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Matérias / Brasil

A vida e a morte de Carlos Lamarca

Conheça a saga do militar amotinado, que enfrentou ficou cravado na história do país durante a ditadura militar

Celso Miranda e Maria Dolores Duarte Publicado em 17/09/2021, às 10h00 - Atualizado em 14/10/2022, às 12h00

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Lamarca em um de seus mais famosos registros - Wikimedia Commons
Lamarca em um de seus mais famosos registros - Wikimedia Commons

Noite de 24 de janeiro de 1969. Uma Kombi para em frente á um portão de saída do complexo militar em uma região metropolitana de Osasco, Quitaúna. No banco da frente, o capitão do Exército Carlos Lamarca. Comandante do 4° Batalhão de Infantaria Leve, foi autorizado a passar sem sobressaltos.

Lamarca tinha 32 anos. Sua ficha militar revelava que era um ótimo atirador e que fora o 46° numa turma de 57 aspirantes da Academia Militar dos Agulhas Negras, a escola de formação de oficiais do Exército brasileiro. Em 1964, quando um golpe militar afastou da presidência o gaúcho João Goulart, Lamarca servia como tenente no Rio Grande do Sul e apoiou a ação do governador Leonel Brizola, que quis reagir ao golpe.

Na época, foi acusado de deixar fugir um capitão brizolista detido na 6ª Companhia de Polícia do Exército, em Porto Alegre. Chegou a solicitar a inscrição no Partido Comunista Brasileiro, mas nunca a oficializou.

Em seu carro, um pequenho butim de material militar, destinado ao outro  lado. Enquanto se afastava do quartel, o capitão Lamarca deixava para trás a carreira e os companheiros de farda e seguia destino oposto: organizar a luta armada contra o governo brasileiro. Derrubar a ditadura dos generais para instalar a do proletariado, tentando reproduzir a façanha de Fidel e Che 11 anos antes.

"Disposto a desertar para se juntar à guerrilha, Lamarca costurava o pulo havia meses", conta Elio Gaspari, autor de A Ditadura Escancarada. Com um sargento, um cabo e um soldado, ele havia formado um grupo que vinha roubando armas leves e granadas do 4° RI. Em setembro de 1968, Lamarca se encontrou com Carlos Marighella, um dos líderes da guerrilha no Brasil, e com sua ajuda conseguiu enviar a mulher e os filhos para Cuba, onde eles estariam seguros. Era o que faltava para desertar.

Plano de estreia 

Carlos Lamarca / Crédito: Wikimedia Commons

O plano para a estréia de Lamarca na guerrilha estava marcado. No dia 26 de janeiro, seu grupo roubaria o que pudesse do quartel. Eles imaginavam que poderiam levar um pequeno arsenal de 560 fuzis, além de dois morteiros de 60 mm.

Com as armas, a VPR, uma entre tantas siglas das organizações que se armaram para lutar contra o governo militar, pretendia bombardear o Palácio dos Bandeirantes, enquanto outra turma tomaria a torre do Campo de Marte, causando um caos nas comunicações aéreas da cidade. "A ideia era dar a sensação de que o país vivia uma guerra civil", diz o historiador Jacob Gorender, autor de Combate nas Trevas.

Faltavam 3 dias para ação. Numa chácara em Itapecerica da Serra, a 30 km da capital, um grupo da VPR terminava a pintura verde-oliva do caminhão que serviria para tirar as armas do quartel. Há duas versões para o que aconteceu. A primeira é de Gorender, que era membro do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.

Segundo ele, um menino que brincava na vizinhança viu o caminhão e foi posto para correr pelos pintores da VPR. O menino contou para o pai, que chamou a polícia. Quatro dos 5 ocupantes da chácara foram presos. "Era gente graúda na esquerda revolucionária", diz Gorender. Entre eles estavam o ex-sargento Pedro Lobo de Oliveira e o ex-soldado paraquedista Hermes Camargo Batista.

A outra versão é do próprio Pedro Lobo. "Nunca existiu menino algum. Essa história foi plantada pela Polícia do Exército para nos desmoralizar e encobrir o informante que nos delatou. Tenho certeza que alguém nos entregou", diz Lobo. Segundo ele, a polícia chegou sem aviso, cercou todo o terreno e entrou pelo portão da frente. "O caminhão estava quase pronto e fomos pegos de surpresa."

