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Matérias / Personagem

Conheça Bárbara Pereira de Alencar, a primeira revolucionária do Brasil

Líder da revolução pela independência, a matriarca Alencar ousou enfrentar a Coroa Portuguesa e foi a primeira revolucionária e presa política do Brasil

Dimalice Nunes Publicado em 04/04/2019, às 16h00

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Bárbara Pereira de Alencar - Reprodução
Bárbara Pereira de Alencar - Reprodução

A Igreja Matriz do Crato, no interior do Ceará, estava lotada de fiéis na missa dominical do dia 3 de maio de 1817, festa de Santa Cruz. A matriarca de uma das mais importantes famílias de todo o Nordeste, Bárbara de Alencar, acompanha o sermão ao lado de um público formado, na sua maioria, por pequenos comerciantes semianalfabetos e produtores rurais.

Ao fim da cerimônia, um homem vestido de batina sobe ao altar e assume o púlpito de surpresa. Não era um padre. José Martiniano de Alencar, filho caçula de Bárbara, discursa sobre a sofrida realidade do Brasil colonial. Os espectadores aplaudem empolgados e ele manda hastear sua bandeira da independência. A Revolução de Pernambuco, nascida dois meses antes na província vizinha, finca o pé no Ceará. Surge a República do Crato.

Poucos dias antes, a vida caminhava calma no Crato. Como conta a jornalista Ariadne Araújo, autora do livro Bárbara de Alencar, Dona Bárbara, viúva de 57 anos, se dividia entre a delegação de tarefas domésticas aos seus escravos e a administração de suas propriedades rurais. Na noite de 29 de abril, porém, ela recebe a visita de seu caçula, Martiniano, que chega do Recife com uma pretensiosa missão: revolucionar o Ceará e libertar o Brasil de Portugal.

E ele quer o apoio de toda a sua família. Dona Bárbara aceita o desafio e passa a liderar a revolução que estourará quatro dias depois. Da família Alencar, também participam do movimento seus filhos Tristão Gonçalves de Alencar, João Gonçalves de Alencar e Carlos José de Alencar, além de seu irmão Leonel de Alencar.

Seca e recessão

O Brasil de 1817 era o domínio político de dom João VI, com a realeza portuguesa baseada no Rio de Janeiro – uma situação insólita, aliás, pois o Brasil, como Reino Unido, hospedava a capital de Portugal. Mas a honra não atingia o país por igual. O Nordeste havia sido o primeiro polo da economia brasileira, mas isso quase dois séculos antes, durante o ciclo do açúcar. Em 1817, é a região Centro-Sul que concentra os incentivos financeiros e o desenvolvimento econômico, como a instalação de fábricas e prédios públicos. Um mercado consumidor que se consolidava, gerando cada vez mais riqueza.

Cidade do Recife em meados do século 19 / Wikimedia Commons

Mas só por ali. Segundo a pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará, Kelyane de Souza, que estudou a vida de Bárbara e o contexto histórico de sua vida, no Nordeste a realidade era contrastante: além da recessão econômica, a seca de 1816 atingiu pesadamente a produção agrícola de exportação e para o abastecimento local. Isso obrigou a região a importar alimentos a altos custos. A soma desses fatores compunha um quadro de fome generalizada na população pobre, que passou a perder suas propriedades, agravando o processo de pauperização.

O então passado de prosperidade econômica da região ainda era visível em sua elite, com acesso a informação e à educação formal. A família Alencar, por exemplo, tinha uma relação muito próxima com os membros do clero do Exu (PE), cidade natal de Bárbara. Esses clérigos eram em sua maioria formados no Seminário de Olinda, um polo irradiador de ideias revolucionárias, onde os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, advindos do Iluminismo, eram convertidos em críticas à Coroa portuguesa e sua cobrança abusiva de impostos. Foi no seminário de Olinda também que dois dos filhos de Bárbara estudaram, Martiniano e Carlos José.

Nessa equação havia ainda a efervescência de uma América Latina que estava em pleno processo de independência em seus principais territórios, com as lutas de Simon Bolívar e José de San Martín.

