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Matérias / Dom Pedro I

Do Rio de Janeiro a São Paulo: os detalhes da viagem de Dom Pedro até a Independência do Brasil

A jornada de Dom Pedro entre agosto e setembro de 1822 foi crucial para o destino do Brasil

Rodrigo Trespach Publicado em 07/09/2022, às 09h00 - Atualizado em 24/01/2024, às 15h48

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L’impereur D. Pedro I, gravura de Jean-Baptiste Debret, 1839 e a vista do Ipiranga por Edmund Pink, 1823 - Domínio Público
L’impereur D. Pedro I, gravura de Jean-Baptiste Debret, 1839 e a vista do Ipiranga por Edmund Pink, 1823 - Domínio Público

Riacho Ipiranga, São Paulo, tarde de sábado, 7 de setembro de 1822. Dom Pedrovenceu a íngreme Serra de Paranapiacaba acompanhado de uma pequena comitiva. Estavam
com ele os oficiais Antônio da Gama Lobo e Marcondes de Oliveira Melo, o padre Belchior e o fiel Chalaça, entre outros. Não mais do que trinta e poucos homens, incluindo a “guarda de honra”.

O príncipe regente montava uma mula – “uma bela besta baia” – e vestia um traje militar simples. De acordo com os relatos da época, d. Pedro sofria com “cólicas intestinais” desde que deixara Santos, no litoral, naquela mesma manhã. O incômodo o obrigava a fazer paradas constantes e tornava ainda mais penoso o caminho até São Paulo.

Pouco depois das 16h, já no planalto, a poucos quilômetros da capital paulista, ele cruzou com dois cavaleiros. Um deles era Paulo Bregaro, estafeta que trazia  correspondência do Rio de Janeiro. Eram cartas de José Bonifácio e d. Leopoldina, além  de notícias sobre as decisões da Corte, em Lisboa. Do Rio, um ofício do Conselho de Estado, dirigido por d. Leopoldina, propunha a separação de Portugal.

A correspondência era clara e firme: “O pomo está maduro, colhei-ojá, senão apodrece”. José Bonifácio dava anuência: “O momento não comporta mais delongas ou condescendências”. As notícias da Europa não eram promissoras, o Brasil voltaria a ter o status de colônia, o ministério brasileiro seria destituído e seus membros deveriam ser processados.

'Independência ou Morte', de Pedro Américo, que mostra a proclamação / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

Além disso, d. Pedro deveria retornar imediatamente para Portugal. A situação era delicada e, diante de um círculo bastante reduzido, o príncipe teria perguntado a seu confessor: “E agora, padre Belchior?”. A resposta foi rápida e direta: “Não há outro caminho senão a independência e a separação”.

Recompondo-se do mal-estar causado pela diarreia, d. Pedro proclamou que daquele dia em diante estavam quebradas as relações com Portugal: “Nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal!”. O grupo tomou novamente a estrada em direção a São Paulo e junto ao Riacho Ipiranga encontrou a Guarda de Honra, que se adiantara à comitiva e aguardava o príncipe para a entrada na cidade. Os cavaleiros apressadamente dispuseram- se em semicírculo.

“Nenhum laço nos une mais!”, disse d. Pedro, atirando no chão a fita que trazia no chapéu, com as cores portuguesas, explicando que Portugal desejava escravizar o Brasil e que por isso as relações entre os dois reinos estavam quebradas. Então, veio o grito: “Viva a independência, a liberdade e a separação do Brasil!”.

Ainda de pé sobre a mula, d. Pedro guardou a espada na bainha e declarou: “Brasileiros,
a nossa divisa de hoje em diante será Independência ou Morte!”.

A viagem Rio-São Paulo

A jornada que levou d. Pedro às margens do Ipiranga foi apenas uma parte da longa viagem empreendida pelo príncipe. Ele deixara o Palácio de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em 14 de agosto e entrara em São Paulo no dia 25. Um trajeto que, na época, passava de 630 quilômetros.

Nos primeiros quatro dias da viagem, entre o Rio de Janeiro e Lorena (já em território paulista), a comitiva real atravessou os trechos mais longos entre um pouso e outro (mais de 60 quilômetros, em média): do Palácio de São Cristóvão à Fazenda de Santa Cruz, de São João Marcos a Bananal, de Bananal a Areias, e de Areias a Lorena.

O caminho entre Itaguaí (RJ) e Areias (SP) foi especialmente difícil, pois foi necessário  subir a serra e passar por uma estrada que serpenteava morros e encostas íngremes. Lorena, então um “sítio pobre, sem importância”, com cerca de 40 casas, foi alcançada no
dia 18 de agosto. Seguiram-se paradas em Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté, Jacareí, Mogi das Cruzes e Penha de França, última etapa antes da entrada na capital.

