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Matérias / Ucrânia

Como o passado ajuda a entender a origem da guerra na Ucrânia

Para entender o conflito no país e a nova ordem mundial que se inicia, é preciso olhar longe no passado

Ricardo Lobato* Publicado em 09/04/2022, às 06h00

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Protestos ocorridos na Ucrânia em 2014 - Getty Images
Protestos ocorridos na Ucrânia em 2014 - Getty Images

As guerras são um grande marco para o estudo da História. Nenhum outro fenômeno se repetiu tanto (e continua a se repetir) ao longo do percurso da humanidade quanto a luta entre os seres humanos.

Totais, nacionais, civis, são muitas as formas e tamanhos que elas assumem, e, apesar de
as motivações serem as mais diversas, há um elemento que todas têm em comum: alteram para sempre a vida de quem as viveu.

Na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, algo que parecia impensável aconteceu: a guerra voltou ao coração da Europa. Não uma guerra civil generalizada, como foram os combates dos anos 1990 nos territórios da antiga Ioguslávia, mas um conflito entre dois Estados Nacionais.

Desde a rendição incondicional da Alemanha em maio de 1945, culminando com o fim da Segunda Guerra Mundial em território europeu, era inimaginável que o continente voltasse a ver uma guerra. Fato é que, depois de meses de especulações, acusações e esforços diplomáticos que se mostraram infrutíferos, a guerra voltou.

Registro de corpos em Bucha após a invasão russa /Crédito: Getty Images

Os oponentes são duas nações com uma história que se entrelaça. De um lado, a Rússia, país de 144 milhões de habitantes, a maior nação do mundo, herdeira direta da União Soviética, dona do maior arsenal nuclear do planeta e potência que busca afirmar seu assento no novo “Concerto das Nações”.

Do outro, a Ucrânia, país que até o início do conflito possuía pouco mais de 44 milhões de habitantes, segunda maior nação da Europa – ficando atrás apenas da própria Rússia – herdeira menor da União Soviética, sem armas nucleares (voluntariamente abriu mão das que herdara da URSS), e que buscava definir um novo caminho para si, olhando ora para oeste, para a União Europeia e para a OTAN, ora para leste, para a Rússia e para a China.

Mas qual a origem desta guerra? O que levou a Rússia a deflagrar uma “operação militar especial” (nome pelo qual se referem ao conflito)? Para entender o cerne do que oficialmente é chamado de “Guerra Russo-Ucraniana” é preciso olhar para a História.

Não estamos falando apenas da (re)anexação da Crimeia em 2014 ou do fim da União Soviética em 1991. Para compreender o que separa e o que une russos e ucranianos, a origem da crise atual, e seus possíveis desdobramentos, faremos uma viagem ao passado, a começar com o príncipe Rurik.

Dos varegues aos romanos

No século 9 a Europa era assolada pelos vikings. Ao contrário da crença popular, o que chamamos de vikings não era um povo só. Enquanto as tribos do que hoje constituem Noruega e Dinamarca se voltaram para oeste, colonizando a Bretanha e se aventurando pela Europa Ocidental e Central, os varegues (oriundos da Varângia, uma parte da atual Suécia) se voltaram para leste.

Mais que apenas guerreiros, eram também comerciantes, e buscavam o intercâmbio de âmbar e mel em troca das especiarias e tecidos do Oriente. Para conseguir tais produtos,
precisavam chegar até Constantinopla, capital do Império Bizantino e a porta de entrada das mercadorias da Rota da Seda na Europa.

Além de guerreiros e comerciantes, eram também excelentes construtores navais. Como transporte até a Cidade dos Imperadores, usavam seus longos barcos a remo. Saindo do Mar Báltico, penetraram no Golfo da Finlândia e depois nos rios Neva e Lovat. Por terra, carregaram suas embarcações até a foz do Rio Dnieper e depois no Desna e no Oka, até chegarem ao Mar Negro e, finalmente, em Bizâncio.

