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Matérias / Brasil

Em pleno século 21, fantasmas de Hitler ganham espaço

Em conversa, Luís Edmundo de Souza Moraes, colaborador do Instituto Brasil-Israel, discute o triste fenômeno no Brasil e no mundo

Redação Publicado em 27/01/2020, às 09h00 - Atualizado em 08/02/2022, às 12h19

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Objetos de vítimas do Holocausto - Getty Images
Objetos de vítimas do Holocausto - Getty Images

O Flow Podcast gerou indignação e foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter após uma discussão esdrúxula protagonizada por Monark, apresentador do podcast.

Enquanto entrevistava Tabata Amaral, PSB-SP, e Kim Kataguiri, Podemos-SP, Monark disse que a “esquerda radical tem muito mais espaço do que a direita radical” e que, “as duas tinham que ter espaço”. 

“Eu sou mais louco do que vocês. Eu acho que tinha que ter partido nazista reconhecido pela lei”, afirmou apresentador, que logo foi respondido por Tabata Amaral.

“Liberdade de expressão termina onde a sua expressão coloca a vida do outro em risco. O nazismo é contra a população judaica. Isso coloca uma população inteira em risco", explicou Amaral.

Ignorando a fala de Tabata, Monark insiste no debate e não reflete sobre o que foi dito. 

“(...) se um cara quisesse ser anti-judeu, eu acho que ele tinha o direito de ser”, diz ele. Em seguida, o apresentador questiona: “Você vai matar quem é anti-judeu? (...) Ele não está sendo anti-vida, ele não gosta dos ideais [dos judeus]". 

Em pleno século 21

Nos dias atuais, a presença do antissemitismo tem ganhado espaço. Longe de estar datado no tempo ou de nunca ter existido, o ódio contra judeus e seus descendentes está arraigado em muitos países, assim como a homofobia, misoginia e outras formas de violência. E essa onda antissemita tem se fortalecido em países ocidentais, como França, Itália e Estados Unidos.

A libertação do campo de Auschwitz / Crédito: Domínio Público

Para discutir essas questões, a Aventuras na História entrevistou em 2019 o professor Luís Edmundo de Souza Moraes, colaborador do Instituto Brasil-Israel, graduado em História e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Moraes também concluiu seu doutorado em História pelo Centro de Pesquisas sobre o Antissemitismo da Universidade Técnica de Berlim, analisando a história do partido nazista em Blumenau e no Rio de Janeiro.

 Luís Edmundo de Souza Moraes / Crédito: Reprodução

Atualmente, atuando como professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Moraes discute o fenômeno de negação da História e o uso de práticas antissemitas em diversos países. Ele também refletiu sobre a necessidade de implantar políticas antirracistas tanto no Estado como em cada um de nós.

Confira abaixo a entrevista completa.

1. Quais são as consequências quando uma história única é usada para excluir um grupo de pessoas da sociedade?

A ideia de História Única, elaborada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, me parece muito boa. Ela diz respeito aos efeitos, sobre as pessoas, da prática de produzir e usar estereótipos para tratar de grupos humanos sociais. E os estereótipos nos fazem substituir a realidade por algo imaginário, fazendo com que os grupos sejam reduzidos a poucos traços ou características que nos impedem de vê-los multifacetados e plurais como nós.

Este mecanismo funciona bem porque é fácil: graças ao nosso conceito prévio (um pré-conceito, no sentido mesmo do termo), não precisamos nos dar o trabalho de conhecer o mundo. E muitos não imaginam que simplificações sobre o outro (e, não raro, sobre nós mesmos) são imagens falsas da realidade.

Nesse sentido, as Histórias Únicas são, antes de tudo, perigosas: fazem com que mitos simplificadores pautem a forma como agimos, causando efeitos deletérios movidos por uma cegueira que se aferra à sua idealização do mundo: simplificada, homogênea, pura e fácil. A exclusão é um desses efeitos, na medida em que conceitos prévios são desvalorizadores, estigmatizadores, desumanizadores, fundados na ideia de que os Outros partilham de alguma essência negativa.

Prisioneiros no campo de concentração de Auschwitz / Crédito: Wikimedia Commons

Mas a cegueira também impacta a forma como vemos nosso próprio grupo. E seus efeitos não são menos perigosos quando atribuímos a nós mesmos, como grupo, alguma superioridade moral, alguma identidade essencial de propósitos, alguma substância positiva.

