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Matérias / Pandemia

Diário do século 17 revela semelhanças assustadoras entre a vida sob a peste bubônica e a pandemia atual

Os registros escritos pelo britânico Samuel Pepys relatam como o homem lidava com o surto da peste negra

Ute Lotz-Heuman Publicado em 27/04/2020, às 14h04

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Retrato de Samuel Pepys por John Hayls, em 1666 - Divulgação
Retrato de Samuel Pepys por John Hayls, em 1666 - Divulgação

No início de abril, a escritora Jen Miller pediu aos leitores do New York Times que iniciassem um diário de coronavírus."Quem sabe talvez um dia seu diário forneça uma janela valiosa para esse período.”, escreveu ela.

Durante uma pandemia diferente, um administrador naval britânico do século 17 chamado Samuel Pepys fez exatamente isso. Ele manteve um diário meticuloso de 1660 a 1669 - período que incluiu um surto grave da peste bubônica em Londres. As epidemias sempre assombraram os seres humanos, mas raramente temos um vislumbre tão detalhado da vida de uma pessoa durante uma crise de tanto tempo atrás.

Não existiam reuniões através do aplicativo Zoom, testes feitos por entrega, ou ventiladores respiratórios na Londres do século 17. Mas, o diário de Pepys revela que existiam algumas semelhanças impressionantes na maneira como as pessoas reagiam à pandemia.

Uma sensação assustadora de crise

Para Pepys e os habitantes de Londres, não havia como saber que um surto da peste que ocorreu nos arredores da paróquia de St. Guiles, uma área pobre fora dos muros da cidade, no final de 1664, se tornaria uma epidemia.

Na primeira vez que a praga entrou na percepção de Pepys, já foi o suficiente para justificar registros em seu diário em 30 de abril de 1665: “Há um grande medo da doença aqui na cidade”, escreveu ele, “foi dito que duas ou três casas já estão lacradas. Deus preserve todos nós.”.

Pepys continuou a viver sua vida normalmente até o início de junho, quando, pela primeira vez, viu casas "lacradas" - o termo que seus contemporâneos usavam para quarentena - com seus próprios olhos: "marcadas com uma cruz vermelha nas portas, e com a frase 'Senhor tenha piedade de nós' escrito lá”. Depois disso, Pepys tornou-se cada vez mais perturbado pelo surto.Ele logo observou cadáveres sendo levados para enterros nas ruas e vários de seus conhecidos morreram, incluindo seu próprio médico.

Em meados de agosto, ele escreveu suas vontades dizendo: "Que eu esteja em um estado de espírito muito melhor, eu espero, se o Senhor decidir me levar neste período doentio". Mais tarde naquele mês, escreveu sobre ruas desertas; os pedestres que ele encontrou estavam "andando como pessoas que se despediram do mundo".

Acompanhamento da contagem de mortalidade

Em Londres, a Company of Parish Clerks trabalhou nos registros semanais dos enterros na cidade. Como essas listas contabilizavam os enterros de Londres - e não as mortes -, eles sem dúvida subestimaram os mortos. Assim como seguimos atentos a esses números hoje, Pepys documentou a quantidade crescente de vítimas da peste em seu diário.

Uma gravura de 1666 mostra mortes e enterros em Londres durante a peste bubônica / Crédito: Divulgação 

No final de agosto, Samuel citou a nota de mortalidade como tendo registrado 6.102 vítimas da peste, mas temia "que o número real de mortos seja próximo de 10 mil.”, principalmente porque as vítimas pobres não foram contabilizadas. Uma semana depois, ele anotou o número oficial de 6.978 mortes em uma semana, "um número mais terrível.".

Em meados de setembro, todas as tentativas de controlar a praga estavam falhando. Quarentenas não estavam sendo cumpridas e pessoas se reuniam em lugares como o centro comercial de Royal Exchange. O distanciamento social, em suma, não estava acontecendo.

O homem ficou igualmente alarmado com as pessoas que compareceram aos funerais, apesar das ordens oficiais. Embora as vítimas da peste bubônica devessem ser enterradas à noite, esse sistema também não foi respeitado e Pepys afirmou que os enterros estavam ocorrendo "em plena luz do dia.".

Pintura de 1665 retratando a peste negra / Crédito: Wikimedia Commons

Desesperado por remédios

Existem poucas opções de tratamento eficazes conhecidas para o Covid-19. Pesquisas médicas e científicas precisam de tempo, mas, as pessoas afetadas pelo vírus estão dispostas a tentar qualquer coisa. Tratamentos fraudulentos feitos com chás e complexos vitamínicos, até conhaque e urina de vaca, foram testados.