Menino ou não, as prisões colocaram em risco os planos da VPR. Avisado, o capitão Lamarca, imaginando que um dos presos poderia delatá-lo, não quis mais esperar e desertou no dia seguinte, levando consigo 63 fuzis FAL e 3 submetralhadoras INA. O bombardeio foi cancelado. 

Lamarca passou a viver escondido. Por ter experiência militar, era considerado um "quadro"– como eram chamados os que aderiam à luta armada, muito importante e acabou liderando um campo de treinamento da VPR, que reunia em maioria jovens dispostos a aprender tiro e técnicas de guerrilha com a ideia de iniciar um foco de rebelião em algum lugar do interior do Brasil.

Para financiar suas ações, o grupo realizava assaltos a bancos, casas de armas e farmácias. Segundo o livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Emiliano José e Oldeck Miranda, entre janeiro e setembro de 1969 foram cerca de 20 ações, que eles chamavam de expropriações. Em maio, durante um assalto simultâneo a dois bancos no centro de São Paulo, Lamarca acertou um tiro na cabeça de um guarda civil.

A operação repercutiu muito e ajudou a dar fama (e infâmia) ao capitão renegado. Na época, ele passou por uma cirurgia para reduzir o nariz e disfarçar a fisionomia, que já ia ficando conhecida nos cartazes de procura-se.

Bananas e abacaxis

Em abril de 1970, um militante da VPR capturado no Rio de Janeiro tinha uma informação que caiu como uma bomba no Centro de Inteligência do Exército (CIE): Carlos Lamarca estava em algum lugar perto do quilômetro 250 da rodovia BR-116, nas proximidades de Registro, com um grupo de guerrilheiros.

No dia 21, o II Exército enviou homens para o vale do Ribeira. "Eram quase todos recrutas com 3 meses de instrução, sem prática de tiro, muitos carregando mosquetões", escreveu o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi de São Paulo em Rompendo o Silêncio. Na operação, as estradas foram fechadas, 120 pessoas foram detidas e toda a região passou a ser vigiada por helicópteros.

Os guerrilheiros eram 17, mas Lamarca, informado do perigo, desativara as duas bases que mantinha por ali. "Oito deles foram embora de ônibus, misturados à população. Para a guerra, restavam 9. Dois foram capturados numa batida na estrada. Estavam sem documentos e acabaram presos", diz Gorender.

Os 7 restantes, incluindo Lamarca, fugiram pelo mato durante 3 semanas, até que em 8 de maio entraram num vilarejo para alugar o caminhão de um pequeno comerciante. "Ele fechou negócio, ofereceu-lhes comida e despachou um cavaleiro para avisar a polícia", diz Gaspari.

Os militares montaram uma barreira na praça central de Eldorado Paulista. "Às 7 da noite, quando o caminhão chegou, um policial pediu aos passageiros que descessem e mostrassem os documentos. Eles desceram atirando, romperam a barreira, feriram 2 policiais e fugiram."

Mais à frente na estrada, a pouco mais de 1 km de Sete Barras, os fugitivos foram interceptados por uma nova tropa da PM com cerca de 30 homens. Dessa vez, os renegados nem foram detidos: antes disso, abriram fogo. Quando o tiroteio acabou, 8 soldados tinham fugido, 14 estavam feridos e 18 se renderam.

O pelotão era comandado pelo tenente da PM Alberto Mendes Júnior, 23 anos, que negociou uma trégua. Lamarca e seus homens conduziram os feridos até a estrada, onde poderiam ser resgatados. Mendes foi transformado em refém. Mais alguns quilômetros e os guerrilheiros se viram diante de um comboio.

Evitando outro combate, abandonaram o caminhão e se meteram no mato. Na confusão, dois guerrilheiros se perderam e foram capturados.

Restavam os 5 e o tenente Mendes. Segundo Jacob Gorender, foi no dia 10 de maio que o grupo resolveu que não poderia mais seguir com o refém. Decidiram matá-lo. "Nada lhe foi dito. Yo-shitane Fujimori, o Joel, deu-lhe uma coronhada na cabeça, o tenente caiu como um fardo. Foi morto a pauladas, com o crânio esfacelado, porque seus assassinos temiam que tiros revelassem o esconderijo. Sepultaram-no na mata", escreveu Gaspari.

