Busca
Facebook Aventuras na HistóriaTwitter Aventuras na HistóriaInstagram Aventuras na HistóriaYoutube Aventuras na HistóriaTiktok Aventuras na HistóriaSpotify Aventuras na História
Matérias / Rússia

Ascensão e queda dos czares

Opulentos, autoritários e vingativos, os monarcas russos deixaram uma marca permanente

Eduardo Szklarz Publicado em 01/07/2019, às 08h00

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Crédito: Klimbim
Crédito: Klimbim

Eram 2 da manhã quando Nicolau II foi despertado naquele 17 de julho de 1918. O último "imperador de todas as Rússias" agora era prisioneiro dos revolucionários bolcheviques numa casa de Ecaterimburgo, oeste do país.

Nicolau foi conduzido com a mulher, o filho, as quatro filhas, o médico e os empregados para um quartinho dos fundos, onde 12 homens os esperavam com armas na mão. Depois do fuzilamento, o pelotão se assustou ao ver que as filhas continuavam vivas - as balas ricochetearam nas jóias costuradas em seus vestidos. O jeito foi terminar o "serviço" com golpes de baioneta.

Era o fim dos 300 anos da dinastia Romanov. Era também o fim de quatro séculos de domínio dos czares - déspotas com autoridade ilimitada sobre cada um de seus súditos. Ao longo da História, líderes eslavos, sérvios e tártaros também receberam o título de czar (derivado dos "césares" de Roma), mas na Rússia ele adquiriu caráter especial.

Usando uma mescla de terror e nacionalismo religioso, os czares russos transformaram um reino minúsculo numa potência mundial e expandiram seu território até ter o dobro do tamanho do Brasil.

Para alguns historiadores, porém, o czarismo não morreu com Nicolau II. Seus métodos autoritários prosseguiram na era soviética e ainda fazem a cabeça dos líderes do Kremlin.

Moscóvia

A semente do czarismo foi plantada no século 9, quando o chefe viking Riurík fundou uma dinastia em Novgorod, no noroeste da atual Rússia. Seus descendentes ampliaram o reino até Kiev (Ucrânia), converteram-se à fé ortodoxa - ramo do cristianismo que rompeu com o catolicismo romano no século 11 e se espalhou nos domínios do Império Bizantino.

Os descendentes de Riurík usaram o termo "Rus" para descrever seu povo e sua terra. No fim do século 12, o reino se fragmentou em principados rivais e as disputas favoreceram a invasão de Rus pelos tártaros - um povo turco muçulmano que pertencia ao império mongol.

"Os tártaros queimaram cidades e mataram milhares. Naquela época de intensa devoção, os russos pensaram que era um castigo divino", diz o historiador Ronald Hingley, da Universidade de Oxford. Os invasores pouparam o principado de Novgorod, com a condição de que seu príncipe, Alexandre Nevsky, lhes pagasse altos tributos. Foi quando tudo começou. Daniel, filho de Alexandre, tornou-se príncipe de um vilarejo chamado Moscou - e começou a anexar terras.

As conquistas tiveram sinal verde dos tártaros, mais preocupados em incentivar as brigas entre os principados fortes. Em troca, os moscovitas obedeciam e pagavam impostos. Resultado: em sete décadas, o reino de Moscóvia cresceu oito vezes. Em 1326, desbancou Kiev como sede da Igreja Ortodoxa.

Seus líderes adotaram o título de vseya Rusi ("de toda a Rus"), traduzido em geral como "de todas as Rússias". A essa altura, Moscou já fugia ao controle dos tártaros e criou um regime autoritário cujo príncipe, chamado de czar desde meados do século 15, governava com o apoio de uma facção aristocrática.

"A política de Moscóvia se parecia com a de Al Capone: para vencer os outros reinos, seus líderes tinham de ficar unidos e reconhecer o poder absoluto do príncipe. A crueldade e a unidade eram recompensadas, e os principais clãs se beneficiavam da expansão", diz Dominic Lieven, professor de História Russa na London School of Economics. "Sobre essa política de estilo gângster, a Igreja Ortodoxa carimbou um selo de aprovação." O czar contava com autoridade ilimitada pois seu poder emanava de Deus. A igreja se beneficiava do aumento do poderio russo, pois crescia dentro do cristianismo.

Nos 600 anos seguintes, o principado de Moscou cresceria até ocupar um sexto do planeta. E seus habitantes veriam na monarquia absoluta a única forma de evitar o caos.

