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Matérias / Ditadura Militar brasileira

Anos de Chumbo: LGBTQIA + sofreram repressão mais pesada durante a ditadura

Relatório da Comissão Nacional da Verdade revelou torturas, perseguições e censura

Fabio Previdelli

por Fabio Previdelli

fprevidelli_colab@caras.com.br

Publicado em 01/05/2022, às 00h00 - Atualizado em 30/03/2023, às 16h10

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Manifestação contra a ditadura no Rio de Janeiro, em 1968 - Memorial da Democracia com modificações
Manifestação contra a ditadura no Rio de Janeiro, em 1968 - Memorial da Democracia com modificações

Oficialmente instalada em 16 de maio de 2012, no governo da então presidente Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou as graves violações dos Direitos Humanos cometidas durante a Ditadura Militar brasileira, que durou 21 anos (de 1º de abril de 1964 até 15 de março de 1985).

No relatório final da CNV, publicado em dezembro de 2014, 377 pessoas foram responsabilizadas pelos crimes cometidos durante o período, como tortura e assassinatos. Além disso, foi estabelecido o número de 434 vítimas entre mortos e desaparecidos.

Cerimônia da Comissão da Verdade no Palácio do Planalto/ Crédito: Fabrício Faria/Comissão Nacional da Verdade via Wikimedia Commons

Entretanto, um assunto tratado pela CNV em seu relatório final merece um destaque: a repressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+.

Contra a comunidade LGBTQIA+

"Durante a ditadura militar, a homofobia, traço incrustado desde sempre no funcionamento dos aparelhos estatais e nas atitudes da sociedade brasileira, acirrou-se. Havia repressão sistemática de homossexuais por parte do aparelho repressivo. Militantes gays eram humilhados nos interrogatórios e tortura. Espetáculos de travestis e transformistas eram censurados e proibidos. Publicações eram censuradas. A sociabilidade LGTB obrigada a se esconder e se reprimir".

É dessa forma que o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, que foi membro da Comissão Nacional da Verdade, descreveu a perseguição contra o grupo em audiência pública realizada em abril de 2014, em São Paulo. 

Um ponto a ser ressaltado é que, segundo Eduardo González — diretor do programa de Verdade e Memória do Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), que acompanha diversas comissões da verdade ao redor do mundo —, a perseguição contra a comunidade LGBTQIA + é deixada de lado quando se analisa os crimes cometidos por ditaduras, tornando o relatório final da CNV um documento ainda mais importante. 

Manifestação contra a ditadura militar / Crédito: Domínio Público

O arquivo apresenta que, durante a Ditadura brasileira, os pesquisadores apontaram que as principais violações cometidas contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais aconteciam por meio das chamadas rondas.

Conforme aponta matéria da BBC, sistematicamente, agentes de segurança perseguiram o grupo com o pretexto de “higienização”. Desta forma, apenas em São Paulo, 1,5 mil pessoas foram levadas à prisão, onde foram torturadas e espancadas. Os travestis foram os que mais sofreram, tendo que enfrentar extorsões. 

A imprensa também censurada quando tentava retratar temas relacionados à “homossexualidade” (termo usado na época), assim como os veículos segmentados ao público gay, como o jornal Lampião. Além disso, a orientação sexual poderia causar o afastamento de cargos públicos. 

Para a Ditadura, a homossexualidade era tratado com algo subversivo, além de ser uma enorme ameaça à moral e aos bons costumes. Renan Quinalha, que foi integrante da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo, explica que, embora a homofobia e a descriminação contra pessoas não tenham sido “inventadas” neste período, a perseguição contra o grupo tratou-se de uma “política de Estado”. Mas ressalta que não houve uma política de “extermínio”. 

Dada a natureza e o grau dessa perseguição, seja por atuação ou omissão do Estado, e levando em conta o preconceito e a discriminação com uma dimensão institucionalizada, é possível afirmar que a homofobia foi, sim, uma política de Estado durante a ditadura", diz à BBC.

As rondas e as punições

O pesquisador Rafael Freitas explica que as rondas no centro de São Paulo, no final dos anos 1970, eram executadas pelo delegado José Wilson Richetti. "A primeira dessas rondas data de 1968, quando de uma visita da Rainha Elizabeth II a São Paulo".

A polícia quis limpar o centro da cidade. Em declarações a jornais da época, Richetti não fazia questão de esconder este objetivo, ao afirmar que era preciso 'limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados", continua. 

Como os travestis, como já dito, foram um dos que mais sofreram por conta da repressão, uma tática era comum para escaparem mais rápido do cárcere: cortar os pulsos, aponta o pesquisador.

"Após três dias de humilhações, em que muitas ficavam sem comida e eram forçadas a limpar a cadeia, algumas chegavam ao ponto de tentar o suicídio para serem soltas mais rapidamente".

As rondas feitas por Richetti também afetavam bares comumente frequentados por gays e lésbicas. Afinal, quando chegavam a esses locais, a polícia prendia todos que estavam presentes. "Quem for viado pode entrar", diziam, segundo Freitas

Homossexuais que eram presos ou perseguidos politicamente acabavam sofrendo mais. Na visão do regime isto era um agravante na condição deles, o que também acontecia com os negros e as mulheres", relata o jurista Pedro Dallari, que coordenou a CNV. 

Papel esquecido

O pesquisador brasilianista americano James N. Green, que ajudou a fundar o ‘Somos: Grupo de Afirmação Homossexual’ em 1978, diz que os homossexuais sofrem duplamente nesse contexto: primeiro pelo motivo de ainda precisarem de um reconhecimento oficial como vítimas da Ditadura; e também por terem seus papéis como resistência esquecidos. 

Um exemplo disso é a marcha de 1º de maio de 1980, quando 50 membros do Somos aderiram aos protestos do ABC. Na ocasião, o grupo esteve presente com duas faixas de protesto: "Contra a intervenção nos sindicatos do ABC" e "Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual".

Desta forma, Green vê a inclusão da pauta LGBTQIA + no relatório final da Comissão Nacional da Verdade como um importante avanço nesses dois âmbitos. "É uma conquista histórica, muito importante", celebra. 

“O papel dos homossexuais na redemocratização do Brasil foi sempre muito esquecido. Não fosse a dura repressão, certamente o país teria movimentos LGBTs muito mais fortes já antes do final da década de 1970, como nos Estados Unidos e na Argentina, mas havia muito medo", aponta. 

Perseguição da direita e da esquerda

Mas engana-se quem pensa que os gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sofriam apenas com a repressão vinda dos militares. Os LGBTQIA + também eram ‘menosprezados’ pelos militantes de esquerda, que viam o movimento como “uma luta menor” ou até mesmo como um “vício pequeno burguês”. 

Quem explica mais esse cenário é o jornalista João Silvério Trevisan, um dos criadores do jornal Lampião. "Muitas vezes se esquece de deixar claro este outro lado do que os homossexuais sofreram. Muitas vezes chegou até a violência física, quando mulheres lésbicas foram atacadas pelo MR8 [Movimento Revolucionário Oito de Outubro, uma organização política marxista que participou da luta armada contra a ditadura] em São Paulo”, disse à BBC.