Mártir política

A República do Crato durou apenas oito dias. Logo as tropas enviadas pela Coroa chegaram à cidade e sufocaram o movimento. Imediatamente os filhos de Bárbara envolvidos no levante foram presos e, dias depois, foi a vez da mãe. Houve tempo para que ela escondesse algum dinheiro, mas seus bens foram confiscados pela Coroa e as propriedades, leiloadas.

Identificada como agitadora, revoltosa, liberal, conspiradora e conjurada, Bárbara foi enviada para a cadeia do Crato. Depois, vestindo apenas saia e camisa, algemada e acorrentada no lombo de um cavalo para a travessia de mais de 500 quilômetros entre Crato e Fortaleza.

Independência: Exército brasileiro adentrando Salvador em 1823, após a rendição das forças portuguesas / Reprodução

A truculência das forças reais não poupou a senhora de quase 60 anos. Para trancar a algema, as peças foram colocadas em suas mãos, postas sobre uma bigorna, onde o ferreiro martelou os cravos de fixação. Não é difícil de imaginar por que era um procedimento que frequentemente terminava em desastre.

Na comitiva iam mais 25 prisioneiros, todos homens, incluindo seus filhos. A viagem durou mais de um mês. De vila em vila, os prisioneiros acorrentados, famintos e maltrapilhos eram expostos como prova do poder do rei em coibir a subversão.

Na chegada a Fortaleza, foram dispostos em duplas em estreitos calabouços. Bárbara, por ser mulher, foi colocada sozinha e incomunicável. Todos permaneceram acorrentados. O tratamento é desumano. “O cardápio não varia: tripa cozida ou intestinos de boi, mal limpos e cozidos em água e sal, e farinha seca de mandioca. Como não existem pratos e colheres, as refeições são servidas em cochos de madeira”, relatou Ariadne.

Apenas em fevereiro de 1818 os prisioneiros foram transferidos para Salvador e, embora a viagem ainda tenha sido de maus-tratos – seguiram acorrentados – as condições melhoraram na prisão soteropolitana.

Cela onde ficou Bárbara de Alencar / Reprodução

Em novembro de 1820, quase quatro anos depois, com a Corte já com um pé de volta em Portugal, Bárbara foi perdoada e retornou para casa. Quem chegou ao Crato, porém, não foi a vigorosa matriarca rica e influente. Além de envelhecida e abatida pelos anos de prisão, ela não contava mais com seus bens e ainda carregava a fama de traidora do rei.

Outra revolução

O Grito do Ipiranga, em 1822, trouxe a independência, mas a rebelde do Crato, como também era chamada, não abandonou seus ideais. Ela se envolveu, ao lado dos filhos, nos demais movimentos republicanos dos anos seguintes. O mais importante, a Confederação do Equador, começou em 1824 em Pernambuco e conquistou rapidamente as outras províncias da região, como Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Mas, na mesma velocidade com que o levante emergia, o poder real organizava suas tropas para sufocá-lo.

Em 12 de setembro de 1824, cerca de 3.500 soldados venceram os confederados. Tristão e Carlos José, filhos de Bárbara, foram executados. Bárbara se viu privada de pelo menos 13 parentes. Morreria em 1832, antes de ver sua família recuperar o prestígio, com o filho Martiniano – pai do escritor José de Alencar – se tornando senador e, depois, presidente do Ceará.

Antes da revolução

Liderar uma revolução foi, sem dúvida, o grande feito de dona Bárbara, mas é consenso entre historiadores e pesquisadores que ela foi pioneira em muitos outros aspectos. Como explica Kelyane de Souza, Bárbara se diferenciava das outras mulheres da elite de sua época porque desde muito cedo teve acesso aos estudos.

Uma mulher alfabetizada no início do século 19 era raridade, especialmente nas zonas rurais, onde as meninas não iam à escola. “A educação no período colonial era um privilégio dos homens da elite. O renascimento da ciência, próprio da modernidade, era permitido somente aos homens das classes privilegiadas, seguindo os moldes da perspectiva europeia de subalternizar as mulheres pela justificativa da inferioridade intelectual”, afirma.

Bárbara de Alencar nasceu no Exu, em Pernambuco, em 1760, filha de um português grande proprietário de terras e escravos. Para estudar, ainda adolescente se mudou para a casa de sua madrinha no Crato (CE), na divisa com o estado natal. Lá ela entrou em contato com os letrados da família, egressos da Universidade de Coimbra. Seu temperamento também é um caso peculiar: era tida por opiniosa, batendo de frente com seus irmãos homens.

