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Matérias / China

Os primórdios da China, o país que já dominou o globo diversas vezes

Em vários momentos da História, o império chinês foi o mais poderoso do mundo. No século 21, essa história está se repetindo

Rodrigo Cavalcante Publicado em 01/10/2019, às 08h00

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Crédito: Reprodução
Crédito: Reprodução

Em 1989, o mundo assistiu à derrocada dos governos comunistas. Hungria, Polônia, Bulgária, Checoslováquia, Romênia e Alemanha Oriental: um a um, eles foram caindo, assim como o Muro de Berlim.

Em Moscou, a abertura promovida pelo líder Mikhail Gorbachev dava sinais de que a ânsia por mudanças estava escapando do controle das autoridades — o que levaria, dois anos depois, à extinção da União Soviética. Na China, porém, o desfecho de 1989 foi bem diferente.

Entre abril e junho, milhares de estudantes chineses acampados em frente à sede do governo, na praça da Paz Celestial, em Pequim, acreditaram que a onda de liberdade também chegaria ao país. A esperança foi enterrada na virada de 3 para 4 de junho, quando o exército “dispersou” os estudantes com seus tanques.

Até hoje, ninguém sabe quantos morreram no massacre da praça da Paz Celestial (as estimativas oscilam entre 300 e 7 mil vítimas). Dezoito anos depois, é perturbador constatar que o governo chinês tenha alcançado sua meta: manteve a unidade da China e levou o país a um ritmo de crescimento tão espetacular que boa parte do mundo prefere esquecer a carnificina e pegar carona na pujança chinesa.

Mas como explicar, afinal, que mais de 1 bilhão de habitantes tenham sido controlados com tamanha facilidade após o exército atirar a sangue frio em estudantes? O que permite à China desafiar a lógica do Ocidente, aliando a repressão das liberdades individuais a uma economia de mercado agressiva? É provável que ao menos parte da resposta esteja no passado imperial do país.

“Os chineses sempre tiveram a consciência de que foram o centro do mundo e de que apenas um poder unificado seria capaz de impedir a desintegração de seu gigantesco território”, diz o pesquisador Severino Cabral, fundador do Instituto Brasileiro de Estudos da China, Ásia e Pacífico (Ibecap) e membro permanente da Escola Superior de Guerra.

Hoje, os historiadores sabem que a unidade desse império já estava consolidada desde o século 3 a.C., quando a China se tornou uma potência sem concorrentes. A revelação foi confirmada por um dos mais importantes achados arqueológicos do século 20, feito por acaso nos arredores da cidade de Xiang, na China central, há pouco mais de 30 anos.

O primeiro imperador

Eles literalmente emergiram da terra. Ao escavar um poço nas cercanias de uma muralha, em 1974, um grupo de moradores da cidade de Xiang encontrou cabeças de estátuas. Em seguida, surgiram mais cabeças, troncos e membros, até arqueólogos concluírem que ali havia um exército com mais de 7 mil soldados de terracota em tamanho natural, ao lado de cavalos do mesmo material e armas de bronze.

Pesquisadores concluíram que eles foram enterrados em nome do primeiro imperador da China, Shi Huangdi, da dinastia Qin (que durou de 221 a 210 a.C.). “Ele centralizou e fundou a base do que hoje chamamos de China”, afirmou Harry Gelber, professor de Relações Internacionais da Universidade de Boston e autor de diversos livros sobre a China, em entrevista publicada na edição de setembro da revista inglesa BBC History.

Soldados de terracota / Crédito:  Reprodução

Para unificar a China, o imperador precisou controlar o poder dos governantes locais. Ele dividiu o Estado em 36 capitanias, cada uma liderada por um governante civil e com um comandante militar (havia também um inspetor imperial para fiscalizar o trabalho do governador).

A escrita foi padronizada, assim como pesos, medidas e moedas. Mais de 6 mil quilômetros de estradas foram construídos — tanto quanto no Império Romano — e canais foram abertos para permitir a navegação pelos rios.

Em matéria de inovação artística, a descoberta dos guerreiros de Xiang revelou uma sofisticação inimaginável para os padrões da época. “Até meados do século 20, historiadores da arte sequer acreditavam que existissem esculturas na China durante esse período”, escreveu o historiador americano John King Fairbank em seu clássico China — Uma Nova História.

Entretanto, de acordo com os historiadores, não foi apenas a centralização política a responsável pela unificação da China. O “cimento” da cultura chinesa seria reforçado por uma série de tradições filosóficas — sendo uma das mais importantes a do pensador chinês Kung Futsu, conhecido no Ocidente como Confúcio.

Hierarquia divina

Não há como entender a unificação da China sem o confucionismo. “Seria o mesmo que estudar o Ocidente sem levar em conta o papel do cristianismo”, compara o professor Harry Gelber.

