resposta é sim. Da Vinci dava sopa para o azar. E, apesar de ele ser, de certa forma, típico de seu tempo, tinha lá suas manias. Primeiro, criou sua própria linguagem em código. Quando não escrevia ao contrário, da direita para a esquerda – fazendo que sua caligrafia só fosse compreendida quando vista no espelho –, usava um tipo de taquigrafia estranhíssima, na qual usava parte de palavras ou símbolos e não letras para exprimir idéias. Prato cheio para quem enxerga conspirações em todo lugar.

”Seus interesses ultrapassavam o campo artístico”, afirma Christopher Witcombe, professor do departamento de História da Arte da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos. Ele especulou pela anatomia, biologia, física e engenharia. Leonardo amava sua arte e acreditava que “o amor a qualquer coisa é produto do conhecimento, sendo o amor mais ardente quanto mais seguro é o conhecimento”, conforme escreveu. Era um profundo estudioso das técnicas que, segundo sua visão, seriam complementares à sua arte.

Ele dissecou corpos humanos e de animais para compreender a posição de ossos e como funcionavam músculos e tecidos. Desenvolveu e utilizou lentes para projetar imagens e melhor reproduzir seus modelos, desenvolvendo técnicas aplicáveis às suas obras, como os planos de perspectiva, ponto de fuga etc. Estudou a química das substâncias para desenvolver suas próprias tintas, especulou sobre a matemática e a filosofia. Da Vinci foi um cientista-artista tão fascinado pelos mistérios do Universo e pelos enigmas do corpo humano quanto pelas possibilidades de aplicar esses conhecimentos em suas obras.

Mas, tirando a letra invertida, o resto não era coisa assim tão rara na Europa do fim do século 15, época em que as fronteiras entre ciência, misticismo e arte não eram tão definidas. Leonardo cruzou esses limites mais vezes e com muito mais facilidade que os sacoleiros de Ciudad del Este. “As linhas mestras do pensamento renascentista, das quais Leonardo era não só um seguidor, mas um entusiasta, misturavam o humanismo grego a experiências alquimistas e conhecimentos herméticos. E isso aliado a experimentações protocientíficas, como dissecação de cadáveres e observação de astros, que estão na raiz do nascimento das modernas medicina e astrofísica”, diz Witcombe. Ciência e misticismo andavam de mãos dadas no fim do século 15, começo do 16. E ambas eram recebidas com um olhar torto pela Igreja.

A única fronteira que não se devia atravessar naquela época era a religiosa. Com o sagrado era difícil brincar, ainda mais no caso de um artista, numa época em que a Igreja (assim mesmo, com letra maiúscula, para indicar a instituição com sede em Roma e representada em toda a Europa por bispos e padres católicos) era a principal cliente de pinturas e esculturas. Segundo a professora Sarah B. Benson, os artistas renascentistas escondiam suas crenças e convicções pessoais em pinturas encomendadas pela igreja. Além disso, Da Vinci de fato recheava suas pinturas de símbolos e mensagens cifradas. “Ele realmente espalhou uma série de símbolos não-cristãos em seus quadros – que vão dos que aparecem agora no cinema e foram citados por Dan Brown(– até pintar a si mesmo como João Batista e o anjo Gabriel em algumas obras”, afirma Sarah. Em A Virgem das Rochas, ele introduziu plantas utilizadas em rituais mágicos.

O mito

Até agora temos um típico sujeito da Renascença. Um gênio, metido com alquimia e medicina primitiva. Um pintor que desenvolveu técnicas revolucionárias. Mas esse não é o assunto desta matéria. Nosso desafio é explicar por que essa obra genial se presta até hoje a interpretações pouco convencionais, com claras tendências fantasiosas. Para o historiador norte-americano George Gorse, da Universidade de Pomona, nos Estados Unidos, a resposta pode estar na própria arte e no talento de Da Vinci. “Sua obra é universal, pois fala com cada pessoa de maneira particular. E é isso que o torna mais interessante e faz com que, após tantos anos, ele continue sendo uma figura indecifrável, tão sedutora quanto a imensidão e a beleza de sua obra. Sempre haverá o que ser descoberto sobre um artista tão genial”, diz George.

Isso equivaleria a dizer, em termos populares, que a universalidade da obra de Leonardo (isso que faz cada pessoa ver um – ou algum – sentido nas pinturas dele) fez com que ela atravessasse o tempo, tornando-se algo cujo significado fosse adaptado aos diferentes períodos da história e continuasse fascinando a imaginação de tanta gente. A obra de Leonardo atravessou os séculos, adaptando-se aos gostos e linguagens de cada época. Como ícones de um passado comum, suas obras foram assumindo um caráter que tem muito mais a ver com o espírito do tempo presente do que com o tempo ou a realidade que o autor procurou exprimir. Ou seja, fala muito mais sobre o tempo de quem a vê (seja hoje, seja no século 19) do que sobre o tempo de quem a pintou ou de quem está retratado nela.

Por exemplo, na década de 1960, sua obra mais notória, a Mona Lisa, se tornou símbolo da cultura pop. Quando resolveu promover o Dadaísmo, movimento artístico que pregava o absurdo e o desprezo pela arte tradicional, Marcel Duchamp (1889-1968) pintou bigodes numa réplica Mona Lisa. Ele não poderia ter escolhido obra mais representativa para mandar seu recado. Tornou-se símbolo de uma arte descartável, presa em molduras de madeira, vazia de significado. Um rosto de mulher, como uma foto de Marilyn Monroe, que pode ser copiada, e copiada, e copiada.

Hoje, o que nos leva de volta à obra de Da Vinci é outra coisa. Procuramos no passado respostas para os anseios que a sociedade moderna tem. Na era da superciência, os homens tendem a procurar respostas mais simples. Afinal, deve existir alguma resposta lógica para tudo, não é? Deve haver algo que nos conecte a todos. Uma rede que faça sentido, uma “matrix”, um código que explique quem somos e por que estamos aqui. Vivemos numa época propícia para teorias que desconstroem a realidade como a conhecemos, oferecendo uma versão convincente – e mais fascinante – da vida, da nossa história, do nosso passado.

Por fim, há um fator que faz de Da Vinci um forte candidato às conspirações. Ele é famoso. E esse fato se virou contra Leonardo. “Parte do mistério que se imputa à obra, à vida e a tudo que se relacione com Da Vinci é motivado pelo simples fato de ele ser famoso”, diz George. Ou seja, ele é famoso porque se fala dele. E fala-se dele porque ele é famoso. O que adiantaria se Travis Di Montemore tivesse escondido segredos em suas obras?

“Da Vinci entrou para a história como um dos homens mais brilhantes que pisaram esta Terra e também como um dos mais misteriosos”, diz o historiador inglês Kenneth Clark, professor de História da Arte em Oxford e ex-curador do Museu Britânico. “E, por mais que se escreva sobre ele, apesar das muitas interpretações a que sua vida e obra deem margem, ainda haverá espaço e material suficientes para se formularem muitas outras teorias sobre ele.”

Em tempo, Travis Di Montemore foi um pintor italiano – de pais franceses – que obteve sucesso e fama no século 16. Seus dotes artísticos eram disputados por reis, sua atenção pelas rainhas. Caiu no esquecimento no século 18 e nunca, nunca mais alguém ouviu falar dele. Não, nem Dan Brown.