A saga dos Ivãs

Talvez o czar moscovita mais eficiente tenha sido Ivã III. Em 43 anos de governo, ele explorou as rivalidades dos tártaros do mesmo jeito que eles tinham feito com os russos. Insuflou o nacionalismo entre o povo e quadruplicou o tamanho do reino. Depois festejou a glória ampliando a construção do Kremlin, a fortaleza que até hoje abriga o governo russo. Não foi à toa que ele ficou conhecido pela alcunha de Ivã, o Grande.

Com a conquista de Constantinopla (Bizâncio) pelos turcos, em 1453, Moscou se proclamou centro da cristandade e herdeira do Império Romano do Ocidente (Bizantino). "Moscou, a terceira Roma!", ouvia-se agora no Kremlin. Ivã III também inaugurou a prática de deportações em massa, que seriam usadas pela União Soviética. Sua crueldade seria mantida por seu filho Vassily III e passaria dos limites com seu neto Ivã IV - chamado também de "o Terrível."

"Ivã IV integra o grupo de superlíderes russos ao lado de Pedro, o Grande, Catarina, a Grande, Lênin e Stálin", diz Hingley. "Todos aplicaram o terror em defesa de si e do regime. Mas enquanto Pedro, Catarina e Lênin se limitaram a objetivos políticos, Ivã IV e Stálin praticaram uma matança extravagante que desafia qualquer compreensão."

O terrível rebento tinha só 3 anos ao ser escolhido czar, e por isso sua mãe assumiu o trono. Com a morte dela (supostamente envenenada), o país virou palco de lutas entre os boiardos, nobres proprietários de terras. Eles supervisionaram a criação de Ivã, maltratando-o a ponto de fazê-lo passar fome, o que não explica completamente a brutalidade do futuro príncipe. Para muitos pesquisadores, ele sofria surtos de paranoia.

Certo é que Ivã IV se casou com a princesa Anastácia em 1547, ano em que foi coroado oficialmente com o título de "Czar de Toda a Rússia" e ficou conhecido como "o primeiro czar". Seu reinado começou bem: ele derrotou os tártaros e expandiu seus domínios no leste até o mar Cáspio e a Sibéria, transformando Moscóvia num estado multiétnico.

Após matar boa parte dos boiardos, vingando os maus-tratos que sofrera na infância, ele deu espaço político a pessoas comuns, como artesãos, professores e profissionais liberais, ao criar o Zemsky Sobor (Assembleia da Nação), que também reunia membros do clero e da nobreza. Mas a morte de Anastácia, também supostamente envenenada, em 1560, provocou um piripaque na cabeça do monarca. Ele prendeu seus conselheiros e abriu fogo contra o povo.

O terror ficou a cargo da Oprichnina, um esquadrão de cavaleiros vestidos de preto e com carta-branca para matar quem quisessem. Ao contrário dos outros czares, Ivã IV presenciava as execuções e maquinava formas de morte. Em 1570, uma plateia em Moscou viu como ele e seus homens desmembravam e ferviam vítimas suspeitas de traição.

Ivã IV casou com outras seis mulheres sem se firmar com nenhuma, e ainda se meteu numa guerra suicida contra suecos, poloneses e lituanos. Queria obter acesso ao mar Báltico, mas acabou derrotado. Tanto deslize favoreceu outra invasão de Moscou pelos tártaros. Desavenças na família também causaram uma tragédia pessoal: num de seus ataques de fúria, o czar golpeou seu filho Ivã Ivanovich na cabeça com uma bengala de ferro, matando-o.

Amargaria essa dor por toda a vida. O maior mistério em torno de Ivã IV foi sua enorme popularidade. Embora tenha matado mais camponeses que boiardos, ele seria lembrado na URSS como caçador de nobres. Não é à toa que Stálin gostava de comparar a Oprichnina com a polícia secreta soviética, a NKVD (depois KGB).

A era Romanov

Passado o furacão Ivã, os boiardos voltaram a brigar pelo poder, provocando uma época de devastação e pilhagens conhecida como "Tempo dos Problemas". A dureza só terminou em 1613, quando a Assembleia da Nação escolheu o novo czar: Mikhail Romanov - o primeiro de uma dinastia que duraria 300 anos.

