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Matérias / Brasil

Dia D do futebol: Quando torcedores do Corinthians invadiram o Rio de Janeiro e dividiram o Maracanã ao meio

Em 1976, o maior número de pessoas já registrado atravessaria 400 quilômetros em direção ao leste, com o objetivo de tomar para si uma cidade litorânea

Redação Publicado em 06/07/2021, às 20h00

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Acervo Gazeta Press, via Timão Box
Acervo Gazeta Press, via Timão Box

Aqui vão os bastidores do Dia D do futebol brasileiro: a invasão do Corinthians, episódio em que torcedores do time paulista invadiram o Rio de Janeiro e dividiram o Maracanã ao meio, em 1976.

Abaixo, você confere um trecho exclusivo do recém-lançado livro 'O Diário da Invasão', de Ricardo Garrido. A obra faz parte do clube de assinaturas Timão Box, que tem como objetivo entregar mensalmente ao torcedor livros que contem a história do clube e sua relação com a torcida.

Crédito: Divulgação

Se o leitor quiser encontrar uma enorme diferença entre o futebol atual e o da década de 70, basta comparar entrevistas de jogadores. Se, hoje em dia, os jogadores recitam textos tão previsíveis quanto inofensivos, devidamente revisados e aprovados pelos seus estafes e monotonamente apresentados nos pouquíssimos espaços oficialmente reservados para entrevistas (um espacinho na saída de campo com um backdrop no fundo; a famigerada “zona mista” no caminho para o vestiário; e as coletivas de imprensa num pequeno auditório), antigamente, os jogadores simplesmente falavam – e davam opiniões. Provocavam uns aos outros, reclamavam da remuneração ou da falta de oportunidades, opinavam sobre os adversários, e não ficavam ofendidos com aquilo. Soavam como adultos conversando, em outras palavras.

Foi assim que reagiu o carioca Moisés na quarta-feira, dia 1o de dezembro, ao fim do treino do Corinthians no Parque São Jorge, às declarações do presidente do Fluminense sobre como o atacante argentino Doval deitaria e rolaria em cima da defesa do Corinthians: “o Doutor Horta está promovendo o espetáculo, pois, embora o Doval esteja realmente jogando bem, nós também estamos, já que não temos sofrido gols, especialmente pelo alto”. Conhecido por uma certa violência nos seus tempos no Vasco, Moisés mostrava, aos 29 anos, um futebol mais inteligente e consciência do seu papel no time: “aqui no Corinthians, todos os zagueiros sabem ser viris quando necessário; se eu também entrar duro, haverá excesso de faltas contra o nosso goleiro em todos os jogos. Assim, aqui eu não preciso jogar duro; ao contrário, tenho evitado fazer faltas”. Sobre o crescente oba-oba em torno da semifinal, adotava uma distância quase cínica: “torcedor é assim mesmo: quando o time ganha, somos os maiores; quando perde, jogam bagaços de laranja na gente. Mas isso tudo não pode nos influenciar. Para nós, a vitória representa mais dinheiro; a derrota, o esquecimento”. E arrematava: “nosso time não pode se deixar impressionar pela responsabilidade. Quando falo em responsabilidade, falo em medo. E eu acho que o time que tem medo de perder, não tem direito de ganhar. Os grandes times não têm medo de perder”.

O atacante Vaguinho, que, aos 26 anos, administrava uma agência de turismo, refletiu sobre o jogo para o repórter Fausto Silva, da rádio Jovem Pan: “torcedor é torcedor e jogador é jogador. Não podemos deixar essa confiança deles passar pra gente e dar a impressão de que o resultado está feito. Eu vou jogar do jeito que sei. O Rodrigues (Neto) é um dos melhores apoiadores do país, todo mundo sabe, mas, na marcação, tem suas falhas. Eu nunca me preocupei com marcador, se é João, se é Pedro, se é o Beckenbauer, que é o melhor do mundo. Eu vou dar trabalho”.

Crédito: Acervo Gazeta Press, via Timão Box

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o que restava do Fluminense (sem os quatro jogadores da Seleção e Paulo Cézar) treinava em período integral. E a guerra de declarações ganhava mais cores com a medição de forças entre o atacante argentino Doval e Moisés (uma rivalidade que datava de quando o primeiro defendia o Flamengo, e o segundo, o Vasco): “ele declarou que é o xerife da área e que ninguém escapará de uma sarrafada. O Moisés me conhece muito bem e sabe que sei dar o troco. Além disso, o Rivellino está ali para transformar faltas em gols – e isso será fácil, porque o goleiro do Corinthians não me parece muito regular”, polemizou Doval, que era o vice-artilheiro do campeonato, empatado com Zico, apenas um gol atrás de Dario.