A perseguição já durava 41 dias, quando os fugitivos, famintos e debilitados – eles se alimentavam de bananas e abacaxis roubados dos sítios locais, decidiram mandar um deles a São Paulo para buscar uma equipe de resgate. O mais jovem, sem ficha na polícia, foi até a estrada e pegou um ônibus.

Deveria voltar no dia seguinte, mas não apareceu. Na noite de 31 de maio, os 4 resolveram arriscar tudo. Desceram à estrada e deram de cara com um caminhão do Exército. Pararam-no, renderam os 5 ocupantes, tomaram-lhes a farda e assumiram o volante. Poucos quilômetros adiante, perto de Taquaral, havia uma barreira do Exército. O caminhão foi parando.

Bastaria que olhassem debaixo da lona para descobrir os soldados de cuecas. Porém os guerrilheiros mais procurados do país romperam o cerco sem dar um tiro. "É ordem do coronel", disse um deles. E a barreira se abriu.

À sombra da baraúna 

Lamarca vagou por São Paulo, de esconderijo em esconderijo. Deixou a VPR e entrou no MR-8. Em julho de 1971, ele e a mulher, Iara Iavelberg, fugiram para a Bahia. Iara ficou em Feira de Santana e, com o nome de Cirilo e se dizendo geólogo, o capitão seguiu para Buriti Cristalino, um povoado de 50 casas, localizado no município de Brotas de Macaúbas, a 700 km de Salvador.

O plano era fazer da região um foco guerrilheiro, mas Lamarca fez pouco a não ser se esconder durante o tempo em que permaneceu na Bahia. Acompanhado e apoiado por José Campos Barreto, o Zequinha, ele dedicava quase todo o seu tempo a escrever: seus textos dessa época vão da política à poesia e eram expressos em forma de cartas a Iara.

Documento inédito na historiografia, as 23 cartas foram publicadas pelo jornal Folha de S.Paulo em 1987 e revelam o cotidiano de um homem solitário, confinado em seus pensamentos e isolado dos companheiros. Ele passava os dias "sempre muito quentes" protegido do sol numa barraca. Segundo o livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, ele tomava banho à noite e enterrava as próprias fezes para não deixar rastros.

Em agosto, enquanto Lamarca vivia em sua tenda em Buriti, um militante era preso no centro de Salvador. Era José Carlos de Souza, o Rocha, membro do MR-8, responsável pelo contato com Iara. Segundo Jacob Gorender, Souza foi levado para o quartel da Polícia do Exército. No primeiro dia, apanhou até as 2 da manhã.

Os interrogadores queriam conhecer o paradeiro de Dino, líder do MR-8 na Bahia, e onde ficava dispositivo rural. Ele acabou revelando um "aparelho" do grupo em Salvador. "José Carlos não sabia o endereço, achou que iludira os interrogadores e estava certo de que, por cautela, o aparelho tinha sido desativado", diz Gaspari.

O peso da delação

Celso Lungaretti durante depoimento / Crédito: Wikimedia Commons

Celso Lungaretti não tinha 18 anos quando entrou para a Frente Estudantil Secundarista, em São Paulo. No ano seguinte, 1969, com sua foto estampada nos cartazes dos procurados vivos ou mortos pela polícia, caiu na clandestinidade. Foi quando passou a integrar a VPR e seguiu com Lamarca para o vale do Ribeira. "Eu não tinha a noção de que era uma batalha perdida", diz Lungaretti.

Ao desistir da empreitada, ele voltou a São Paulo. Foi preso em 16 de abril de 1970 e, depois de ter sido torturado, revelou o local onde esteve com Lamarca, confiante de que estaria entregando só capim. O capitão havia lhe dito que iria implantar a base bem mais ao sul. Não foi o que aconteceu, e os militares chegaram até o campo no Ribeira.

Lungaretti foi tomado como delator e sofreu por 34 anos com essa culpa. Em 2004, com a abertura de parte dos arquivos militares, ele pôde provar sua inocência. Escreveu Náufrago da Utopia " Vencer ou Morrer na Guerrilha aos 18 anos, com o qual acredita ter acertado as contas com a história.

Mas o DOI descobriu o endereço: ficava na rua Minas Gerais, em Pituba. Os militares cercaram todo o quarteirão e invadiram o edifício Santa Terezinha ao amanhecer de 20 de agosto e prenderam militantes do MR-8, a empregada e 2 crianças que estavam no apartamento 201. Quando se preparavam para partir, um vizinho denunciou que uma mulher estava escondida em seu apartamento, o 202, e que portava 2 revólveres.