Nenhuma dinastia dura tanto tempo sem intrigas. Foi assim com Pedro I e sua irmã Sofia. Como ele tinha só 9 anos ao ser coroado, em 1682, ela virou regente. Aos 17, Pedro viu que a irmã queria tirá-lo da jogada e, com o apoio da nobreza, confinou-a num convento. Assumiu com um grande objetivo: transformar a Rússia num Estado europeu moderno.

Assim, Pedro I organizou o Exército e a Marinha, estabeleceu relações com outros países e traduziu livros para o russo. Também derrotou os suecos em 1709 na batalha de Poltova. Ela marcou a conquista da supremacia russa no nordeste da Europa e a entrada do país no clube das grandes potências. Mais: Pedro I conquistou parte da Estônia e chegou à sonhada costa do Báltico - no extremo mais próximo ao restante da Europa. Lá fundou São Petersburgo e fez dela a capital da Rússia, deixando claro que o reino de Moscóvia era coisa do passado. Assim levava adiante seu projeto de aproximação da cultura europeia, que se refletiu na arquitetura da cidade.

Ele acreditava que a formação da Rússia moderna deveria se guiar no modelo das nações europeias, o que causou uma grande cisão cultural no país. De um lado estavam os "ocidentalistas", que apoiavam Pedro; de outro, os "eslavófilos", que rejeitavam as reformas liberais e queriam resgatar o passado idílico, rural e autóctone russo. Além disso, a mudança da capital para São Petersburgo mergulhou a aristocracia em excessos palacianos nos moldes de Versalhes. Tudo isso contribuiu para o enfraquecimento da corte na Revolução de 1917.

Ao botar uma pá de cal em Moscóvia, Pedro proclamou o Império Russo e assim ganhou três títulos: imperador de toda a Rússia, grande pai da terra e Pedro, o Grande. Por trás de toda essa pompa, estava o aparato brutal de sua guarda militar, a Preobrazhensky. "A longa história da Rússia como uma burocracia terrorista começou de fato com o imperador", diz Hingley.

Ao contrário de Ivã IV, Pedro I era frio, racional. Foi assim que lidou com o rebelde mais famoso do reino: seu filho Alexis, que não aguentou as cobranças do pai e fugiu da Rússia, mas foi caçado. "Seu pai o matou a sangue-frio, ao contrário do surto que levou Ivã a matar o filho dele", afirma Hingley.

No fim das contas, o grande "modernizador" não se importou com os camponeses. Ao contrário: manteve-os na servidão, como meros objetos pertencentes ao Estado e aos nobres. Enquanto a elite russa se parecia cada vez mais com a europeia, a massa ainda vivia na Idade Média.

Catarina, a Grande

Frederica Sofia era uma princesinha sem grandes chances de subir na vida. Seu pai era um dos tantos nobres decadentes da Prússia do século 18. Mas, aos 15 anos, a czarina Isabel a convidou para conhecer seu sobrinho, o príncipe herdeiro Pedro III, neto de Pedro, o Grande. Isabel achava que ela seria mais dócil que uma nobre de alta linhagem para se casar com o futuro czar. Ledo engano!

Para realizar a boda, Sofia se converteu à fé ortodoxa e passou a se chamar Catarina. Mas o casamento logo azedou. Além de obcecado pela disciplina prussiana, Pedro era imaturo e impotente. Ou estéril, como diziam os fofoqueiros da corte. Seja como for, os dois não se bicavam - e ela decidiu disputar o trono sozinha. "Catarina sabia que só seria aceita se parecesse russa. Passava noites aprendendo o novo idioma", diz Henri Troyat na biografia Catarina, a Grande.

Quando Pedro III assumiu o trono, Catarina sentiu o perigo: o marido a deixaria para se casar com outra. Mandou então seu amante Grigori Orlov, membro da guarda imperial, dar cabo do czar. O clero e a nobreza apoiaram o golpe e aclamaram a nova imperadora: Catarina II. Ela estabilizou o reino e conquistou prestígio entre os europeus. Também abocanhou terras da Turquia, coisa que nem Pedro, o Grande, havia feito.

Mas ai de quem criticasse seu governo. O escritor Alexandre Radishchev foi exilado na Sibéria. Já Yemelyan Pugachov, líder de uma rebelião dos cossacos, terminou esquartejado. E, quanto mais poderosa Catarina ficava, mais amantes ela tinha. "Em 1796, seu filho Paulo I a sucedeu disposto a reverter tudo o que a mãe havia feito. Os dois se odiavam", diz Troyat.