Mas, diferentemente do cristianismo, o confucionismo não é propriamente uma religião. Está mais para uma grande visão de mundo que inclui ética, ideologia política, orientações para o relacionamento familiar e outros princípios baseados nos ensinamentos de Confúcio, que viveu entre 551 e 479 a.C.

Confúcio se considerava um mensageiro de velhas tradições, resgatando as raízes de rituais que deviam ser seguidos por cidadãos e governantes. Na base do código confucionista está o respeito a uma hierarquia cósmica em que cada pessoa tem seu lugar e deve venerar quem lhe é superior e cuidar de quem lhe é inferior.

“Os pais eram superiores aos filhos, os homens às mulheres, os reis aos súditos”, escreveu Fairbank. “Se todos cumprissem seu papel, a ordem social se conservaria.”

Ilustração do Império chinês / Crédito: Reprodução

Para o imperador, é claro, o confucionismo assegurava a legitimidade de seu governo, baseado na ideia de mandato divino. Isso não significa, entretanto, que esse mandato não pudesse ser ameaçado.

Caso o governante não aparentasse seguir corretamente o código moral confucionista, seu império poderia ser tragado pelo caos gerado por desequilíbrios cósmicos — o que fazia com que uma enchente, por exemplo, pudesse ser vista como uma prova de que o imperador, digamos assim, havia quebrado o decoro divino.

Desejando evitar esse tipo de dúvida, os imperadores se apropriaram do código confucionista e o levaram para dentro do Estado, fazendo com que as leis e o treinamento dos funcionários do Estado fossem inspirados nesses preceitos.

Com o fim da dinastia Qin, esse sistema foi usado por seus sucessores. A começar pela dinastia Han (vigente entre 206 a.C. e 220 d.C.), eles preservaram a unidade da China e expandiram seu poder nos séculos seguintes.

Apesar de a dinastia Han ter tentado manter o controle sobre a venda de mercadorias, comerciantes enriqueceram com a exportação dos primeiros artigos chineses a ganhar fama mundial.

A rede de caminhos por onde esses produtos viajavam até a Europa seria conhecida mais tarde como a Rota da Seda, primeiro elo comercial entre a China e o Ocidente. Por ela passaram não apenas mercadores, mas novas idéias e religiões, como o budismo, que veio da Índia para, a partir do século 5, se somar ao confucionismo nos fundamentos do pensamento chinês.

Vanguarda mundial

Uma das mais importantes inovações nascidas na China soa um tanto burocrática, mas foi fundamental para o desenvolvimento do império. Durante a dinastia Tang (618-907), os funcionários do Estado passaram a ser contratados por meio de exames (semelhantes aos atuais concursos públicos), algo que só iria se generalizar no Ocidente lá pelo século 19.

Inicialmente, o processo de recrutamento era apenas uma formalidade — já que, na prática, a linhagem familiar e os contatos sociais prevaleciam. Pouco a pouco, entretanto, os administradores foram se profissionalizando, o que aumentou a eficiência do governo chinês e ajudou a conduzir o país a uma espécie de idade de ouro, vivida do século 10 até o século 13.

Imperadores da China / Crédito: Reprodução

Não foi por acaso que, no início do século 14, os relatos das viagens ao Oriente atribuídos ao veneziano Marco Polo maravilharam os europeus como se fossem livros de ficção.

Ao chegar à China, em 1275, ele teve contato não apenas com a já famosa produção de seda e porcelana, mas com inovações como a bússola magnética, livros impressos, embarcações bem mais sofisticadas que as galeras mediterrâneas, explosivos, complexas redes de canais fluviais e uma indústria metalúrgica cuja produção anual de 125 mil toneladas somente seria equiparada pela Inglaterra no século 18, décadas após o início da Revolução Industrial.

Parecia que o veneziano não havia retornado de uma visita ao Oriente, mas de uma viagem ao futuro. Boa parte do que Marco Polo viu e relatou ainda eram os efeitos do renascimento tecnológico e cultural vivido durante a dinastia Song, que tivera seu auge no século 11.

Mas esse apogeu não incluíra o campo militar: a inferioridade chinesa havia dado espaço para que a nação fosse invadida em 1234 e, quatro décadas depois, dominada pelos mongóis — quando Marco Polo esteve por lá, o imperador da China era o mongol Kublai Kahn.

“Mas, ao contrário do que costuma acontecer nesses casos, foram os invasores que terminaram sendo absorvidos pela força da tradição chinesa, fazendo com que a corte incorporasse a cultura do império”, diz Severino Cabral. O fato é que, ao retomarem o poder com a dinastia Ming, em 1363, os chineses pareciam prontos (inclusive pela tecnologia naval) a dominar o mundo.

Em seu clássico Ascensão e Queda das Grandes Potências, o historiador americano Paul Kennedy escreveu: “De todas as civilizações do período pré-moderno, nenhuma parecia mais adiantada, nenhuma se sentiu tão superior quanto a China”.