No caminho até Constantinopla, os varegues foram estabelecendo relações com os povos eslávicos locais. Estes, por conta da então incipiente organização política – em comparação com os reinos da Europa Ocidental e do Oriente –, aceitaram o domínio e a proteção dos varegues, a quem também chamavam de povos rus, ou rusos (remadores), por conta de seus barcos a remo.

À medida que o comércio com os bizantinos foi crescendo, vários assentamentos rus foram sendo fundados nos territórios que hoje compreendem as atuais Rússia, Belarus, Polônia, Lituânia e Ucrânia.

Tamanho era o intercâmbio que, por volta do ano 862, um príncipe varegue de nome Rurik fundou Novgorod (Cidade Nova, em tradução literal), a capital do que viria a ser seu império, o Estado Rus, ou simplesmente, Rússia. Rurik é o primeiro soberano de um Estado russo e progenitor dos monarcas que mais tarde viriam a ser chamados de czar, ou “césar”.

A importância da unidade política que acabara de criar era tanta, que todos os monarcas russos, até 1568, eram seus descendentes. Com sua morte, em 879, o poder passou para
seu cunhado, Oleg, que, pensando na expansão dos domínios rus, percebeu que uma pequena aldeia entre os lados do Dnieper, chamada Kyiv, era mais estratégica para o Mar Negro (e para Constantinopla) do que Novgorod.

Após sua conquista, em 882, a pequena cidade cresceu rapidamente, tornando-se a nova capital do reino: Rus de Kiev, ou Rússia de Kiev – um grande império eslavo-nórdico que já incluía boa parte da atual Rússia europeia, da Ucrânia e de Belarus e que, agora, se voltava para o sul, para a Cidade dos Imperadores.

A convivência entre varegues e bizantinos era peculiar. Apesar de ter o comércio como motivador, o choque de impérios era, por vezes, pacífico, por vezes, agressivo. Com a nova capital voltada para Constantinopla, os russos tentaram mais de uma vez conquistar a cidade. No entanto, apesar de algumas vitórias militares, os romanos resistiram.

O intercâmbio cultural entre os povos também viria a ter um profundo impacto nos países que viriam a ser a Rússia e a Ucrânia modernas. Além da cristianização do Rus de Kiev, empreendida após a conversão do príncipe Vladimir I em 988, o contato (ainda nos primórdios do Império Rus) com os missionários cristãos bizantinos, São Cirilo e São Metódio, daria origem ao alfabeto cirílico, usado até hoje nas nações eslavas.

O Estado Kievano floresceu entre os séculos 9 e 13. Apesar de organizado e de ser comparável em esplendor aos reinos europeus, desde o início, o Rus de Kiev tinha um grande problema: a sucessão.

Igor, filho de Rurik, que ainda era uma criança quando seu pai morreu, só chegaria ao poder com a morte de Oleg – depois sendo ele mesmo assassinado. Na obra Le Malheur Russe – essai sur la meurtre politique (A infelicidade russa – um ensaio sobre o assassinato político, em tradução livre), a historiadora francesa Hélène Carrère d’Encausse analisa a ocisão política como uma forma de ascensão ao poder na Rússia, algo que remonta ao tempo em que Kiev se situava no centro do mundo russo.

Desde então, os problemas sucessórios foram dando origem a várias linhagens e enfraquecendo a unidade central do Rus. Até que uma nova ameaça surgiu, vinda do leste, trazendo fogo e fúria: os cavaleiros mongóis. Não houve nada que pudesse salvar o império.

Entre mongóis e césares

Vindos das estepes asiáticas, os mongóis eram um povo nômade que, graças ao gênio de Temujin (mais conhecido como Gengis Khan) – que aliara as técnicas de montar dos cavaleiros das planícies da Ásia à estratégia militar –, conquistaram tudo em seu caminho.

