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Matérias / Personagem

O brutal assassinato de Chico Mendes em 1988

Entenda como a execução do líder seringueiro revelou ao Brasil a violenta verdade das disputas territoriais na Amazônia

Otávio Urbinatti Publicado em 22/12/2019, às 00h00 - Atualizado em 28/02/2024, às 10h01

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Chico Mendes em retrato famoso de 1988 - Miranda Smith, Miranda Productions, Inc via Wikimedia Commons
Chico Mendes em retrato famoso de 1988 - Miranda Smith, Miranda Productions, Inc via Wikimedia Commons

Aos olhos dos poderosos locais, Xapuri anoitecia em resistência pelos direitos e pela vida, nem que a última custasse a primeira. Era 22 de dezembro de 1988 e um de seus maiores inimigos entrava de tocaia no quintal do líder da região. Já passava das 18h e um tiro de espingarda calibre 20 ecoou pelo pequeno vilarejo do Acre.

Do lado direito do peito, 42 balas de chumbo atingiam Francisco Alves Mendes Filho, o popular Chico Mendes. Naquela noite, enquanto seringueiras sangravam látex, seu mais célebre defensor sangrava as consequências. A causa da conservação ambiental da Amazônia e da sobrevivência dos povos da floresta perdia uma de suas maiores lideranças.

Apesar da grande comoção, seu assassinato já era anunciado. Em diversas palestras, o seringueiro comunicava as constantes ameaças que recebia dos fazendeiros da região. Em maio de 1988, durante um evento organizado pela Associação dos Geógrafos Brasileiros na USP, em São Paulo, Chico Mendes comentou sobre as intimidações dos fazendeiros locais.

“Vários pistoleiros estão sendo espalhados na região para eliminar a nossa resistência. A minha casa e o Sindicato estão cercados. Mas não adianta mais matar só um de nós, porque a nossa liderança já está muito grande”, disse em um de seus últimos atos públicos. “Se matam um Chico Mendes hoje, têm outros Chicos para dar continuidade à luta.”

Brasil remoto

Nesse mesmo encontro, na USP, o ativista fazia um de seus últimos apelos para o país olhar com mais atenção para sua região. Chico já era internacionalmente reconhecido, mas ainda precisava garantir apoio da sociedade como um todo.

“Sou seringueiro e tenho uma participação direta na selva. Tive que sair do extrativismo para procurar apoio para minha categoria. Hoje, meu trabalho é diretamente ligado aos povos da floresta", afirmou ele.

Após se apresentar, lembrou da histórica disputa por terras na região e das péssimas condições de trabalho dos seringueiros.

Chico nasceu em 15 de dezembro de 1944, em Xapuri, um dos lugares mais longínquos do centro do país. O local, por sua vez, já era considerado de conflito muito antes dessa época. No final do século 19, a indústria automobilística nos Estados Unidos passou a demandar a borracha brasileira e um contingente muito grande de nordestinos foi para a região, ainda boliviana, ganhar a vida nos seringais.

Ao contrário do que muitos imaginavam, ali não era um vazio demográfico e muitas tribos indígenas moravam nos arredores. A invasão dos não indígenas, portanto, deu início aos processos de grilagem e às constantes brigas por territórios.

Chico Mendes e esposa / Crédito: Miranda Smith, Miranda Productions, Inc via Wikimedia Commons

Nos seringais, migrantes do resto do país, principalmente do Nordeste, trabalhavam por vezes em condições análogas à escravidão, aprisionados por dívidas. A mão de obra foi determinante para impulsionar a economia do Brasil e favorecer a anexação do Acre, em 1903. Mas era um negócio condenado.

Adquirido da Bolívia num processo que envolveu violência e do qual o país reclama ainda hoje, o território do Acre passou ao prejuízo já no início do século 20. As sementes das seringueiras foram adquiridas por britânicos e levadas para suas colônias na Ásia, onde, diferente de seu Brasil nativo, com suas pragas, podiam ser plantadas industrialmente.