Ao longo detodo o percurso, a caravana valeu-se de cavalos e mulas, com os quais cruzou cidades e vilas, vales e serras, e atravessou rios e arroios. A maioria das localidades não passava de pequenas povoações, espalhadas por um grande território: o município de Guaratinguetá, por exemplo, tinha pouco mais de 6.100 habitantes e o de Taubaté aproximadamente 8.700.

Durante quase duas semanas, o príncipe regente destituiu governos, emitiu decretos, nomeou pessoal para cargos públicos e concedeu patentes militares, assistiu a missas, plantou árvores, apostou carreira, comeu com a escravatura e achou tempo para encontros sexuais, mas, principalmente, recebeu apoio incondicional por onde passou – o motivo real de sua jornada, obter apoio da importante província antes de qualquer medida política mais drástica.

São Paulo em 1822

D. Pedro entrou em São Paulo pela várzea do Carmo (hoje Avenida Rangel Pestana), passando pelas pontes do Ferrão e do Franca, sobre o Rio Tamanduateí. Foi recebido com disparos de canhão e o repique dos sinos das igrejas. No Largo do Carmo, entre a igreja e a porta da casa do bispo d. Mateus de Abreu Pereira, parou diante de um arco do triunfo decorado com a saudação “Pedro Excelso”.

Ali, conforme determinado previamente, teve contato com as autoridades da cidade e do estado, o bispo e a população que se aglomerava em volta. Rezou, recebeu aspersão de água benta e, sem discursos, seguiu até a Igreja da Sé, percorrendo as ruas ocupadas de “imenso povo”. Na igreja, d. Pedro sentou-se em um sitial de damasco carmesim. Cantou-se o tradicional Te Deum em ação de graças e músicas sacras foram executadas.

Encerrado o ato religioso, o príncipe dirigiu-se ao Palácio do Governo. No Pátio do Colégio, arcos enfeitavam o lugar com frases e expressões do próprio príncipe, e dois coretos executavam música instrumental. O palácio, que ocupava a antiga instituição
jesuíta, fora decorado com a melhor tapeçaria encontrada na cidade e ricamente mobiliado com auxílio dos cidadãos ricos.

Na sala de audiência, deu-se o beija-mão, concedido primeiro aos membros da Câmara, depois ao bispo e ao clero, seguidos de demais autoridades – a solenidade do beija-mão consistia em fazer o súdito ajoelhar e beijar a mão do monarca ou de membros da família real, em sinal de submissão; fora abandonado na Europa, mas era ritual diário da corte portuguesa instalada no Brasil desde 1808.

O cerimonial foi encerrado com salvas de artilharia e descargas das tropas. À noite, os prédios e as casas importantes foram iluminados com lampiões de azeite. Em 1822, São Paulo não dispunha de iluminação pública e era minúscula se comparada ao Rio de Janeiro ou Salvador. A cidade que d. Pedro encontrou tinha apenas 6.920 habitantes.

O município, incluindo a área rural e distritos distantes, como Cotia, Guarulhos e São
Bernardo, somava pouco mais de 24 mil habitantes segundo o censo daquele ano. O núcleo urbano, ainda espremido entre os rios Anhangabaú e o Tamanduateí, era formado por 38 ruas, dez travessas, sete pátios e seis becos. Eram aproximadamente 1.360 habitações, algumas praças e 13 lugares de devoção, sendo dois conventos, três mosteiros e oito igrejas.

As principais atividades comerciais paulistas revelam uma cidade em crescimento, mas longe da metrópole do final do século: eram 92 costureiras, 48 rendeiras, 33 tecelões, 91 negociantes, 24 carpinteiros, 21 alfaiates, 57 lavradores e oito tropeiros, entre outras ocupações menos representativas – a cidade contava com nove professores e sete médicos.

A produção da cidade e da região ao seu entorno estava baseada na lavoura do chá e na fabricação da farinha de mandioca. No dia seguinte à chegada de d. Pedro, lá estavam os paulistas novamente reunidos para o beija-mão. Mas, desta vez, a Câmara pode se pronunciar. Manuel Joaquim de Ornelas, o orador indicado para representar a casa, garantiu o apoio paulista ao príncipe afirmando em seu discurso que d. Pedro era o “astro luminoso” que vinha para dissipar “as negras e espessas sombras” que cobriam o horizonte.

Era uma referência ao levante político, contrário ao governo do Rio, que havia dividido a cidade em maio de 1822. A revolta ficaria conhecida como “Bernarda de Francisco Ignácio”, alusão a seu principal articulador. Restabelecida a ordem política e tendo obtido apoio formal da província, nos dias seguintes d. Pedro continuou deliberando. Nomeou um novo comandante de Armas para São Paulo e também um juiz de fora. Entre despachos e audiências, sobrava tempo para conhecer e andar pela cidade.

Apesar de pequena, São Paulo tinha fama de ser a terra das mulheres mais formosas do Brasil. Spix e Martius, dois cientistas bávaros que percorreram o Brasil daquela época, escreveram que as paulistas eram “esbeltas, de constituição forte, porém graciosas nos gestos e nos traços fisionômicos”, com rostos redondos que demonstravam alegria e franqueza.

