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Matérias / Cinema

Revolução no cinema: Orson Welles

Há 80 anos, numa transmissão de rádio, era revelado ao mundo aquele seria considerado o autor do maior filme de todos os tempos. Entenda por quê

Sergio Amaral Silva Publicado em 30/10/2018, às 13h41 - Atualizado às 15h04

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Revolução no cinema: Cidadão Kane, de Orson Welles - Arquivo AH
Revolução no cinema: Cidadão Kane, de Orson Welles - Arquivo AH

Passados 33 anos da morte do diretor Orson Welles e comemorando 77 anos, Cidadão Kane continua frequentando prestigiosas listas, a exemplo da preparada pela revista inglesa Sight & Sound, como o melhor filme da História. Ninguém duvida da genialidade do diretor, que chegou a Hollywood com 25 anos sem nunca ter feito cinema, mas cercado de expectativas porque já era um nome famoso no rádio. Ainda persistem sérias dúvidas, porém, sobre sua real colaboração no roteiro do filme, pelo qual dividiu o Oscar de 1942 com Herman J. Mankiewicz - e do qual queria os créditos exclusivos.

Importantes pesquisadores, como Robert Carringer, professor de cinema e especialista na obra de Welles, e Pauline Kael, uma das críticas de cinema mais influentes dos Estados Unidos, além do depoimento de pessoas diretamente envolvidas na produção, sugerem que Mankiewicz teria trabalhado sozinho na elaboração da trama, sendo autor inclusive da ideia central do enredo. A história, cujo roteiro teve sete esboços, gira em torno da vida de Charles Foster Kane, um magnata da imprensa americana - inspirado em William Randolph Hearst, um verdadeiro barão das comunicações e amigo de Mankiewicz (pelo menos até o primeiro saber do projeto do filme).

Quando foi convidado pelo estúdio RKO no início de 1940 para integrar a equipe de Welles, Mankiewicz já era um roteirista veterano, com 15 anos de experiência em cinema e rádio. A ideia de retratar Hearst, proprietário de dezenas de jornais e revistas, não era propriamente nova: já fora usada em 1939 por Aldous Huxley no romance Também o Cisne Morre. A originalidade estava em criticá-lo dentro de Hollywood, onde era poderoso e temido.

Mesmo sendo novato na Meca do cinema, Welles teve carta branca da RKO para fazer o filme. Além de trabalhar como ator e dirigir seu próprio grupo teatral, o Mercury, ele se tornara uma celebridade do rádio em 1938, quando narrou, como se fosse real, uma invasão alienígena. Ouvintes entraram em pânico e houve tumulto, mas era apenas uma adaptação de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells.

Um dos grandes méritos de Orson Welles em Hollywood foi reunir uma equipe de profissionais tarimbados e competentes para sua estreia como diretor. Além de um ótimo roteirista, ele contava ainda, na direção de fotografia, com Gregg Toland, considerado na indústria cinematográfica o mais hábil operador de câmera do momento - tinha ganho o Oscar por O Morro dos Ventos Uivantes, em 1940, ano em que também concorreu com Intermezzo. Perry Ferguson, o diretor de arte, com cinco anos de experiência, era, na época, a grande revelação do departamento de arte da RKO.

Trabalho alheio

Outros nomes foram decisivos para o resultado final do filme. Por exemplo, o responsável pela montagem, o jovem Robert Wise, e o maestro Bernard Herrmann, que assinava a criativa trilha sonora e ganhou o Oscar de 1942 por O Homem que Vendeu Sua Alma. Ele ficaria célebre entre 1955 e 1964 como compositor das trilhas de todos os longas de Alfred Hitchcock.

Cartaz de Cidadão KaneWikimedia Commons

Em Cidadão Kane, talvez para compensar sua tentação de se apropriar do trabalho alheio (supostamente o do roteirista), Orson Welles acabou valorizando o papel do diretor de fotografia, colocando o nome de Toland imediatamente após o seu no letreiro do filme. “É quase hors-concours, sabe-se que é uma obra seminal, todo o cinema moderno de alguma forma desemboca em Kane”, diz o crítico Rubens Ewald Filho na introdução do livro Cidadão Kane: O Making Of, de Robert L. Carringer. Segundo ele, ninguém como Welles teve “tanta autonomia dentro do sistema de produção dos estúdios. Outros depois o imitaram e chegaram a levar estúdios à bancarrota. No caso de Welles, o egocentrismo se unia à genialidade“. O próprio Welles reconhecia que teve condições excepcionais de trabalho. Certa vez, disse que se tivesse conseguido outro contrato como aquele teria feito um filme ainda melhor. “Mas nunca me deram uma segunda chance”, lamentou.