Na medida em que a ideia de História Única remete aos efeitos dos estereótipos sobre nós e à forma como vemos os outros, as duas dimensões do problema são partes inseparáveis de uma mesma coisa que, simultaneamente, exclui os considerados essencialmente ruins e inclui os considerados essencialmente bons, resultando, como no caso dos supremacismos, em projetos políticos fundados na ideia fantasiosa de que uma boa sociedade é uma sociedade de iguais.


2. O senhor poderia delinear as principais razões por trás da ascensão do antissemitismo?

Como diversas outras modalidades de racismo, o fenômeno do antissemitismo nunca esteve ausente do mundo contemporâneo. Desta forma, a ideia de ascensão faz sentido se entendemos por isso a sua maior expressão pública ou o maior crescimento global da retórica e da violência antissemitas nestes últimos anos.

E esse é um fenômeno recorrente desde o início do século 21. Por um lado, observa-se a continuidade da expressão pública do antissemitismo onde já há um nível altíssimo em sua institucionalização, como os círculos fundamentalistas ou países do oriente médio.

Por outro lado, existem fenômenos ligados à reconfiguração política de países ocidentais que ajudam a entender que, de uns três ou quatro anos para cá, o volume de expressões públicas antissemitas no mundo aumentou significativamente, com destaque para aquelas que ou são patrocinadas ou explicitamente defendidas e autorizadas por políticos.

A Liga Anti-Difamação (ADL) dos Estados Unidos, que faz um acompanhamento sistemático na circulação pública da retórica antissemita, em 2016, denunciou seu uso pelo então candidato Donald Trump em mais de um momento.

Segundo dados da própria ADL, os crimes de ódio contra judeus e suas instituições cresceram nos Estados Unidos cerca de 60% em 2017, primeiro ano da administração Trump. Este também foi o ano da marcha de Charlottesville, manifestação pública de extrema direita onde os judeus foram alvo preferencial e da qual o presidente Trump não se distanciou de forma decisiva.

Por fim, no ano passado, tivemos o atentado mais mortífero da história dos Estados Unidos, quando um supremacista branco abriu fogo contra judeus em uma Sinagoga na cidade de Pittsburg, matando 11 pessoas e ferindo outras seis.

No leste da Europa, o crescimento de expressões antissemitas na sociedade húngara não pode ser desconectado das teorias conspiratórias propagadas pelo primeiro-ministro Húngaro, Viktor Orban, personalidade no campo da extrema-direita europeia. As teorias falam sobre controle judaico das finanças do mundo, responsabilidade judaica pelo comunismo e sofrimentos impostos aos húngaros durante o regime judaico-soviético.

Da mesma forma, desde que o partido Lei e Justiça obteve uma grande vitória parlamentar em 2015, a Polônia vê um crescimento vigoroso da propaganda antissemita no espaço público e de atos antissemitas que o seguem. A direita polonesa saudou a censura imposta pelo governo à divulgação de pesquisas sobre o holocausto que tratassem da colaboração de poloneses com nazistas.

Tudo isso produziu sérios efeitos na Polônia, culminando no ataque a uma conferência de pesquisadores do holocausto em Paris e, em especial, ao historiador Jan Gross, da Universidade de Princeton, que é polonês, judeu e um dos grandes especialistas em estudos sobre o holocausto na Polônia.

A Itália, que vê o crescimento da extrema direita com a Lega Nord, de Matteo Salvini, é a mesma cujos crimes de ódio quadruplicaram entre 2017 e 2018.

Esses casos sugerem que o novo desse contexto é que governantes ocidentais passam a alimentar e dar difusa legitimidade para a expressão pública do antissemitismo. É como se seus pequenos gestos funcionassem como um sinal verde de que retomar velhos estereótipos de judeus, reatualizar antigas teorias conspiratórias ou responsabilizar judeus como um indivíduo-coletivo pelos males do mundo é possível e desejável. E em tempos de redes sociais, isso ganha uma escala e imediatismo jamais vistos.


3. É possível enxergar relação entre o bolsonarismo e declarações antissemitas no Brasil do século 21?

Sobre isso é importante fazer uma distinção: a existência de grupos de extrema direita com perfil nitidamente neonazista, que são antissemitas e disseminam uma retórica de violência contra judeus no Brasil, não deve significar que esse é um traço do bolsonarismo.

Isso não quer dizer que não pode se tornar em algum momento, mas por enquanto é um fenômeno marginal no campo dos apoiadores de Bolsonaro. A própria conexão de Bolsonaro com o governo de Netanyahu não é confortável para uma parcela de seus apoiadores antissemitas.

Por exemplo, é curioso que David Duke, líder supremacista e antissemita norte-americano, após elogios feitos em 2018 a Bolsonaro, tenha se ressentido somente pelo fato de que o então candidato (que, como ele disse, “soa como nós”) era próximo demais de Israel.


