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Matérias / Brasil

Corta essa! A censura contra as novelas

Até 1988, cenas de sexo, homossexualidade, críticas à Igreja e ao governo eram cortadas

Joseane Pereira Publicado em 24/04/2019, às 09h57

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Rede Globo/Reprodução
Rede Globo/Reprodução

Era a noite de quarta-feira, 27 de agosto de 1975. Em pleno Jornal Nacional, da Rede Globo, o apresentador Cid Moreira informava que a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, que estrearia após o telejornal, não iria mais ao ar. Fora proibida pela Censura. Em menos de dois minutos, ele leu um texto dizendo que a novela era uma "ofensa à moral, à ordem pública e um achincalhe à Igreja". E ponto final: estava cancelada. No lugar dela, às oito da noite (naquele tempo a novela das 8 começava às 8h mesmo), os cerca de 40 milhões de pessoas que se acotovelavam diante de seus televisores começaram a assistir a uma reprise resumida da novela Selva de Pedra. A proibição de Roque Santeiro - que seria regravada e exibida 10 anos depois, em 1985 - é só mais um capítulo, talvez o mais radical, da história da censura às telenovelas brasileiras durante a ditadura militar (1964-1985).

O início dessa verdadeira novela foi o Ato Institucional número 5, imposto em 13 de dezembro de 1968, que deu início ao período conhecido como "anos de chumbo". A partir do AI-5, todas as produções artísticas deviam passar pela avaliação prévia da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão ligado ao Ministério da Justiça. Peças de teatro, filmes, letras de músicas e programação de rádios e TVs só eram liberados após o exame dos censores. No caso dos programas televisivos, a DCDP não determinava só em que horário as produções iriam ao ar e a classificação etária. "Muitas vezes, mutilavam a obra, cortando diálogos ou vetando trechos inteiros", diz Renata Pallottini, professora do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

As questões políticas não eram o único alvo dos censores. "A maioria das novelas caía no que se chamava de ‘defesa da moral e dos bons costumes’. Menções ao divórcio, adultério e homossexualidade eram vetadas", afirma Renata. Outras vezes, os censores simplesmente não gostavam da trama ou do rumo que a história estava tomando - e dá-lhe tesoura! "Não tinha lógica nem critério. Fui censurado por coisas que jamais entendi", diz Lauro César Muniz, autor de novelas como Escalada e Casarão.

Aventuras na História teve acesso a alguns documentos que mostram a censura nas novelas - a papelada está no Arquivo Nacional de Brasília. Leia a seguir algumas das tramas censuradas que você jamais pôde assistir na TV.

Irmãos Coragem (1970)

Tarcísio Meira, Cláudio Cavalcanti, Macedo Neto e Claudio Marzo nas gravações de Irmãos Coragem / Cedoc / TV Globo

Sob a batuta do presidente Médici - que assumira em 1969 afirmando redemocratizar o país - corriam os anos que o jornalista Elio Gaspari chamou de "ditadura escancarada". A repressão aos opositores do regime chegava ao auge, enquanto o governo tentava criar a imagem de um país unido e orgulhoso. Em 1970, cerca de 28 milhões de brasileiros assistiam todas as noites na TV à luta dos garimpeiros João e Jerônimo Coragem (Tarcísio Meira e Cláudio Cavalcanti, respectivamente) contra abusos de poder de latifundiários corruptos (Duda, o terceiro dos irmãos do título, interpretado por Cláudio Marzo, era jogador de futebol).A trama de Janete Clair tinha forte teor político e, por conta das mãos censoras da DCDP, os telespectadores deixaram de ver bastante coisa: de cenas de violência a palavras consideradas impróprias - como "aporrinha", que iria ao ar no capítulo 166, e "arrombado", do capítulo 169. A Censura não gostou do enredo, que, segundo um relatório, tinha "imagens negativas" e "diálogos de baixa cultura". E implicou com a classificação etária da novela: num parecer de novembro de 1970, um censor concluiu que Irmãos Coragem deveria ser, "no mínimo", imprópria para menores de 16 anos.