Mas o que torna a obra tão especial? Se hoje o filme já parece moderno, imagine há 70 anos. Kane é repleto de inovações técnicas, entre as quais os enquadramentos e a rica cenografia, que criavam imagens expressionistas pelo uso inventivo da edição e do som. Além disso, a própria narrativa era inovadora: cada um dos personagens conta sua versão da história, que é cheia de cenas de flashback. Muitas eram mostradas de modo simultâneo, induzindo o espectador a escolher para onde olhar, um tipo de interatividade incomum nos anos 1940. “O filme revolucionou o cinema como um todo. É o primeiro, por exemplo, que rompe a narrativa linear, com começo, meio e fim”, diz a cineasta e professora Suzana Amaral. “Na fotografia, o uso de uma nova lente criou o deep focus, que garantia a gravação ‘em profundidade’, no primeiro plano, no meio e a certa distância, o que teve impacto na própria atuação dos atores.”

Cidadão Kane foi indicado em nove categorias no Oscar de 1942: filme, diretor, roteiro original, ator, direção de arte em preto-e-branco, fotografia em preto-e-branco, montagem, trilha sonora e som. Mas enfrentou a antipatia de críticos da Academia americana e só ganhou o prêmio de roteiro, atribuído a Mankiewicz e Welles. (Em 2003, a estatueta do último teria sido posta à venda por sua filha Beatrice na casa de leilões Christie’s e acabou sendo recomprada pela Academia por 1 simbólico dólar.) O maior vencedor daquele ano foi Como Era Verde o Meu Vale, de John Ford. Kane teve de se contentar com o prêmio de melhor filme de 1941 da New York Film Critics Circle.

Enfim, um clássico

A inegável qualidade da obra demorou anos para ser reconhecida. O prestígio cresceu a partir do início dos anos 1950, com as análises de críticos franceses. Segundo o diretor François Truffaut, foi a película que “provavelmente iniciou o maior número de cineastas na carreira”. Nos papéis principais de Cidadão Kane, além do protagonista (o próprio Welles), estavam atores oriundos do Mercury Theatre, desconhecidos do grande público e que, na maioria, conservariam essa condição até o fim da carreira. Uma exceção foi a atriz Agnes Moorehead, que, mais de 20 anos e cerca de 100 filmes depois de viver a mãe de Kane, ficaria famosa como a bruxa Endora, de novo mãe da personagem-título na série de TV A Feiticeira.

Orson Welles em foto publicitária para o filme Wikimedia Commons

Embora Welles fizesse questão de desmentir publicamente, as semelhanças de Kane com detalhes da biografia de Hearst são flagrantes. Só que o magnata não gostou nada de ser exibido como um velho senil no fim da vida nem das referências à sua desmedida ambição ou ao relacionamento com a amante. Ele usou seu prestígio para boicotar a exibição e jogar os estúdios contra Welles. Não sem antes tentar comprar os direitos sobre o filme. Pressionado por Hearst, Louis B. Mayer, da Metro-Goldwin-Mayer, chegou a oferecer cerca de 805 mil dólares (hoje, mais de 20,6 milhões de reais) ao RKO para cobrir os custos de produção e engavetar a obra. O estúdio recusou, mas Kane foi prejudicado em seu resultado nas bilheterias pelo atraso na liberação, bem como por sua distribuição desigual, frutos da campanha do magnata. O filme foi atacado ou ignorado por boa parte da mídia (controlada por ele), mas nada ofuscou seu papel transformador.

Quanto a Welles, embora ainda exibisse traços de sua genialidade, nunca chegou a produzir outra obra tão revolucionária. A história da decadência de Kane, da fama ao isolamento, serviu como uma espécie de amarga profecia. No fim da vida, em 1985, o cineasta não tinha dinheiro para filmar e ninguém se dispunha a financiá-lo. Trabalhou como ator em produções de segunda linha para se sustentar. Os papéis sumiam à medida que sua forma física piorava, até que, muito obeso, restaram a ele os comerciais de TV e as narrações. Sua reputação, no entanto, não diminui. Nem diante da polêmica sobre a autoria do roteiro de Cidadão Kane.

Quem foi Hearst?

A história do magnata das telecomunicações americanas

William Randolph Hearst nasceu em 1863, em São Francisco, filho de um rico empresário do ramo da mineração. Assumiu em 1887 a direção do diário San Francisco Examiner, comprado por seu pai em 1880, e fez sua tiragem subir usando recursos visuais como fotografias e grandes títulos. Em 1895, comprou o sensacionalista New York Morning, que serviu de instrumento para suas ambições políticas. Em 1909, depois de três derrotas em campanhas para prefeito da cidade de Nova York e governador do estado, resolveu dedicar-se exclusivamente aos negócios, que dirigia de seu castelo em Beverly Hills, construído ao longo de 15 anos. Também escreveu roteiros e produziu espetáculos para sua amante, a atriz Marion Davis. No auge, o império de Hearst, em meados da década de 1930, contava com 28 jornais e 18 revistas, entre elas a Cosmopolitan e a American Weekly, cadeias de rádio e uma produtora de cinema. Passou seus últimos anos praticamente recluso e morreu em agosto de 1951.