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A política dos cartolas estava mais agitada que os treinos dos times. Primeiro, às 14 horas, o presidente da CBD, Augusto Nunes, reuniu-se com os presidentes dos quatro semifinalistas para definir os árbitros dos dois jogos. O presidente do Corinthians, Vicente Matheus, fora ao Rio especificamente para garantir que o árbitro pernambucano Sebastião Ruffino, que havia apitado a semifinal de 1972 entre Botafogo e Corinthians, não fosse considerado para a partida. Definiu-se que o árbitro da partida seria o gaúcho Saul Mendes, da Federação Baiana.

Observando uma crise entre a CBD e os times cariocas – que ameaçavam rompimento com a entidade e criação de uma liga independente –, Vicente Matheus enxergava ali uma oportunidade de aliança com o status quo e aproveitou para completar com sucesso sua autoimposta missão de reaproximar o presidente da Federação Paulista, Alfredo Metidieri, e Heleno Nunes, num esforço que provavelmente já tinha sido iniciado na viagem da semana anterior, antes do jogo contra o Santa Cruz.

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Enquanto os times treinavam e os dirigentes negociavam, o sistema de transporte brasileiro entrava em colapso.

A Ponte Aérea, um consórcio de voos entre São Paulo e Rio de Janeiro – que contava com aviões das companhias aéreas VASP, Varig e Cruzeiro –, costumava oferecer 30 chegadas a cada uma das cidades por dia. Já na quarta-feira, estavam esgotados todos os voos de sexta-feira, sábado e domingo de manhã. O superintendente da Ponte Aérea (vinculada ao Ministério dos Transportes), Winiston Ramos, afirmou que “em dezessete anos de existência, a Ponte Aérea jamais teve tanto movimento quanto o previsto para sábado”. Anunciou 15 voos extras para sexta-feira e 15 para sábado, além de 26 voos extras para domingo, após o jogo, e mais 10 voos extras na segunda-feira. O volume adicional de aeronaves alterou os procedimentos de pouso e decolagem: o tempo de permanência em pista no Aeroporto Santos Dumont foi reduzido de quarenta para vinte minutos, e as aeronaves deveriam ser abastecidas na própria pista, durante o embarque. O funcionamento do aeroporto Santos Dumont, no domingo, seria extendido até as 23 horas, com voos de quinze em quinze minutos desde o final do jogo. O aeroporto de Congonhas, em São Paulo, também teria seu funcionamento extendido até a meia-noite de segunda-feira, para receber os últimos voos vindos do Rio. Entre sexta-feira e domingo de manhã, estima-se que os 123 voos da Ponte Aérea tenham embarcado 11 mil pessoas para ver o jogo.

As companhias aéreas também se desdobravam para dar conta da demanda de frete de aeronaves encomendadas por agências de turismo: além da agência Monark, que havia fretado 20 voos, outras agências também anunciavam grandes números: a VASP e outras duas agências anunciaram o fretamento de 6 aviões. Para o domingo, o exclusivo mercado de jatos também estava aquecido: 4 voos fretados pela Cruzeiro, 5 pela Transbrasil, 5 pela Varig e 7 pela VASP (que também agregou, para a manhã de domingo, mais um Samurai, adicionado de última hora, e um avião de carga adaptado para passageiros). Esses voos particulares e extraordinários somaram mais 4,2 mil pessoas. Por fim, cerca de 2 mil corinthianos viajaram do Recife para o Rio. Um total de 17,2 mil corinthianos viajando de avião para o Rio de Janeiro.

Crédito: Acervo Gazeta Press, via Timão Box

O tráfego aéreo, no entanto, era controlado e limitado. O verdadeiro desafio para as autoridades era adivinhar o volume de carros, Kombis, motos e, principalmente, ônibus que se aventurariam pelos quatrocentos quilômetros da Via Dutra.

No Terminal Rodoviário da Luz, em São Paulo, as filas nos guichês das três empresas que faziam a viagem de ônibus para o Rio – Cometa, Única e Expresso Brasileiro – eram intermináveis desde o início da semana. A exemplo do que acontecera com os voos e trens, todos os assentos para o sábado estavam esgotados já na quarta-feira e, até o final da semana, todas as empresas anunciaram ônibus extras, garantindo saídas de meia em meia hora.

A única via de acesso ao Rio era, então, a via Dutra, inaugurada em 1951 e duplicada em 1967. Percebendo o agito em torno do jogo, o DNER (Departamento Nacional das Estradas de Rodagem) anunciou, já na quarta-feira, a “Operação Corinthians”. Apesar do nome pomposo e do caráter inédito, o efetivo foi tímido: trezentos homens da Polícia Rodoviária Federal se juntariam à operação, revezando-se em dois turnos diários de doze horas e utilizando vinte e cinco veículos, oito carros-guincho e duas ambulâncias. O responsável pela operação, Nelson Armari, só expressava preocupação quanto à possibilidade de congestionamento na região de Aparecida do Norte, por conta dos romeiros.

