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Matérias / Brasil

Como o surto da borracha no Acre quase levou o Brasil à guerra

Até o final do século 19, a região era um canto esquecido da Amazônia que não interessava a ninguém. Mas, com o surto da borracha se transformou num paraíso que, em menos de dez anos, foi palco de uma série de conflitos que quase levaram Brasil e Bolívia à guerra

Fernando Granato Publicado em 31/01/2021, às 09h00 - Atualizado em 29/04/2022, às 08h00

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Resina de extração da árvore - Imagem de Peggy und Marco Lachmann-Anke por Pixabay
Resina de extração da árvore - Imagem de Peggy und Marco Lachmann-Anke por Pixabay

Segunda metade do século 19. O Brasil tornara-se um Império independente de Portugal. O país crescia com a agricultura para exportação, com os imigrantes que vinham para substituir os escravos e caminhava, a passos trôpegos, é verdade, em direção à República.

Mas esse era o retrato do Brasil atlântico, o Brasil com vista para o mar. A 5 mil quilômetros dali, um outro país existia, um país que, de tão esquecido, estava para ser abandonado. Em 1867, dom Pedro II assinou o Tratado de Ayacucho e cedeu o território do atual estado do Acre à Bolívia.

Pintura de Dom pedro II /Crédito: Wikimedia Commons

Um naco de floresta de 150 mil km2 habitados por tribos indígenas e sertanejos que viviam malemal de explorar castanha, madeira e látex. Na virada do século, no entanto, a coisa mudou.

A nascente indústria automobilística americana elevou a demanda por borracha a
índices estratosféricos, fazendo da exploração de látex um negócio muito atrativo. Em 1899, o governo boliviano lembrou-se de seu pedaço de floresta e resolveu abrir um posto alfandegário na vila de Puerto Alonso (a maior da região, onde hoje fica a capital do estado, Rio Branco) – e passou a cobrar taxas de extração e transporte dos seringueiros.

A medida irritou os seringueiros e provocou atritos entre as autoridades e os moradores da floresta. Nesse clima, o jornalista espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias, redator do jornal Província do Pará e funcionário do consulado boliviano em Belém, ficou sabendo que o governo da Bolívia tinha na gaveta um projeto para arrendar o controle da região para uma empresa americana.

De posse dessa informação, Galvez passou a insuflar os proprietários de seringais a se rebelarem. O grau de insatisfação era tamanho que o movimento conseguiu contagiar quase toda a população local.

Apoiados pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior – que forneceu armas, munições e um barco especialmente equipado com um canhão, além de uma guarnição de 20 homens –, os seringueiros capturaram os poucos soldados bolivianos em Puerto Alonso e, em 14 de julho de 1899, proclamaram a República do Acre.

A nova nação formada por apenas uma cidade (Puerto Alonso, que mudou de nome para Porto Acre) tinha Luiz Galvez como presidente. Ele criou uma bandeira e até cunhou moeda própria. Galvez escolheu ministros e fez do seu bando um exército, nomeando coronéis e generais.

Cuidou de rascunhar uma constituição e iniciou negociações diplomáticas para o reconhecimento do Acre como uma república independente.

“Pelo menos um país, a Argentina, interessada em ter um aliado na região, reconheceu formalmente a nova república”, afirmou José Dourado de Souza, coautor do livro Acre: Uma História em Construção e diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFAC.

Para Márcio de Souza, autor de Galvez, o Imperador do Acre, o aventureiro espanhol era uma figura quixotesca, que conduziu uma revolução romântica apoiado por artistas e intelectuais que queriam libertar o Acre.

“É incrível que aquilo tenha acontecido e obtido êxito diante das tropas bolivianas.” Mas o sucesso foi curto: seis meses – o tempo que as tropas brasileiras demoraram para chegar ao Acre, capturar o Quixote da Amazônia e devolver o controle da cidade à Bolívia.

No entanto, o estrago estava feito. A ousadia de Galvez mostrou às autoridades de La Paz que eles precisariam agir se quisessem manter a soberania sobre a região. E eles queriam. E agiram depressa.

Além de enviar reforços militares ao local, o governo boliviano tornou público o projeto de passar o controle do Acre para a Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, uma empresa multinacional que tinha entre seus sócios o rei dos belgas e um parente do presidente dos Estados Unidos.

A entidade recebeu de bandeja o monopólio sobre a produção e a exportação da borracha, além do direito de cobrar impostos e até de fazer as vezes de polícia.

A presença estrangeira na região acendeu fervores nacionalistas. Os brasileiros eram vistos com desconfiança e os atritos com os bolivianos passaram a ser cada vez mais frequentes.

Menos de um ano depois, um novo movimento tentaria repetir o intento de Galvez: foi a chamada “expedição dos poetas”, uma aventura ainda mais romântica, que reuniu intelectuais e estudantes amazonenses, liderados por Orlando Corrêa Lopes.

Partindo de Manaus a bordo do vapor Solimões, eles desejavam ajudar os seringueiros a “emancipar o Acre”. Sem planos e estratégias definidos, os conspiradores fracassaram e acabaram presos pelo governo brasileiro, que insistia em fazer valer o Tratado de Ayacucho.