Na Segunda Guerra Mundial, a participação do Brasil no lado aliado fez renascer a indústria, para sustentar as indústrias de tanques e aviões. O mercado cresceu, mas em pouco tempo as terras recuaram para o esquecimento. Foi nessa hora, por sobrevivência, que os extrativistas tiveram que se reinventar.

Amigos na floresta

Daí em diante, comunidades dos seringais estabeleceram uma relação muito mais íntima com a floresta. Os costumes, as tradições e até certa visão mística da floresta foram incorporados pelos seringueiros, que, de invasores, tornariam-se aliados dos índios, criando uma união entre os povos da região.

Mas ainda assim os anos áureos da borracha deixaram como herança a intensa disputa entre fazendeiros e posseiros. O local era carente de qualquer política pública que garantisse a sobrevida daquela população. Nesse contexto, sem nenhuma perspectiva, só restava a Chico Mendes sangrar as árvores ao lado do pai no Seringal Cachoeira, em Xapuri.

Foi na década de 1960 que o jovem seringueiro conheceu Euclides Távora, um velho comunista que havia participado da Intentona de 1935 e decidiu se refugiar na floresta. Com ele, se alfabetizou. Nas letras e em sua visão política.

Durante o regime militar, a terra esquecida ganhou novo enfoque. A partir da década de 1970, o Governo Federal criou um plano econômico voltado para o desenvolvimento da Amazônia — torná-la mais parecida com o resto do país. A ideia de levar infraestrutura (como rodovias) à região — e trazer novos imigrantes — punha em xeque o modo de vida dos seringueiros e índios. A própria Amazônia estava visada pelo fogo e pela motosserra.

Chico e seus companheiros receberam a notícia do plano desenvolvimentista de uma forma muito violenta. Muitos deles foram encurralados e a partir daí começaram a se organizar pela permanência em suas terras”, explica Pietra Perez, pesquisadora da USP e mestra em geografia humana.
Chico Mendes e filhos / Crédito: Miranda Smith, Miranda Productions, Inc via Wikimedia Commons

Os primeiros atos de resistência começaram a surgir e, em 1975, é formado o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia. “Nesse momento, eu entro na luta, porque lá atrás eu consegui colocar algo na minha cabeça com a experiência desse homem que viveu a Intentona”, recordou Chico.

Como se temia, o desmatamento foi certeiro na redução da arrecadação da atividade extrativista, aumentando a miséria e o desemprego no local.

Sem saída, o grupo se organizou e criou os empates, formas pacíficas de resistência, formando correntes para impedir o corte das árvores com o próprio corpo. Não aceitando o diálogo, o grupo de proprietários rurais recorreu à Justiça e conseguiu aval para desmatar e fortalecer a atividade agropecuária. A repressão aumentou, mas não diminuiu a luta pela terra.

Mensagem ao mundo

Num primeiro momento, a luta desse povo não era motivada pela preservação ambiental, mas pela permanência das famílias na floresta.

Quando o então presidente do Sindicato é assassinado, Chico assume a liderança do movimento. Nesse período, o ativista já tinha participado da formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e dado início a uma vida sem sucesso na política.

Enquanto isso, longe do Brasil e seus planos de integração nacional, começava uma discussão sobre um possível colapso ecológico na Amazônia. “Nos anos 1980, surgiram pesquisas que apontaram que regiões de conservação ambiental que excluíam suas populações tinham queda dramática da biodiversidade”, afirma a pesquisadora da USP.

Agora, sim, usando a pauta ambientalista, em 1985, o grupo decidiu criar em Brasília o Encontro Nacional de Seringueiros, onde foi apresentada a proposta de criação de Reservas Extrativistas.

Chico Mendes conseguiu traduzir a mensagem de um grupo sindical do interior do Acre para uma linguagem universal. Com as reservas extrativistas, a natureza e as comunidades estariam protegidas”, explica Cláudio Maretti, ex-diretor de ações socioambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Na ocasião, também é criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), com o intuito de mostrar que, embora isolada e pouco rentável, a atividade extrativista ainda existia e era o principal meio de subsistência daquelas famílias.