4. Quais relações você vê entre negacionismo e disputas de memória no Brasil atual?

Negar o passado é, há muito, instrumento importante de política. Os negadores do holocausto, por exemplo, o fazem não por ignorância, mas porque negá-lo sempre foi um meio de tirar um peso social enorme dos ombros dos nazistas de hoje em dia.

Porque os crimes do nazismo foram o maior obstáculo à ampliação da base social e do enraizamento político dos grupos e partidos deste campo. Nesse sentido, negar o passado e inventar uma história onde não existam crimes monstruosos como o holocausto significa ampliar a legitimidade social do nazismo como alternativa política em nossos tempos.

O mesmo ocorre com os negadores dos crimes da ditadura militar. Se a memória das vítimas da ditadura sempre circulou pelo espaço público, os crimes cometidos por funcionários públicos no exercício de suas funções nunca foram investigados e apurados de forma sistemática.

Ao lado disso, a propaganda de autoritários saudosos e de criminosos ligados ao regime, feita aos poucos e imperceptivelmente para muitos e hoje reproduzida pelo Presidente da República, resulta no fato de que muitos passaram a acreditar no mito de que a ditadura foi somente um regime ordenador, ainda que autoritário.

Passou-se a chamar a Ditadura de Regime Militar ou, pior, de “governos militares”, como se fossem como outros governos legítimos que vieram antes e depois. Aos poucos, se perdeu a dimensão de que aquele foi um regime criminoso em seus próprios fundamentos, onde a ilegalidade e o arbítrio foram políticas de Estado.

E isso, estou certo, é importante para que se compreenda o crescimento daqueles que se sentem confortáveis em pedir a volta da ditadura. Penso que isso tem uma relação direta com o esforço já antigo e bem-sucedido de negar a história recente do país, eliminando da imagem pública da ditadura os seus crimes.


5. A Alemanha dos dias atuais precisa de uma sociedade civil mais ativa no combate ao antissemitismo?

Eu penso que a Alemanha não é um caso excepcional do crescimento de manifestações antissemitas no mundo ocidental. E eu diria que não é o caso em que atos e agrupamentos antissemitas experimentaram um crescimento maior.

Em 2018, o número de crimes motivados pelo antissemitismo teve um aumento de cerca de 20% em relação ao ano anterior e a quase totalidade desses crimes foi cometida por pessoas ou grupos da extrema-direita. Comparativamente, o crescimento de incidentes antissemitas na França em 2018 é de mais de 70%.

O crescimento da extrema-direita na Europa como um todo é uma questão muito delicada e tem sido seguida pelo crescimento brutal da intolerância, de práticas excludentes e da violência antissemita.

Assim, o que parece fazer sentido para a Alemanha, penso, faz sentido para todos os outros países: o racismo é um inimigo decisivo da constituição de sociedades plurais, diversas, democráticas e solidárias. Neste sentido, acho muito importante a reflexão feita por Angela Davis de que não é suficiente que não sejamos racistas, especialmente em nossos tempos. É decisivo que sejamos sociedades antirracistas.

E por isso, organizações da sociedade civil, mas especialmente o Estado, têm que tomar para si o antirracismo como programa e como prática. Sem dúvida, o primeiro lugar que deve implantar uma política antirracista é o próprio Estado.


6. O que cada cidadão pode fazer para combater as declarações antissemitas no país?

Não penso que o combate ao antissemitismo e outras modalidades de racismo seja pensável por fora de ações institucionais e mesmo de políticas públicas.

Ainda que o antirracismo seja uma atitude moral e intelectual que deve ser incorporada por cada um de nós, não me parece possível pensar na necessária disseminação dessa forma de estar no mundo sem que o poder público seja um agente desse processo.

E isto através de iniciativas que tanto eduquem pessoas para que recusem o antissemitismo e outras modalidades de racismo como por meio do combate firme à retórica e práticas antissemitas.

Ainda assim, é importante que todos possamos entender que pessoas não nascem racistas, mas que são educadas, formadas para serem racistas. E isto se dá aos poucos, no cotidiano, por meio de coisas muito nítidas, mas também com ações imperceptíveis. Tudo isso vai se assentando como peças de um quebra-cabeças que, no final, oferece uma forma racista de dar sentido ao mundo e agir nele.

É importante que todos possamos nos dar conta desses mecanismos sociais que formam pessoas racistas, disseminados em partes distintas da vida, para que possamos reagir a eles quando aparecem nos outros e no espaço público. Mas também e, talvez, mais decisivamente, quando eles se manifestam em cada um de nós.