Embora Pepys tenha vivido durante a Revolução Científica, ninguém no século 17 sabia que a bactéria Yersinia pestis transportada por pulgas havia causado a praga. Em vez disso, os cientistas da época teorizaram que a doença estava se espalhando através da teoria do miasma, ou ar ruim, criado pela decomposição da matéria orgânica e identificável pelo seu mau cheiro. Algumas das medidas mais populares para combater a praga envolviam a purificação do ar, fumando tabaco ou segurando ervas e temperos na frente do nariz.

O tabaco foi o primeiro remédio que Pepys procurou durante o surto de peste. No início de junho, ver as casas lacradas "me colocou em uma má concepção de mim e do meu cheiro, de modo que fui forçado a comprar um pouco de tabaco para cheirar e mascar.".

Mais tarde, em julho, uma nobre padroeira deu a ele "uma garrafa de água de peste" -  remédio feito com várias ervas. Mas, ele não tinha certeza se isso era eficaz. Tendo participado de uma discussão em um café intitulada a praga que cresce nesta cidade e remédios contra ela, ele só pôde concluir que “cada um dizia uma coisa”.

Durante o surto, Pepys também estava muito preocupado com seu estado de espírito; ele constantemente mencionava que estava tentando se manter de bom humor. Essa não foi apenas uma tentativa de não deixar com a situação o afetasse- como poderíamos dizer hoje -, mas também informado pela teoria médica da época, que alegava que um desequilíbrio dos chamados humores no corpo - sangue, bile preta, bile amarela e fleuma - levaram à doença.

A melancolia - que, segundo os médicos da época, resultavam em um excesso de bile negra - poderia ser perigosa para a saúde, por isso, Pepys procurou suprimir emoções negativas; em 14 de setembro, por exemplo, ele escreveu que ouviu falar de amigos e conhecidos mortos “me leva a grandes apreensões de melancolia, mas adio os pensamentos de tristeza o máximo que posso.”.

Equilibrando paranoia e risco

Os seres humanos são animais sociais e prosperam na interação; portanto, não é surpresa que muitos tenham encontrado um desafio durante o período de distanciamento social, em decorrência da pandemia de coronavírus. Pode exigir uma avaliação de risco constante: Quão perto é perto demais? Como podemos evitar a infecção e manter nossos entes queridos em segurança, nos mantendo sãos? O que devemos fazer quando alguém em nossa casa começa a tossir?

Durante a praga, esse tipo de paranoia também era abundante. Pepys descobriu que quando ele saiu Londres e foi para outras cidades, o povo local ficou visivelmente nervoso com sua visita."Eles têm medo de nós irmos até eles", escreveu Samuel em meados de julho, "de modo que estou preocupado com isso".

Pepys sucumbiu à paranoia no final de julho, quando seu servo Will de repente teve uma dor de cabeça. Temendo que sua casa inteira fosse lacrada se um servo estivesse contaminado com a praga, Pepys mobilizou todos os seus outros funcionários para tirar o homem da residência o mais rápido possível. Acontece que Will não teve a praga, e voltou no dia seguinte.

No início de setembro, Pepys se absteve de usar uma peruca que comprou em uma área de Londres  conhecida como grande ponto de contágio. Samuel indagou-se sobre as outras pessoas, se elas também teriam medo de usar perucas, porque poderiam ter sido feitas com cabelos das vítimas da peste.

No entanto, o administrador naval estava disposto a arriscar sua saúde para atender certas necessidades; no início de outubro, ele visitou sua amante sem se preocupar com o perigo: "a praga está em todos os lados e em todas as portas, eu não a subestimei, mas fiz o que pude com ela.".

Assim como as pessoas em todo o mundo esperam ansiosamente para que o número de mortos pelo coronavírus entre em queda, como um sinal do fim da pandemia, Pepys mantinha esperança - e o ímpeto de ver sua amante – após o primeiro declínio nas mortes em meados de setembro.

Uma semana depois da visita, ele observou uma queda substancial nas mortes causadas pela peste, mais de 1.800. Vamos torcer para que, como Pepys, em breve possamos enxergar alguma luz no fim do túnel.


Ute Lotz-Heumann é historiadora e professora de História Medieval, da Universidade do Arizona. Este artigo foi republicado no The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.


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