Batalha na Confederação do Equador / Reprodução

Por estar no pé da Serra do Araripe, a região, embora longe do mar, não sofre frequentemente com as rigorosas estiagens típicas do sertão nordestino e tornou-se um polo de prosperidade da época. Lá, aos 22 anos, ela se casou com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, com quem teve cinco filhos: quatro homens e uma mulher. Bárbara ficou viúva cedo, aos 49 anos, o que a colocou à frente dos negócios da família, como engenhos e propriedades rurais.

O escritor Gylmar Chaves – que pesquisa sua vida desde 2000 –, conta que a cultura, o letramento e a visão moderna de Bárbara eram reconhecidos na cidade, assim como sua personalidade forte. Segundo ele, ela costumava ler clássicos da literatura universal na calçada de casa para um público geralmente constituído de homens.

O escritor também conta que Bárbara imprimiu na convivência com seus escravos traços bastante humanizados, numa época em que a dominação e os maus-tratos eram considerados normais. “Bárbara de Alencar costumava ser madrinha deles, como consta em algumas fontes que investiguei. Os escravos Barnabé e Cazumba participavam de conversas e tinham acesso a assuntos de sua confiança”, afirma.

Alguns até aderiram ao movimento de 1817. Há relatos de um escravo que teria cortado a própria língua com medo de fraquejar na prisão e entregar o paradeiro de dona Bárbara, história que provavelmente faz parte do universo folclórico, mas diz sobre sua fama. “Ela lutava por um nacionalismo justo, com harmonia entre as raças na composição do novo país”, acrescenta Kelyane de Souza.

“No entanto, não rompe com as segregações de gênero, etnia e geração e, ainda que esteja registrada a proximidade de Bárbara de Alencar com seus escravos, o abolicionismo não era questionado, para a preservação do patrimônio das famílias da elite”, contrapõe a pesquisadora.

Escravos no transporte de gado: Bárbara tinha uma relação cordial com eles / Wikimedia Commons

Outra modernidade de Bárbara estava à vista de todos: sua casa urbana, ao lado da Matriz do Crato, foi a primeira da cidade construída em pedra e cal, com técnica arquitetônica de beira e bica, uma novidade na época. Um engenheiro foi chamado
especialmente do Recife para o feito.

A revolucionária tinha ainda uma relação próxima com o padre e naturalista Manuel de Arruda Câmara, tido como líder intelectual e espiritual dos que fizeram a revolução de 1817. É a ele que se atribuem os insólitos conhecimentos de botânica de Bárbara e também acusações não comprovadas de adultério. “Foi combatente no campo das ideias numa época em que as mulheres lutavam, via de regra, para povoar territórios”, encerra Ariadne.


Primeira presidente?

José Martiniano de Alencar, o real (e não oficial) primeiro presidente do Brasil / Reprodução

Quando presa, as forças reais queimaram todo tipo de documento encontrado nas propriedades de Bárbara de Alencar. Além disso, poucos historiadores da época se debruçaram sobre sua história, que só muitos anos depois, e aos poucos, foi construída e contada. Até há pouco tempo, toda a informação era fundamentada em relatos orais que correram de boca em boca através dos tempos.

Nesse telefone sem fio, muitos atribuíram a Bárbara, e não ao seu filho Martiniano, a proclamação da República do Crato. Foi assim que surgiu o título de primeira presidente do Brasil. Mas não é essa a história que os documentos, embora raros, contam. Foi Martiniano quem esteve à frente, mesmo que apenas por oito dias, da breve República.

“É uma homenagem aos feitos de Bárbara de Alencar e de sua participação nas revoluções, pois, de fato, ela não chegou a governar a República do Crato”, afirma Kelyane de Souza. “Jamais me deparei com alguma citação de Bárbara de Alencar ter sido presidente, mesmo porque não houve tempo para esse contexto se concretizar”, concorda Gylmar Chaves. “Bárbara foi, isso sim, a primeira mulher reconhecida oficialmente como revolucionária, também a primeira presa política do país”, confirma Ariadne.


Saiba mais

Bárbara de Alencar, Adriadne de Araújo, 2002, Edições Demócrito Rocha