O Bem Amado (1973)

Augusto Olímpio, Paulo Gracindo e Zika Salaberry nas gravações de 'O Bem Amado' / Cedoc/ TV Globo

Quando, em 1973, a Globo lançou O Bem Amado, o Brasil vivia seu "milagre econômico" - desde o fim dos anos 60, o país crescia cerca de 12% ao ano. Mas a história de Dias Gomes estava longe de celebrar o fato: mostrava um político corrupto, Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), que enganava um sofrido povoado nordestino. Após uma análise dos capítulos 110 a 113, a DCDP descobriu o óbvio: "As situações afloradas, pelo seu duplo sentido, a essa altura dos acontecimentos, podem ser claramente interpretadas como alusivas à conjuntura nacional".

Atrás de "duplos sentidos", os censores não descansaram: cortaram do roteiro uma cena em que o personagem Zeca Diabo (pistoleiro vivido por Lima Duarte) aparecia acometido de bicho do pé. Na lógica dos militares, a falta de saneamento básico não combinava com um país que se desenvolvia rapidamente. O problema de Zeca Diabo acabou sendo substituído por uma gripe.

Desde o começo, os hábitos dos personagens de O Bem Amado desagradaram aos censores. Num documento que analisa os capítulos de 1 a 8, eles afirmam que Odorico não passava de um "velho conquistador" e "cheio de amantes". Telma (Sandra Bréa), sua filha, era "moça libertina" e "adepta do amor livre". A partir daí, a trama foi classificada como "desaconselhável para um público menor de 16 anos" - e passou a ser exibida às 22h.

Roque Santeiro (1985)

Lima Duarte, Regina Duarte e José Wilker na reta final de 'Roque Santeiro' / Cedoc / TV Globo

Na presidência do general Ernesto Geisel, iniciada em 1974, havia no ar a promessa de promover a abertura do regime com uma "distensão lenta, gradual e segura". Isso significaria o fim da censura, a investigação dos casos de tortura e maior participação da sociedade civil na política. Contrariando essas promessas, a linha dura voltou a agir com violência em 1975 (matando, entre outros, o jornalista Vladimir Herzog). Na TV, o que se viu foi o primeiro caso de censura total a uma novela brasileira. Era A Fabulosa Estória de Roque Santeiro e sua Viúva, a que Era Sem Nunca Ter Sido. Os 36 capítulos gravados, que haviam sido liberados pela Censura após muitos cortes, acabaram proibidos no dia da estréia. "Roque Santeiro é uma história de hipocrisia clerical, na qual uma cidade vive de explorar o misticismo das pessoas. Apesar de a proibição parecer moralista, nesse caso, o cunho político pesou mais", afirma Renata Pallottini.

Dez anos mais tarde, uma nova versão de Roque Santeiro foi liberada pela Censura, num momento histórico da telenovela no Brasil - enquanto isso, na política, os militares deixavam o poder. Ainda assim, o texto recebeu severas tesouradas, principalmente em assuntos relacionados aos "bons costumes". A grande vítima foi o cavaleiro João Ligeiro (Maurício Mattar): ainda que discretamente, o personagem demonstrava ser homossexual, algo inaceitável para os censores. "Tive que matar o personagem, o que não estava previsto", diz Aguinaldo Silva, que escreveu boa parte dos capítulos da Roque Santeiro que foi ao ar em 1985.

Vale Tudo (1988)

Lídia Brondi e Gloria Pires nas gravações de 'Vale Tudo' / Cedoc / TV Globo

Você se lembra da cena em que Helena (Renata Sorrah), Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska) conversaram sobre a homossexualidade feminina em Vale Tudo? Com certeza não - ela foi totalmente vetada pela Censura. O motivo? Nela a relação amorosa entre Cecília e Laís era tratada "como uma opção natural de vida que deve ser aceita sem nenhum preconceito" - um absurdo, segundo os censores. Rompantes de moralismo como esse, que mutilaram o capítulo de 11 de julho de 1988, foram os últimos suspiros da Censura no Brasil. Em novembro do mesmo ano, foi promulgada a nova Constituição, que baniu a prática no país.

Para saber mais:

Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, Beatriz Kushnir, Boitempo, 2004