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Matérias / Sexo

Diabo no porão da caravela: O tabu do sexo em alto mar

Apesar de a sodomia estar listada como uma das mais sérias violações dos dogmas de época, nas caravelas, era constante e não respeitava idade

M. R. Terci Publicado em 17/02/2020, às 14h53 - Atualizado às 14h54

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Os marinheiros ao mar - Divulgação
Os marinheiros ao mar - Divulgação

Não há nada mais romântico que conhecer o amor de sua vida a bordo de um navio. Quem embarca no barco do amor, embarca sem colete salva vidas e não desembarca em porto sem se envolver. Em um cruzeiro marítimo, algures entre o Caribe e Bermudas, ou no Mediterrâneo ou à frente da Costa da Sicília, quando deslizam à noite pelo estreito de Gibraltar a cintilar de miríades de luzes, ou ainda quando o barco do amor desliza suave sobre o continente perdido de Atlântida.

Mas, há mais de 500 anos, no pequeno cubículo das caravelas, o transcorrer dos dias e meses pareceria monótono. Nesse contexto, inobstante o silêncio das fontes, podemos deduzir as singularidades da vida sexual a bordo. Certo é, portanto, que apesar da sodomia estar listada como uma das mais sérias violações dos dogmas de época, nas caravelas, era constante e não respeitava idade.

Venham comigo, pelos caminhos mais escuros da história, navegar em águas profundas e trazer à superfície o tema da sexualidade do quinhentismo, um assunto relegado ao porão da história, justamente por escancarar que nem tudo foram glória e heroísmo a bordo das naus e caravelas do descobrimento.

Nas naus que conduziam os tripulantes sob o comando de Vasco da Gama, não consta a presença de mulheres, mas os relatos de conflitos, brigas mortais e discórdias são numerosos, justamente pelo fato de que em uma viagem tão longa, com tanta gente comprimida num espaço tão exíguo, qualquer incidente é motivo de sacar a espada.

Provavelmente, o silêncio a respeito dos fatos, a licenciosidade no interior dos navios, era camuflado pela intolerância em relação à prática homossexual e pela brutal repressão inquisitorial. Dado esse aspecto, naqueles anos, os sodomitas – assim chamados o expressivo contingente homossexual existente em Portugal – propendiam a buscar convívio nos mesmos grupos sociais onde eram recrutados os marujos para caravelas.

Nessa equação, deve-se ter em conta que muitos meninos órfãos buscavam trabalho no interior das embarcações. Os grumetes, em geral crianças entre 9 e 16 anos, hierarquicamente abaixo dos marinheiros, eram encarregados dos trabalhos mais pesados e arriscados a bordo.

Dada sua fragilidade, em troca de proteção de um adulto ou de um grupo, logo que embarcavam, os meninos viam-se obrigados a abandonar o universo infantil. Obrigados a entregarem-se a sodomia, sem dúvida, eram os que mais sofriam nas caravelas. Quando tentavam resistir, eram surrados e estuprados.

Crédito: Wikimedia Commons

Fácil presumir que por medo ou vergonha, não se queixavam aos oficiais. Mas, é concebível também que os próprios oficiais, muitas vezes, praticavam a violência. A lei do mais forte imperava, destituindo as crianças e também os marujos mais fracos do arbítrio sobre seus corpos. 

Enquanto nas colônias as penas impostas a sodomia eram extremamente leves se comparadas as aplicadas no Reino, a bordo das embarcações portuguesas os próprios estatutos da Inquisição eram inexistentes.

Os marujos das caravelas eram indisciplinados e beberrões, acostumados à vida portuária e ao convívio com prostitutas, eram sempre elementos de caráter duvidoso, em geral, eram homens sem nada a perder, embarcados compulsoriamente como forma de pena alternativa a vadiagem, incesto e outras violências. Mas as penas brandas a bordo dos navios atraiam também criminosos de alta periculosidade cuja pena por decapitação ou enforcamento havia sido comutada pelo serviço marítimo.

Timothy J. Coates, professor do departamento de História e Coordenador do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Histórica da UNESP, constatou em seu estudo acerca das órfãs e degredadas embarcados rumo às possessões portuguesas entre 1550 e 1755, que a grande maioria dos marinheiros das embarcações era composta por homicidas, principalmente na rota da Índia e na rota do Brasil de 1640 em diante.

O ecletismo, por outro lado, parece ter embarcado. Sabe-se que apesar da maioria dos marujos saciarem seus desejos sexuais com grumetes ou homens mais fracos, havia mulheres a bordo.

Como era de se esperar, nos relatos de naufrágios, não há referências a escravas, mas pelas cartas dos jesuítas constata-se que havia viajantes clandestinas, numa referência clara a prostitutas e concubinas embarcadas em segredo pelos marinheiros. Essas pobres mulheres seriam submetidas a todo tipo de violência física, incluindo os estupros coletivos.

Embora oficiais e alguns integrantes da nobreza tivessem direito a um espaço maior, no dia a dia, a rotina na embarcação obrigava todos os tripulantes a conviverem num espaço minúsculo. Na proporção de cinquenta por uma, as mulheres de casta nobre também vinham a bordo. Longe da vista dos religiosos, o assédio às esposas ou filhas da alta nobreza, constituía uma forma de entretenimento dos homens do mar.


M.R. Terci é escritor e roteirista; criador de “Imperiais de Gran Abuelo” (2018), romance finalista no Prêmio Cubo de Ouro, que tem como cenário a Guerra Paraguai, e “Bairro da Cripta” (2019), ambientado na Belle Époque brasileira, ambos publicados pela Editora Pandorga.