Espalhando o terror por onde passavam, os mongóis construíram um império que ia de Pequim até as portas de Viena, dominando a Ásia Central e boa parte do Oriente Médio.
Em 1240, saquearam Kiev e prosseguiram rumo à Europa Central. A expansão parou no ano seguinte, não por terem sido derrotados, mas porque Ogdai Khan (filho de Gengis) morreu, dando origem a uma disputa interna pelo poder.

Ainda que a expansão tivesse cessado, a dominação dos mongóis sobre a Rússia só se encerrou de fato em 1480, depois da Batalha do Rio Ugra, quando foram derrotados pelas tropas de Ivan III, “O Grande”.

Os mais de 200 anos de dominação mongol (chamados pelos russos de tártaros) mudaram de maneira drástica a história do país e fez com que alguns elementos da identidade nacional começassem a ser formados.

A já enfraquecida autoridade de Kiev migrou para Moscou – embora tenha sido saqueada e queimada pelos mongóis em 1278, ela ficava na periferia de seu império e não foi ocupada.

Os soberanos da cidade, da linhagem direta de Rurik, começaram pouco a pouco a fazer frente ao adversário, tornando-se modelo para as demais cidades eslavas. Devido ao crescimento de sua influência, e por terem expulsado os mongóis, o Principado de Moscou se converteu na nova capital russa, passando o nascente império a ser chamado de “Grande Rússia”.

Os moscovitas, por sua vez, passaram a ser denominados de “russos étnicos” – a divisão não era propriamente racial, visto que são todos povos eslavos, mas uma divisão política, simbolizando que os descendentes daquela cidade carregavam os valores da unidade nacional que fez frente ao invasor das terras rus.

É aqui que começa de forma mais acentuada a distinção entre russos e ucranianos. Enquanto lutavam para se livrar dos tártaros, mudanças significativas, que teriam reflexo no que chamamos hoje de Rússia e Ucrânia, ocorreram no resto do Velho Mundo.

No século 14, o Renascimento havia começado na Itália, espalhando-se pela Europa Ocidental e Central. Mas, devido ao domínio mongol e à falta de contato com o resto do continente europeu, “a redescoberta do homem” não chegou ao leste, fazendo com que o país ficasse preso em costumes que se assemelhavam aos da Europa feudal até pelo menos o século 18, quando o czar Pedro I, conhecido como “O Grande”, modernizou a Rússia.

Já em 1453, Constantinopla caiu perante os canhões do sultão Mehmet II, dando fim à Segunda Roma. Dados os laços entre russos e bizantinos, Moscou absorveu características dos romanos, reforçando a autoridade da cidade como capital de um império e bastião do mundo eslavo.

Com a morte de Ivan III, entrou em cena seu filho, Ivan IV, mais conhecido como “O Terrível”. Em seu livro Prisioneiros da Geografia – Dez Mapas Que Explicam Tudo o Que Você Precisa Saber Sobre Política Global, o jornalista e escritor britânico Tim Marshall afirma que Ivan era “um homem para corroborar a teoria de que os indivíduos podem mudar a história. Sem sua personalidade, que misturava completa crueldade e antevisão, a história russa teria sido muito diferente”.

Ivan IV /Crédito: Domínio Público

O monarca foi o primeiro a adotar o título de “czar”, ou simplesmente “césar”. A nova denominação não era apenas uma forma de simbolizar o poderio imperial que estava construindo, mas de afirmar a autoridade russa: como um “césar”, mostrava ser o herdeiro de Roma.

Já para os povos do leste, a figura de um czar era também comparável a de um “khan”, como Gengis, ou seja, “o rei dos reis” e, como detentor do título, Ivan buscava mostrar que a Rússia seria de fato um grande império.

Czares protetores

Apesar da crueldade, não se pode, porém, desconsiderar o conhecimento do homem. Ivan entendia que havia grande diferença entre “ser um império” e “pretender ser”. As fronteiras do Czarado da Rússia eram frágeis, sem barreiras naturais entre seus inimigos, e, por isso, não faltavam ameaças aos russos: a oeste, da Comunidade das Duas Nações (composta por uma liga entre Polônia e Lituânia), a leste, da Horda Dourada (a continuação do antigo Império Mongol), a norte, do nascente Império Sueco, e a sul, dos turco-otomanos e os persas.