Em março de 1987, Chico Mendes foi convidado para uma comitiva da ONU, em Miami. Durante o evento, o ativista denunciou as políticas desenvolvimentistas da Amazônia e condenou os investimentos de bancos internacionais na região. O discurso, com repercussão mundial, deu a ele prêmios globais de preservação ambiental. E um alvo pintado em suas costas.

A influência

A luta em território nacional ainda continuava e, só em 1988, o governo federal começou a organizar o modelo de reserva extrativista. As ameaças ao líder aumentavam, e Darli Alves, então proprietário do Seringal Cachoeira e representante local de uma entidade formada por grandes proprietários, se torna o maior inimigo dos ativistas de Xapuri.

O sindicalista passou a prever sua morte ainda naquele ano. “Todo mundo sabia que o meu pai estava sendo perseguido. O assassinato não foi novidade para ninguém, porque isso já tinha acontecido com outras lideranças. Nós sabíamos que era só questão de tempo, mas mesmo assim foi muito duro”, lembra Angela Mendes, primeira filha de Chico.

O assassinato, ainda que previsto, ganhou força na imprensa internacional e a pressão em cima do governo brasileiro aumentou. Após o episódio, aliados do movimento organizaram o Comitê Chico Mendes para criar uma mobilização em prol do julgamento dos assassinos.

Entre suspeitos, o crime fora atribuído a Darli Alves e ao seu filho, Darci. Ambos foram julgados em 1990 e condenados a 19 anos de prisão. Nesse mesmo ano, o governo decretou por lei que mais de 1 milhão de hectares em Cachoeira seriam protegidos do desmatamento, de derrubadas e queimadas, levando o nome de Reserva Extrativista Chico Mendes.

“Hoje, temos cerca de 70 mil famílias que vivem em diferentes tipos de reservas extrativistas, a maioria na Amazônia e no litoral. Chico virou herói nacional porque teve a capacidade de projetar sua luta a nível global”, ressalta Cláudio Maretti, do ICMBio, instituição responsável por implantar, gerir e monitorar as Unidades de Conservação do país.

O movimento não só garantiu a permanência de inúmeras famílias em suas terras como também assegurou minimamente políticas públicas para a região. Joaquim Belo, ex-presidente do CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas), comenta que a passagem do acreano na luta é reproduzida de diferentes formas.

“É difícil medir o legado de Chico, porque ele está nas pessoas, nas universidades, em nomes de instituições, em filmes, em livros. Mas, para nós do movimento, o seu maior feito foi garantir o direito às nossas terras”, completou. “Hoje, o defunto é mais caro em nosso território.”

Desafios pelas décadas

Apesar de limitada, a produção da borracha ainda é extremamente importante para muitas famílias do Acre. Por mais que 50% do estado seja destinado a áreas de conservação, ainda existe muita disputa por terra nos entornos das fazendas.

Para isso, o Comitê Chico Mendes realiza anualmente, em dezembro, a Semana Chico Mendes entre os dias 15 (seu aniversário) e 22 (sua morte) para resgatar os ideais do líder e continuar a discussão do movimento.

A filha mais velha, Angela, membro do grupo e do CNS, comenta que é necessário denunciar que “outros Chicos” continuam ameaçados na região. Hoje, a luta é fazer com que não se perca o que o nome de seu pai conquistou.

“Eu era adolescente quando ele morreu. Por isso, ao longo da minha vida fui construindo um Chico através das outras pessoas. Mas acho que o sangue e o DNA não negam a minha luta por justiça e igualdade.”

Ela lembra que recentemente uma área próxima a Xapuri foi foco de ameaças e algumas casas foram derrubadas. “Não sabemos de nenhuma morte, por enquanto”, disse.

Além do Acre, ainda há outros registros de conflitos entre jagunços e trabalhadores rurais. No sul do Pará, por exemplo, o chamado massacre de Pau-D’Arco tirou a vida de dez trabalhadores rurais em maio de 2017. Os assassinatos aconteceram durante uma ação de reintegração de posse em um acampamento da região.

“Esses territórios continuam em disputa permanente, porque terra não perde valor. São áreas muito ricas, com muita madeira e muitos minérios”, completa.