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Matérias / Personagem

Presente em 14 capítulos do texto sagrado: Abraão, o patriarca da fé

Abraão fundou as bases das três grandes religiões monoteístas do mundo: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ao aderir a um único Deus, tornou-se o pai simbólico de bilhões de fiéis

Tiago Cordeiro // ED. Edição 77, Dezembro 2009 Publicado em 28/11/2021, às 12h00

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Representação de Abraão na tela 'Banimento de Agar e Ismael', de Guercino - Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons
Representação de Abraão na tela 'Banimento de Agar e Ismael', de Guercino - Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

As três grandes religiões monoteístas têm o mesmo pai. Um homem que vagou pelo Oriente Médio e pelo norte do Egito há 4 mil anos. Que optou por seguir um só Deus e cujos dois primeiros filhos fundaram dois povos: os hebreus e os árabes.

Seu nome é Abraão. Sua descendência moldou o Ocidente e foi determinante para forjar o mundo tal qual o conhecemos. O primeiro relato sobre ele está no Gênesis, que inicia a Torá judaica e a Bíblia cristã. Intérpretes do texto consideram que o patriarca era um pastor seminômade que viveu entre 2100 e 1800 a.C.

Tribos costumavam circular entre as principais cidades da Mesopotâmia para vender o couro, o leite e a carne de seus rebanhos. Não há provas da existência de Abraão. Várias gerações de arqueólogos reviraram, sem sucesso, as terras do Egito ao Irã.

“A arqueologia não encontrou sinais dele nem de qualquer pessoa relacionada ao patriarca”, afirma Ron Hendel, professor de Estudos Judaicos da Universidade da Califórnia. A esta altura, isso pouco importa. “A verdade desse relato não está em sua historicidade, mas no impacto sobre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo”, diz Karl-Josef Kuschel, professor de Teologia da Universidade de Tübingen, na Alemanha.

O Gênesis é uma edição das narrativas orais do povo hebreu, compiladas entre os séculos 7 a.C. e 5 a.C. “Os patriarcas representam os heróis do povo. Provavelmente são uma junção de diversas pessoas reais, reunidas em uma única personalidade a fim de criar um relato das origens dos hebreus”, afirma o arqueólogo Israel Finkelstein, professor da Universidade de Tel-Aviv.

Imagem meramente ilustrativa de Bílbia e rosário / Crédito: Divulgação/ Pixabay/ pompi

Apesar dos 1.500 anos que separam a autoria do texto dos tempos de Abraão, vários detalhes sobre o cotidiano da época são exatos — como o hábito de usar escravas para gerar descendentes, em caso de infertilidade da esposa. Outros trechos das escrituras denunciam o momento em que foram redigidas — por exemplo, o uso de camelos como meio de transporte (eles só seriam domesticados perto de 1100 a.C.).

Abraão ocupa 14 capítulos do texto. Quando sua história começa, ele já tem idade avançada. “A maioria dos personagens importantes da Bíblia é apresentada como criança. Jacó e Esaú brigam no ventre da mãe. Moisés é encontrado em um cesto no Rio Nilo. Davi luta contra Golias. O patriarca tem 75 anos antes que qualquer coisa aconteça com ele”, diz o Bruce Feiler, em 'Abraão — Uma Jornada ao Coração de Três Religiões'.

No primeiro capítulo do Genêsis a seu respeito, ele se chama Abrão, filho de Terá, casado com sua meia-irmã Sarai, dez anos mais nova. “Ele é a personificação do vazio: não tem infância nem descendentes”, afirma Feiler. Um detalhe o diferencia: o pastor é a décima geração depois de Noé e a vigésima após Adão e Eva.

Pouco antes de morrer, Terá deixa a cidade natal de Abrão, que a escritura chama de Ur dos Caldeus, e se muda com a família para os arredores de Harã. Depois que Terá morre, com 205 anos (isso mesmo, os personagens da narrativa são extraordinariamente longevos), Deus determina novo rumo para a vida do pastor.

O patriarca, que agora é responsável pelos negócios da família, ouve a voz de Javé, que promete: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome. Sê tu uma bênção”. E Abrão se muda para Canaã com a esposa e o sobrinho, .

'Separação de Abraão e Ló', por Václav Hollar / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Ismael e Isaac

Um período de seca faz o grupo seguir para o norte do Egito. Ali, com medo de ser morto para que Sarai seja forçada a se casar novamente, ele pede que a esposa se passe por sua irmã solteira. Ela acaba incorporada ao harém do faraó, mas Javé lança pragas sobre o Egito como punição. O monarca descobre a origem do problema, devolve a mulher ao pastor e expulsa a família do país.