Revolução 

Mais experiente, o ex-militar José Plácido de Castro havia integrado as forças federais brasileiras que lutaram na revolução de 1893, no Rio Grande do Sul, e chegara à Amazônia por volta do 1900 com planos de desbravar a floresta.

Logo se tornou um grande opositor do plano boliviano de arrendar o Acre aos americanos e passou a organizar os seringueiros para uma nova reação.

Anos mais tarde, numas notas que escreveu a pedido do escritor Euclides da Cunha – que queria conhecer melhor a história desse conflito –, Castro relatou a gestação do movimento: “O contrato com a Bolivian Syndicate era uma completa espoliação contra os acreanos. Passei então a falar com vários proprietários de seringais da possibilidade de resistência”.

As anotações de Plácido de Castro contam a tomada de Xapuri, em 6 de agosto de 1902. O lugarejo escondido na selva estava praticamente deserto, pois naquele dia se comemorava a Independência da Bolívia e a população local havia passado a noite anterior em festa.

As poucas autoridades de plantão estavam alojadas em três casas no vilarejo. Os 33 rebeldes brasileiros, liderados pelo ex-militar, invadiram de surpresa a vila por três lados diferentes. O líder arrombou a casa que servia de delegacia, cadeia e prefeitura e de lá retirou armas e munição.

O sujeito que administrava o local desconfiou que o movimento tinha alguma relação com os festejos na cidade. Castro, ao dar voz de prisão aos bolivianos, disse: “Isso não é festa. É a revolução”.

As tropas bolivianas demoraram mais de um mês para reagir. Com apenas 70 homens e poucas armas, os revolucionários enfrentaram um batalhão com mais de 200 soldados bolivianos, em 18 de setembro. E os homens de Plácido de Castro levaram a pior. “Vinte e dois mortos deixamos no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fugiram. Essa foi nossa estreia”, escreveu.

A derrota apavorou os seringueiros e provocou muitas deserções. Mas Castro não desanimou: mandou circular entre os seringais um comunicado minimizando os efeitos do desastroso combate e prosseguiu a marcha.

Em 5 de outubro, reiniciou os ataques às forças inimigas, próximo à vila de Panorama. “Empenhou-se o combate, sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras inimigas”, anotou.

A batalha durou 11 dias e os rebeldes abriram valas sob a terra e conseguiram chegar do lado dos adversários. Obrigaram o comandante das forças bolivianas, coronel Rojas, a se entregar junto com seus 150 soldados.

“Os outros, em número de 30, haviam morrido.” O movimento ganhou força e adesões e, em 18 de novembro, as tropas de Castro dizimaram mais uma coluna boliviana na vila de Iquiry. O combate durou cinco horas e terminou com um incêndio nas casas dos inimigos. Às 9 horas do dia 15 de janeiro de 1903 os rebeldes chegaram a Porto Acre e à tarde já ocupavam posições a 120 metros das trincheiras inimigas. "Nossas perdas nesse dia subiram a 50, entre mortos e feridos", escreveu.

Apesar das dificuldades, revoltosos adentraram a área inimiga, por rio, a bordo do navio Independência, sob uma saraivada de balas. Depois de dez dias de cerco, Porto Acre rendeu-se.

“No dia 26, por ocasião de uma revista geral passada às nossas tropas, no planalto de Porto Acre, um líder seringueiro, em nome de todos os oficiais combatentes da revolução e dos civis presentes, aclamou-me governador do Acre e comandante-em-chefe das forças”, relatou.

A notícia revoltou a população boliviana, que exigiu uma resposta do governo. O presidente Manuel Pando assumiu pessoalmente o comando do Exército e marchou ao Acre. A um passo da guerra, o Brasil agiu com diplomacia e mandou o ministro das Relações Exteriores, o barão de Rio Branco, falar com os vizinhos ofendidos.

A primeira medida tomada pelo barão foi brecar a revolução dos seringueiros, que ainda estava em curso. Foi enviada ao Acre uma expedição militar que obrigou Castro a abandonar o poder.

Nas suas notas, o líder guerrilheiro falou com mágoa desse momento: “Publiquei uma ordem dissolvendo o Exército acreano, visto o general brasileiro ter invadido o Acre meridional”.

Contida a revolta, a diplomacia brasileira transferiu o conflito da selva para uma mesa de negociações. O local escolhido para selar a paz entre os dois países foi Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Ficou combinado que o Brasil ficaria com o Acre, rico em florestas e reservas de seringais, pelo qual pagaria à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas. O Brasil comprometeu-se, ainda, a entregar áreas da fronteira do Mato Grosso e construir uma estrada de ferro que cortasse a selva e oferecesse à Bolívia uma saída para o oceano Atlântico.

Registro da ferrovia Madeira-Mamoré /Crédito: Divulgação

As negociações, iniciadas em julho de 1903, encerraram- se quatros meses depois, com a assinatura solene do Tratado de Petrópolis.