O senhor Nelson Armari seria apresentado a um novo tipo de fé ao longo dos próximos dias.

***

Na sexta-feira, outro setor do Parque São Jorge passava a ser (muito) mais visitado do que o campo de treino. Finalmente os ingressos para o jogo começariam a ser vendidos. Desde as 9 horas da manhã, torcedores disputavam um lugar na fila. Nos cofres do Parque São Jorge, 25 mil ingressos para arquibancadas e 5 mil cadeiras tinham sido entregues. Desses, no mínimo 10 mil haviam sido guardados para as torcidas organizadas, que já tinham fretado mais de 200 ônibus. O restante todo (cerca de 20 mil ingressos) foi vendido em menos de duas horas.

Na região central, na sede da Federação Paulista de Futebol, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, também houve tumulto: desde as 7 horas da manhã, havia um grupo de, pelo menos, 30 pessoas iniciando uma fila que, às 13 horas, já se prolongava por quatro quarteirões. A Federação tinha recebido 14 mil ingressos para arquibancadas e 2 mil cadeiras, mas, assim como o clube, já tinha uma parte comprometida: cerca de 13 mil ingressos seriam destinados a agências de viagem. Os 3 mil ingressos restantes para os compradores avulsos evaporaram, também, em menos de duas horas. Ainda havia 6 mil ingressos de arquibancadas que estavam à venda nas agências do Banco Bandeirantes, cuja origem ninguém jamais explicou – mas que acabaram sendo vendidos também.

Ou seja, ao todo, vieram a São Paulo 45 mil ingressos de arquibancada e 7 mil de cadeiras. As agências de viagem e torcidas organizadas estavam garantidas (23 mil pessoas), mas toda aquela gente que havia reservado a Ponte Aérea ou comprado passagens de ônibus Cometa, Única ou Expresso Brasileiro, ou ainda que estivesse planejando pegar seu carro e dirigir até o Rio... só teve acesso a 29 mil ingressos. Como veremos a seguir, pelo menos 44 mil pessoas tinham passagens adquiridas de avião, ônibus ou trem. E ainda faltavam as turmas das Kombis e dos carros de passeio. Onde toda essa gente arrumaria ingressos?

No Rio de Janeiro, filas também se formaram, mas os cambistas davam o tom da procura. Os jornais de sábado relatavam a ação e estratégia dos vendedores clandestinos, inclusive entrevistando e dando nome a alguns deles. Por exemplo, o Jornal do Brasil entrevistou o eletricista Francisco Freitas, que trabalhava com a venda ilegal de ingressos desde antes da construção do Maracanã. Ele estava abastecido de ingressos para cadeira especial e camarote (um lote de 705 ingressos que a SUDERJ não teria colocado à venda). Dizia o cambista: “vender arquibancada chama muito a atenção da polícia; por cadeira especial e camarote, paulista dá qualquer dinheiro. Perdi dinheiro no jogo da Seleção; agora chegou a hora de descontar”.

Qualquer observador neutro confirmaria, no domingo, que a torcida do Corinthians ocupava rigorosamente 50% do anel das arquibancadas – ainda que possamos discutir a densidade humana nessa metade, bem maior do que na metade tricolor, como lembra Cláudio Simões, co-fundador da Gaviões da Fiel e organizador da caravana da organizada para o Rio: “na hora em que choveu forte no segundo tempo, a gente não conseguiu ‘subir lá pra cima’, na área coberta, de tanta gente que tinha. Ficamos sob chuva mesmo. E a gente olhava o lado do Fluminense, e a maioria ‘subiu lá pra cima’, e ficou um clarão nos primeiros degraus, onde chovia”. Já na numerada, era clara a maioria corinthiana: “O anel do meio era 70 a 80% tomado por corinthianos que não tinham conseguido ingresso na Arquibancada. Na Geral, tinha mais Fluminense, não venderam ingressos pra gente”.

Como sobraram 25 mil ingressos da Geral, chegamos à seguinte divisão dos ingressos:

  • Arquibancadas: 55 mil ingressos vendidos para corinthianos (45 mil em São Paulo, 10 mil no Rio) e 55 mil ingressos para tricolores;
  • Cadeiras e camarotes: 18 mil ingressos vendidos para corinthianos (7 mil em São Paulo, 11 mil no Rio, a maioria junto a cambistas) e 6 mil ingressos para tricolores;
  • Geral: 10 mil ingressos para tricolores, tendo sobrado outros 25 mil ingressos.
  • Concessionárias: 500 ingressos.
  • Total: 73 mil corinthianos, 71 mil tricolores, sem considerar o fator da densidade das arquibancadas.