E completou: “Sua população considerável, de 100 milhões a 130 milhões de habitantes, em comparação com os 50 milhões da Europa no século 15, sua cultura notável, suas planícies férteis e irrigadas e sua administração unificada, hierárquica, gerida por uma burocracia confuciana bem educada, tinham dado à sociedade chinesa uma coesão e um requinte que constituíam motivo de inveja para todo visitante estrangeiro”.

Diante desse diagnóstico, como explicar que pequenos países europeus, como Espanha e Portugal, viessem a superar a China na expansão de seus domínios pelo planeta?

A última dinastia

Eram cerca de 1350 navios de combate e 250 barcos destinados a viagens longas. Historiadores estimam que, no início do século 15, durante o período Ming, a China era a maior potência naval do mundo — para fazer uma comparação, a famosa armada espanhola reuniria, em 1588, pouco mais de 130 embarcações.

Entre 1405 e 1433, os chineses empreenderam sete expedições de longa distância lideradas pelo almirante Zheng He. As viagens foram do sudeste asiático ao golfo Pérsico, chegando à costa oriental da África décadas antes de os portugueses se aventurarem por lá.

De acordo com a polêmica tese do historiador inglês Gavin Menzies, autor de 1421 — O Ano em Que a China Descobriu o Mundo, uma das expedições de Zheng He teria inclusive chegado à América.

Menos de um século depois dessas expedições, os chineses perderam a dianteira naval para os europeus. De acordo com os historiadores, uma das explicações para o recuo da expansão marítima chinesa – e a consequente perda de sua liderança mundial – seria a excessiva centralização do poder.

Uma única decisão do imperador decidia o destino de todo o enorme território chinês e inibia iniciativas individuais. Foi exatamente isso que aconteceu após as navegações de Zheng He.

“A expedição chinesa de 1433 foi a última delas e três anos depois um edito imperial proibiu a construção de navios de alto-mar”, escreveu o historiador Paul Kennedy. “Apesar de todas as oportunidades que se ofereciam no além-mar, a China tinha decidido voltar as costas para o mundo.”

Uma razão para a retração naval teria sido a necessidade de concentrar esforços militares nas fronteiras do norte, onde os mongóis continuavam ameaçando invadir a China. Além disso, os burocratas chineses tradicionalmente viam o comércio como atividade pouco nobre.

Para eles, as expedições deveriam ter caráter exclusivamente diplomático. “Com a vitória da anticomercialização e da xenofobia, a China retirou-se do cenário mundial”, escreveu o historiador John King Fairbank.

Dinastia Qing / Crédito: Reprodução

Mesmo após a dinastia Qing, iniciada em 1644, ter revigorado o país, a China não conseguiria mais acompanhar o crescimento das potências do Ocidente. “Nesse período, a China teve de se adaptar para tentar digerir a nova dinâmica iniciada com o advento da Revolução Industrial”, afirma o professor Severino Cabral.

E isso aconteceu da pior forma possível. Durante o século 19, após diversas invasões, o país parecia prestes a se desintegrar: era controlado no norte pelos alemães, no centro pelos britânicos e no sudoeste pelos franceses. Nada menos que 50 portos chineses estavam nas mãos de estrangeiros.

Quando o último imperador, Pu-Yi, deixou o trono aos 5 anos após um motim de seus oficiais, em 1911, ninguém sabia como a China se manteria unida. Após as duas Guerras Mundiais e décadas de guerra civil, a China voltaria a encontrar um eixo unificador pelas mãos do líder comunista Mao Tsé-tung, que proclamou em 1949 a República Popular da China.

“É inegável que o governo comunista se assemelha, em muitos aspectos, a uma nova dinastia”, diz Severino Cabral. “Com as reformas econômicas empreendidas por Deng Xiaoping [o sucessor de Mao] no fim dos anos 1970, a China tem desafiado aqueles que acreditavam que o capitalismo era incompatível com a ética confuciana.”

Uma das últimas vezes em que a estabilidade do regime centralizado foi posta em dúvida foi justamente quando os estudantes chineses saíram às ruas por mais liberdade, em 1989.

Para a maioria do povo chinês, entretanto, o medo ancestral do caos e da desintegração do país aparentemente foi mais forte que a indignação pela morte daqueles jovens. Nos últimos 2 mil anos, afinal, o massacre da praça da Paz Celestial foi apenas mais um teste para um monolítico e milenar império que, às vezes, parece não ter fim.[


Saiba mais

China – Uma Nova História, John King Fairbank e Merle Goldman, L&PM, 2007

As Viagens de Marco Polo, adaptado por Carlos Heitor Cony e Lenira Alcure, Ediouro, 2006

Ascensão e Queda das Grandes Potências, Paul Kennedy, Campus, 1989