Conforme mostra Marshall, a solução foi conquistar para não ser conquistado. “A expansão russa avançou a leste para os Urais, ao sul para o Mar Cáspio e ao norte em direção ao Círculo Ártico.

Ganhou acesso ao Mar Cáspio e mais tarde ao Mar Negro, tirando proveito das montanhas do Cáucaso como barreira parcial entre russos e mongóis. Uma base militar foi construída na Chechênia para deter quaisquer potenciais atacantes.”

Enquanto a Rússia expandia suas fronteiras, o que hoje é a Ucrânia lutava com seus próprios contratempos. Desde a dominação mongol e o declínio de Kiev, a língua falada no país passou a se diferenciar do idioma falado na Rússia e um sentimento de identidade própria começava (ainda que de forma incipiente) a se formar, diferenciando- os de seus parentes moscovitas.

Entretanto, devido a problemas imediatos, uma cultura própria não teve tempo de se afirmar. Em um tempo de conquistas e reconquistas, o território da Ucrânia encontrava-se dividido desde o século 14 entre os remanescentes dos mongóis, o Ducado da Lituânia e o Reino da Polônia.

Em 1569, com a união que deu origem à Liga Polaco-Lituana, a situação se complicou. Além de exigirem a submissão total dos ucranianos, a Liga contava com forte influência do catolicismo romano, trazendo os “valores latinos” em seu cerne em contraposição com o cristianismo ortodoxo dos ucranianos e sua tradição bizantina oriental.

Tamanha era a diferença cultural que, para a Liga, a palavra para designar russos, ucranianos e também bielorrussos – que já não eram mais um povo só há pelo menos 250 anos – ainda era a mesma, rutenos, a forma em latim para nomear os povos rus, os antigos remadores varegues.

Após anos de dominação e, aproveitando as disputas internas entre poloneses e lituanos – além dos ecos da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) na Europa Oriental – os cossacos ucranianos se revoltaram contra os dominadores e proclamaram sua liberdade.

Constituíram um Hetmanato no que hoje é boa parte da Ucrânia, mas também em partes dos territórios dos modernos Belarus, Moldávia (região da Transnístria) e sudoeste da Rússia.

Este Estado, que começava a desenhar o que viria a ser a Ucrânia, era centrado na autoridade de um hetman (segundo comandante militar mais importante depois de um monarca) – daí o nome Hetmanato.

Por melhores guerreiros que fossem, e por mais bem-sucedidos que tivessem sido, sabiam que era apenas uma questão de tempo até que poloneses e lituanos voltassem a dominá-los. Além disso, havia a ameaça dos otomanos, que, desde que tomaram Constantinopla em 1453 (rebatizando-a de Istambul), se espalhavam pela Europa conquistando tudo em seu caminho.

A solução encontrada pelos cossacos ucranianos estava ao norte: em Moscou. Dada a origem comum e a superioridade militar daquele que já era um império considerável, a proteção dos czares russos era uma saída inteligente para os ucranianos. Em 1654, o Hetmanato assinou com o czarado de Moscou o Tratado de Pereslávia. A Ucrânia recebia sua autonomia, mas ficava sob “o cetro dos czares”.

Em troca, se submetiam à autoridade de Moscou e reconheciam o monarca russo como “o governante de toda a Rus”. O acordo garantiu que a Polônia e a Lituânia retirariam suas forças da região e que os otomanos não seriam mais uma ameaça, entretanto, deu início à “russificação” no país, cujas consequências ressoam até os dias de hoje.