Abrão segue uma vida seminômade, marcada pelo comércio, pela eterna busca por melhores terras e pelo conflito militar contra os reis que sequestram . Enquanto isso, Javé repete suas promessas. Para selar um pacto com esse único Deus, o pastor chega a sacrificar uma cabra, um bezerro e um carneiro. Mas o filho não vem.

Cansada de esperar, Sarai diz a Abrão que tenha seu herdeiro com Agar, uma escrava egípcia do clã. Ele obedece e a mulher dá à luz Ismael. Quando o pastor completa 99 anos, Deus volta a se comunicar. Ordena que o casal mude os nomes para Abraão e Sara e orienta o patriarca a fazer a circuncisão em si e em todo o clã — incluindo Ismael, que já tem 13 anos.

Tempos depois, três anjos aparecem para o casal. Mesmo sem saber quem são, Abraão os recebe com hospitalidade. Quando se identificam, voltam a lhe prometer um filho. Escondida, Sara ouve a conversa e ri de descrença. Mas eis que, enfim, engravida e tem Isaac. Para garantir a herança ao garoto, ela convence o marido a expulsar Agar e Ismael.

Abraão agora tem descendentes, mas Javé decide que ele precisa passar por um último teste de fé. De acordo com o Gênesis, diz ao patriarca: “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai à terra de Moriá; e o oferece ali em holocausto sobre uma das montanhas”.

Mais uma vez obediente, ele forma uma comitiva com Isaac e dois empregados e caminha por três dias. Ao chegar perto do monte indicado por Deus, afasta-se com o filho. O rapaz, então, pergunta ao pai onde está o animal a ser sacrificado. A resposta é enigmática: “Javé proverá”.

Numa pedra no alto do morro, ele o amarra e coloca sobre uma pilha de lenha. Quando empunha o cutelo contra Isaac, um anjo aparece e o contém: “Abraão! Não estendas a tua mão sobre o moço e não lhe faças nada; agora sei que temes a Deus e não negaste o teu filho”. Com esse gesto de fé absoluta, o patriarca conquista em definitivo o status para fundar as novas nações.

Nas décadas seguintes, ele começa a preparar o futuro de sua descendência. Negocia o casamento de Isaac com a prima Rebeca e acompanha o crescimento de seus netos, Esaú e Jacó. Sara morre com 127 anos, e o viúvo ainda tem tempo de se casar de novo.

Ele se une a Quetura, com quem tem outros seis filhos: Zinrã, Jocsã, Medã, Midiã, Isbaque e Suá. Nenhum deles tem direito ao espólio do pai. Ao morrer, Abraão tem 175 anos e é um líder tribal respeitado. O pastor é enterrado ao lado de Sara pelos filhos Isaac (que já tem 76 anos) e Ismael (de 89).

'Sacrifício de Isaac', de Caravaggio / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Duas nações

Segundo as escrituras, a fé e a obediência inabaláveis fizeram Abraão especial. “Para judeus, cristãos e muçulmanos, a fé é definida como a confiança incondicional em Deus. Nesse sentido, para as três religiões, Abraão é o modelo e a própria definição da fé. Essa característica faz dele o patriarca das três religiões que se originam de dois grandes povos”, afirma Karl-Josef Kuschel.

Segundo a tradição, Isaac deu início aos hebreus, e entre seus descendentes diretos estão o profeta Moisés, os reis Davi e Salomão e... Jesus Cristo. No Evangelho de Lucas, Maria, a mãe de Jesus, canta ao Senhor que “falou a nossos pais, a Abraão e a seus descendentes para sempre”. Diz Kuschel: “Nos relatos dos Evangelhos, Jesus se posiciona como legítimo descendente da tradição de Abraão. Seus primeiros seguidores, em especial São Paulo, o chamam de pai. Depois, no século 4, ele é finalmente incorporado à teologia cristã por Santo Agostinho”.

Já a origem dos árabes está ligada a Ismael. No século 7, um de seus descendentes diretos é chamado pelo anjo Gabriel (ou Jibril) para ouvir a recitação da mensagem de Alá. Durante 23 anos, o mercador Muhammad ibn Abdallah, ou Maomé, recebe e transmite para seus seguidores o Alcorão, que seria compilado nos anos seguintes à sua morte, em 632. Nas 114 suratas (capítulos) da versão final da obra, Abraão, ou Ibrahim, é mencionado 25 vezes.