Era Liana, o codinome de Iara Iavelberg. Ouviu-se um tiro. Uma bala atravessou-lhe o coração e o pulmão esquerdo. Segundo o livro Brasil: Nunca Mais, a patrulha tentou levá-la a um hospital, mas no caminho Iara morreu. Durante mais de um mês, o corpo de Iara permaneceu no necrotério, em Salvador. O DOI acreditava que Lamarca poderia tentar resgatá-lo e o manteve como uma espécie de isca.

"Começavam a se cruzar os caminhos do ex-capitão Lamarca e do major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe da 2ª seção do Estado-Maior da 6a Região Militar, ex-comandante do Destacamento de Operações e Informações (DOI) de Salvador", afirmou Gaspari. "Filho de um sargento-músico do Exército, Cerqueira era um obstinado. Tinha aquela característica dos temperamentos napoleônicos que o levava a agir, já como major, como se estivesse escrevendo a biografia de um marechal."

A caça

Em 25 de agosto, o major Cerqueira reuniu na sede da 6ª Região Militar, em Salvador, todas as equipes que caçavam Lamarca no interior do estado. O objetivo era coordenar as ações dos 215 homens, entre os soldados e oficiais dos serviços secretos do Exército e da Aeronáutica, e os membros de diferentes instituições policiais de São Paulo, Bahia e Brasília. A ofensiva final sobre Lamarca recebeu o nome de uma praia de Maceió, terra natal de Cerqueira: Operação Pajussara.

Os militares chagaram a Buriti Cristalino no dia 28. Foram direto à casa dos Barreto. Olderico, 23 anos, e Otoniel, 20, irmãos de Zequinha, dispararam contra a tropa. O primeiro foi derrubado com um tiro no rosto, o segundo com uma rajada de submetralhadora. Segundo os próprios registros oficiais da operação, José Barreto, pai de Olderico e Otoniel, foi torturado por vários dias para que revelasse o esconderijo do filho Zequinha.

Lamarca e Zequinha estavam perto o bastante do tiroteio para escutar os tiros e fugir de Buriti rapidamente, deixando para trás no acampamento cigarros, munição e latas de comida. Correram 9 km no meio da noite e chegaram a um engenho. Durante dias, evitaram qualquer vilarejo, qualquer casinha e até as trilhas de caçadores e garimpeiros. Mas, no dia 7 de setembro, foram localizados e denunciados próximos ao povoado Três Reses.

Fugiram antes da chegada da força. Atravessaram a serra da Conceição e entraram na caatinga. Lamarca estava doente, faltava-lhe fôlego, mal andava. "Zequinha carregava-o nas costas. Alguns camponeses de Carnaúba ouviram quando ele pediu para ser abandonado pelo amigo", afirma Gaspari, em A Ditadura Escancarada.

Durante 20 dias, os dois homens andaram 300 km. Alimentavam-se de rapadura e bebiam nos tanques de gado. Assim, desnutridos e desidratados, chegaram à região de Brotas de Macaúbas. Lamarca, com 1,73 m de altura, pesava apenas 60 kg.

Pararam para descansar perto de Pintada, um lugarejo de poucas casas. O livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, descreve assim esses momentos: "Os dois homens pararam e descansavam sob uma imponente baraúna. Um dormia com a cabeça apoiada numa pedra, o outro estava sentado". Estavam a 300 m da estrada, mas foram vistos por crianças que zanzavam por ali.

Era cerca de 3 da tarde quando o major Cerqueira foi avisado e botou seus homens na pista dos fugitivos. No fim da tarde, o barulho de um galho estalado despertou Zequinha: "Capitão, os homens estão aí", teria dito, de acordo com os biógrafos Emiliano José e Oldeck Miranda.

Zequinha saiu correndo e foi morto por rajadas de metralhadora. Lamarca não chegou a levantar e levou 7 tiros. Segundo os registros da autópsia, citados por Gaspari, "uma das balas atravessou-lhe o tórax, transfixando o coração e os dois pulmões."

"Amarraram-no a um pau e levaram-no para a beira da estrada, onde uma caminhonete transferiu os cadáveres para Brotas", diz Gaspari. De lá, embarcaram-no para Salvador e no aeroporto foi jogado no chão para que fosse fotografado. Lamarca ainda tinha os olhos abertos.