De Pedro I a Napoleão

Em 1682, ascendeu ao poder na Rússia Pedro I, que passaria para a história como “O Grande”. Pedro sabia que seu país era poderoso, mas que ainda contava com problemas estruturais. A defasagem tecnológica em relação ao resto da Europa era nítida e, apesar de numeroso, seu Exército era composto majoritariamente de conscritos com baixa experiência de combate.

Para piorar, a Marinha era praticamente inexistente e incapaz de fazer frente à britânica, à holandesa e principalmente à sueca – a então maior ameaça para a Rússia. O czar empreendeu uma série de mudanças políticas, econômicas, sociais e militares, destinadas a equiparar a Rússia às demais potências europeias.

As mudanças foram desde obrigar os homens a se barbearem, de modo a fazê-los parecer mais “civilizados” – indo contra a ortodoxia russa – até construir uma grande Marinha de Guerra, inspirada na Marinha Real Britânica.

Seguindo os preceitos de seu ancestral Ivan, “O Terrível”, de que é melhor conquistar para não ser conquistado, Pedro atacou a Suécia, dando início à Grande Guerra do Norte (1700-1721). Os suecos já vinham realizando ataques contra a Rússia desde o início de 1700, mas não esperavam uma reação a ponto de ameaçar a integridade territorial.

Por fim, o conflito desandou para um combate geral no Mar Báltico que se arrastou por 21 longos anos, ao final, a Rússia surgiu como potência e Pedro converteu o czarado em Império Russo.

As consequências da vitória também foram sentidas no Hetmanato. Em 1709, em busca de mais liberdade em relação à Moscou, o hetman apoiou Carlos XII contra Pedro I. As forças suecas foram derrotadas na Batalha de Poltava (1709) e depois na guerra, e os ucranianos se encontraram do lado derrotado.

Mesmo depois da morte de Pedro, os czares e czarinas que o sucederam foram, pouco a pouco, submetendo o que restava da autonomia ucraniana à sua autoridade. A desconfiança de que eles poderiam novamente se alinhar a uma potência estrangeira contra a Rússia culminou com a anexação total do país em 1793.

Ao longo dos anos que se seguiram, o império proibiu o uso e o estudo da língua ucraniana e os habitantes foram pressionados a se converter à fé ortodoxa russa. E, como a História não é estática, enquanto a grande nação estendia seus domínios no leste e a Ucrânia se tornava cada vez mais dependente de São Petersburgo – a nova capital fundada por Pedro I em 1703 –, o resto do mundo estava em ebulição.

As ideias de progresso científico e de expansão dos direitos do homem, que os franceses chamaram de Iluminismo, haviam dado vazão a uma série de revoltas liberais, algumas se convertendo em revoluções.

Tendo por base os princípios iluministas, os norte-americanos se tornaram independentes da Inglaterra, em 1776, e inspiraram os próprios franceses, que viriam a fazer uma revolução em 1789.

No esteio do processo revolucionário, buscando ao mesmo tempo restaurar a ordem da França e avançar com os ideias de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” da Revolução, chegou ao poder Napoleão Bonaparte.

Depois de dar ordem ao caos em que a França se transformara desde que o rei fora deposto e decapitado, Napoleão empreendeu uma série de conquistas e, em 1805, foi proclamado Imperador.

Napoleão Bonaparte /Crédito: Domínio Público

Uma a uma as monarquias europeias foram caindo perante seu Grand Armée (Grande Exército). Até que, em 1812, depois de ter conquistado toda a Europa Continental, o Imperador se voltou para o Oriente, para as terras do leste, e definiu um novo objetivo: dominar o Império Russo.

Os russos combateram ao lado dos austríacos contra os franceses em mais de um embate. Enquanto a Áustria caía, a Rússia permanecia de pé. Sendo um grande estrategista, Napoleão sabia que aquele que dá o primeiro passo no campo de batalha tende a ter vantagem.

O Imperador reuniu um grande Exército (os números eram colossais) e partiu de Paris para tomar Moscou – que, embora não fosse mais a capital russa há mais de um século, sua importância histórica não podia ser negligenciada, e, no caminho para a Rússia estava a Ucrânia.