A partida de Abraão, por József Molnár / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

“O Alcorão acrescenta informações sobre ele, difundidas pela tradição oral judaica, e reinterpreta alguns aspectos de sua vida, em especial o papel de Ismael”, diz John Vol, especialista em islamismo da Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos. Para entender as histórias do texto sagrado muçulmano, é preciso retomar o contexto em que surgiram os hebreus. Depois que o Gênesis foi compilado, vários outros relatos orais surgiram para preencher as lacunas da vida de Abraão, em especial sua infância.

Todos descrevem o patriarca como um monoteísta convicto, que luta contra a tradição politeísta de seu pai, Terá. Um desses relatos conta que a família tinha uma loja com várias estátuas de diferentes deuses.

Certa vez, Abraão usa um machado para quebrar todas, exceto a maior. Chocado, seu pai pergunta por que ele fez isso. O rapaz diz que os próprios deuses se destruíram lutando entre si, e que o vencedor foi o único que permaneceu intacto. Quando Terá afirma que as estátuas não seriam capazes de se mover, ele contra-argumenta: “Se esses deuses não são vivos, não faz sentido adorá-los”.

Outra narrativa, registrada por volta do século 2 a.C. no Livro dos Jubileus, complementa a história. Inconformado com a rebeldia do filho, Terá o denuncia ao rei local. Abraão é condenado a morrer na fogueira, mas acaba salvo por Javé.

Por três dias, fica no fogo sem se queimar: a praça da cidade é tomada por uma enorme poça de água que brota do chão e neutraliza a fogueira. Também são comuns as descrições sobre a vida do patriarca no céu. De acordo com os relatos reunidos no século 1 no livro Apocalipse de Abraão, ele ganha o direito de conhecer o Jardim do Éden.

'Conselho de Abraão a Sara', de James Tissot / Crédito: Domínio Público/ Creative Commons/ Wikimedia Commons

Ibrahim

O Alcorão faz referência a algumas histórias sobre a infância de Ibrahim, com ênfase na sua crítica à idolatria e à fabricação de ídolos. Mas, principalmente, dá novo valor à trajetória de Ismael, ou Isma’il. O texto, que em nenhum momento menciona Agar ou Sara, cita o episódio do sacrifício sem se referir ao lugar ou ao nome do filho.

Numa passagem, o patriarca diz: “Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício”. Quando Ibrahimdemonstra que vai se submeter à ordem divina, outro filho lhe é prometido, Isaac. Por isso, a maioria dos muçulmanos acredita que Ismael foi o menino quase oferecido. “A palavra ‘Islã’ significa ‘rendição incondicional’, e não existe exemplo maior de submissão à vontade de Alá que o do filho que se deixa sacrificar”, afirma Karl-Josef Kuschel. Intérpretes judaicos discordam.

“O texto bíblico claramente menciona Isaac”, diz o rabino Samy Pinto, doutor em Letras Orientais pela Universidade de São Paulo. Trata-se de diferença importante, construída principalmente sobre relatos não canônicos. Essas duas tradições deixaram marcas muito concretas e ainda são fonte de conflito.

Para os muçulmanos, a imolação ocorreu em Meca — e é relembrada todos os anos, na Eid ul-Adha, a Cerimônia do Sacrifício. Entre os judeus, o episódio é lido na celebração do Ano-Novo. Para eles, o momento em que Abraão passa no teste final de Javé aconteceu em uma pedra localizada no monte Moriá, onde hoje está Jerusalém.

Sobre ela, por volta de 1000 a.C., o rei Davi ergueu um altar e Salomão construiu um grande templo em 960 a.C. O edifício foi destruído em 586 a.C., reerguido e mais uma vez derrubado durante a revolta judaica contra os romanos, no ano 70 d.C.

Os restos da construção formam o Muro das Lamentações, e a pedra do sacrifício fica no Domo da Rocha — por onde Jesus teria passado quando atacou os comerciantes do templo e onde Maomé estaria quando foi elevado aos céus. Outro local em que as sutilezas das narrativas se tornam explosivas é a Tumba dos Patriarcas, em Hebron.

Lá, diz o costume, estão enterrados Abraão, Sara, Isaac e seu filho Jacó. As diferenças na interpretação do legado do patriarca criam uma névoa que cobre o fato mais básico a respeito de sua vida: na essência, ambas as tradições, a judaico-cristã e a muçulmana, têm a mesma origem. “O povo escolhido começa em Ismael ou em Isaac? Essa é a grande luta do mundo ocidental”, diz o rabino Samy Pinto. Os 3,5 bilhões de filhos de Ismael e de Isaac ainda hoje disputam o melhor espaço nesta enorme casa monoteísta, erguida há 4 mil anos por Abraão.