De fato, Paulo anistiou Radishchev, prestou homenagens ao pai (Pedro III) e baixou regras prussianas. Por exemplo, proibiu o uso de chapéus redondos e ternos à francesa. Até hoje ninguém sabe quem mandou matá-lo, ou quem foi seu pai biológico. Só se sabe que seu filho Alexandre I, o neto querido e protegido da czarina Catarina, não perseguiu seus assassinos ao assumir o trono.

Gigante de papel

A Rússia entrou no século 19 cheia de contradições. Seus canhões causavam medo, mas seus 14 milhões de habitantes continuavam na miséria. Somariam 60 milhões em 1835, graças à anexação de terras - 95% deles viviam no campo. Era preciso modernizar o país, mas isso ameaçava o poder dos czares. Como dar liberdade ao povo sem perder o controle da nação?

Esses foram os dilemas de Alexandre I, o czar que botou para correr as tropas do general francês Napoleão Bonaparte e desfilou triunfante em Paris. A vitória aumentou a autoestima russa, mas colocou as tropas em contato com as ideias da Revolução Francesa. Os oficiais voltaram para casa querendo um sistema constitucional. E os soldados, emancipação.

Alexandre I até falou em reformas liberais, mas era tudo fachada. Sua maior preocupação foi consolidar a Rússia como peça-chave do Congresso de Viena - o pacto celebrado pelas potências europeias em 1815 para restaurar a monarquia após a derrota de Napoleão. Ao lado da Prússia e da Áustria, ele fundou a Santa Aliança para reprimir as revoluções no continente em nome da fé cristã. 

 A tarefa continuou com seu irmão Nicolau I, outro czar que sonhava transformar a Rússia em cão de guarda da Europa. Mas ficou só no sonho: várias revoluções surgiram em 1848 e puseram fim à Santa Aliança. Nicolau I foi derrotado por ingleses, franceses e turcos na Guerra da Crimeia - prova da fraqueza russa. Faltava tudo, de locomotivas a munição. E faltava acabar com a servidão.

Foi o que fez Alexandre II, filho de Nicolau I. "Ele libertou mais escravos que o presidente americano Abraham Lincoln, e sem guerra civil no meio", diz Hingley. Mas as mudanças só jogaram mais água no caldeirão revolucionário. Os socialistas diziam que os libertos viraram escravos da burguesia. Alexandre II escapou de vários atentados até que, em 1881, foi dilacerado por uma granada caseira.

O fim

Não era fácil ser czar no século 20. Alexandre III sabia que não repetiria as façanhas de seus antepassados. Ele bem que tentou reviver a trilogia "autocracia, ortodoxia e nacionalismo", mas em vão. Pouca gente ainda aceitava que a vontade do czar era a vontade de Deus.

E outra: insuflar o nacionalismo num império multiétnico, onde apenas 46% dos habitantes eram russos, apenas acionou uma bomba-relógio. Enquanto o movimento revolucionário crescia, os monarcas culpavam os judeus pela crise e matavam milhares nos pogroms, massacres em pequenos vilarejos de israelitas. Entre 1880 e 1920, cerca de 2 milhões de judeus russos emigraram para as Américas fugindo dessas perseguições.

A hora da implosão estava perto. Em 1904, a Rússia cambaleou numa guerra contra o Japão. Em 1905, centenas de manifestantes morreram ao exigir liberdade em São Petersburgo - num dia lembrado como Domingo Sangrento. Em 1917 não teve jeito: Nicolau II abdicou. Foi fuzilado por ordem de Vladimir Lênin, líder dos bolcheviques. Era a vez deles de derramar sangue. A URSS impôs uma nova ideologia, mas manteve a velha lógica: quanto mais inocentes matasse, menores as deserções e maior a certeza de que todos marchariam rumo à vitória final. Durou 70 anos.

Hoje, especialistas veem ares de czar no ex-KGB, ex-presidente e atual primeiro-ministro russo Vladimir Putin. "A Rússia abraçou outra vez o czarismo por várias razões. O país tem longa tradição de um poder indivisível e quase sagrado. A democracia é um conceito negativo no imaginário popular, sinônimo de um pode-tudo onde só os ladrões prosperam. Além disso, a maioria das pessoas associa estabilidade com um líder forte", diz Dmitri Trenin, ex-oficial do Exército russo e diretor do Centro Carnegie de Moscou.


Saiba mais

Russia, a Concise History, Ronald Hingley, Thames and Hudson, 1972
Nicolás II, Dominic Lieven, El Ateneo, 2006