O sentimento ucraniano era misto em relação ao imperador francês: enquanto uma semente de nacionalismo gerava a ideia de que deviam lutar com os franceses contra o czar Alexander I; uma parte significativa da população, inclusive boa parte dos cossacos, sabia que corriam o risco de substituir um dominador por outro.

Além disso, como a história já mostrava, ao se aliarem a uma potência estrangeira contra a Rússia, e os russos saíssem vitoriosos, as consequências para o país não seriam nada boas.

Houve aqueles que lutassem por Napoleão, mas também pesou na decisão dos ucranianos o fato de o imperador ter prometido a seus aliados austríacos e poloneses que, uma vez que a Ucrânia fosse dominada e a Rússia conquistada, o território ucraniano seria repartido entre eles – e também com os turco-otomanos, que prometeram a Napoleão não interferirem na campanha.

A Rússia se mostrou um oponente à altura de Bonaparte. Mesmo que tenha tomado Moscou, a cidade já se encontrava vazia. Além do resistente general Mikhail Kutuzov, da tenacidade do povo russo, da tática da terra arrasada, que não permite que o inimigo se aproprie de seus víveres e de sua infraestrutura, os “generais Inverno e Lama” – o frio escaldante e a lama que se forma quando a neve começa a derreter (Rasputitsa, em russo) – cobraram seu preço.

A estratégia que fora desenvolvida após a dominação mongol, de que a Rússia precisava de grandes espaços entre ela e as demais potências, havia funcionado: o Grand Armée não conseguiu se manter na vastidão do país.

Pelo contrário, em embates que se estenderam até 1814, o Exército Russo, auxiliado por antigos impérios que haviam se curvado sob Napoleão, fez com que as tropas francesas retrocedessem até Paris. Os russos chegaram a marchar sob a capital francesa (entre eles estava um contingente ucraniano), mas o fim de Napoleão só viria no ano seguinte.

Entre impérios e revoluções

Com a coalizão anglo-prussiana na Batalha de Waterloo (1815), deu-se o fim do domínio francês na Europa – o que se seguiu foi uma tentativa de restauração do Antigo Regime, voltando às monarquias absolutistas que dominavam o continente pré-Revolução. O novo equilíbrio de poder, no entanto, foi estabelecido no Congresso de Viena (1814-1815), em que a Rússia passou a ter um papel central no chamado “Concerto Europeu”.

O sistema foi efetivo por certo tempo, mas não evitou que as revoluções sociais e tecnológicas – principalmente a Revolução Industrial – mudassem a sociedade europeia.

Face a todos esses movimentos e inspirados por tantas ideias novas, os ucranianos passaram a rever antigos conceitos de povo e identidade, agora, permeados pela ideia de Estado-Nação originada com a Revolução Francesa.

A Rússia também experimentou uma grande mudança. Em 1861, depois de séculos, acabou a servidão no país. A prática, que havia terminado no resto da Europa com o fim da Idade Média – muito por conta da ascensão do capitalismo mercantil –, só foi proibida com o czar Alexander II, conhecido como “O Reformador/ O Libertador”.

Ainda que no século 19 tenha sido mantida a relação de Rússia como potência e Ucrânia como parte do Império, essas mudanças são essenciais para entender o percurso das duas nações e o que viria a ocorrer nos anos seguintes ao redor do mundo, com o surgimento de um novo conceito revolucionário, cuja teoria se contrapunha ao liberalismo capitalista e às noções patriarcais: o socialismo.


*Confira a última parte da reportagem aqui: Como a herança da União Soviética se relaciona com a guerra na Ucrânia. 


Ricardo Lobatoé Sociólogo e Mestre em economia pela UNB, Oficial da Reserva do Exército brasileiro e Consultor-chefe de Política e estratégia da Equibrium — Consultoria, Assessoria e Pesquisa.