Entre as 4 mil mulheres que viviam na cidade, uma paulista chamou a atenção de d. Pedro mais do que qualquer outra: Domitila de Castro Canto e Melo, filha do coronel reformado João de Castro Canto e Melo e irmã do alferes Canto e Melo, que  acompanhava o príncipe desde o Rio.

O velho Canto e Melo tinha uma longa história de serviços prestados ao Exército português, servira no Sul do Brasil, fora monteiro-mor do reino e próximo do pai de d. Pedro, d. João VI, o que, em 1820, lhe valeu a nomeação para os serviços de viação pública em São Paulo.

Dois anos depois, como inspetor de reparação de estradas, foi incumbido de reparar a estrada para Santos, a ponte sobre o Tamanduateí e a ladeira do Carmo, por onde d. Pedro deveria entrar pela capital paulista. O irmão de Domitila seguia os passos do pai. Havia sido praça no corpo de Cavalaria, atuara na Cisplatina e estava servindo no Rio desde o começo de 1822.

Há quem afirme que o primeiro contato entre d. Pedro e Domitila tenha acontecido nas
terras alugadas pelo coronel Canto e Melo, próximo ao Cemitério dos Aflitos. Para outros, aconteceu em uma propriedade localizada próximo de onde hoje se encontra o Museu da Independência, no lugar chamado então de Moinhos.

Essa chácara era utilizada pelo militar como lugar de pouso para tropas de mula que faziam a ligação entre Santos e São Paulo. Há quem afirme que o encontro aconteceu na véspera da entrada triunfal na cidade. Ainda em Penha de França, à noite, o príncipe teria sido levado ao encontro de Domitila por Chalaça e o alferes Canto e Melo.

Segundo o próprio d. Pedro revelou, em carta à amante, escrita em 1825, o encontro aconteceu em 29 de agosto, dia em que “comecei ter amizade com mecê”. Domitila foi mais detalhista. Em carta a uma amiga, confidenciou que recebeu o príncipe  reservadamente às 22h, “numa noite chuvosa, cortada de relâmpagos”, em seus aposentos à Rua do Ouvidor.

Além disso, nada mais se sabe com certeza, embora o encontro dos dois, enquanto Domitila passeava pelas ruas da cidade em uma liteira, tenha se tornado parte das narrativas do romance.

Rumo a Santos pela calçada do Lorena

Com tudo acertado em São Paulo, no dia 5 de setembro d. Pedro partiu ao litoral, para vistoriar o porto e as fortalezas que guarneciam a porta de entrada da província. Santos, a cidade natal de seu principal conselheiro e ministro, José Bonifácio, era um pouco menor do que a capital. Tinha uma população de pouco mais de 4.700 habitantes, dos quais mais de 2 mil eram escravizados.

Pintura oficial de José Bonifácio / Crédito: Wikimedia Commons

O caminho usado por d. Pedro para chegar a Santos era o antigo “Caminho do Mar”, conhecido dos indígenas e mamelucos desde o século 16. A trilha original foi melhorada pelos jesuítas, mas a Serra de Paranapiacaba continuou sendo uma travessia extremamente difícil. O caminho era muito íngreme, estreito e cheio de precipícios, o que explica porque a cidade de São Paulo permaneceu protegida de qualquer ataque vindo do litoral ao longo da história.

A situação foi alterada no governo de Bernardo José de Lorena, que chegou à província
em 1788 acompanhado de um grupo de engenheiros militares, entre os quais o capitão
João da Costa Ferreira. Sobre a administração de Lorena, a cidade de São Paulo recebeu muitas melhorias. Mas nada comparado à construção da estrada que ligava a capital ao porto de Santos, concluída em 1792.

O novo traçado, em zigue-zague e todo calçado, amenizava a dificuldade da subida e desviava de terrenos alagados e riachos que cortam a região, evitando o risco de deslizamentos. Ao longo do caminho, os trechos mais perigosos continham parapeitos. Canais foram instalados para escoar a água das chuvas e árvores foram cortadas para que o sol pudesse secar o piso e evitar acumulo de água.

O caminho, que era quase todo feito a pé, levando até mais de um dia de viagem, agora
podia ser percorrido no lombo das mulas em algumas horas. Em homenagem ao  governador, a via foi apelidada de Calçada do Lorena – a estrada hoje está dentro do Parque Caminhos do Mar e segue um traçado próximo à chamada “Estrada Velha de Santos”, a Rodovia Caminho do Mar (SP-148), cuja pavimentação foi concluída em 1925.

No entanto, a “calçada” era apenas parte do trajeto. A viagem entre São Paulo e Santos era realizada em três etapas. A primeira percorria o planalto, passando próximo à atual São Bernardo do Campo; a segunda descia a escarpada estrada da Serra do Mar; e a terceira era realizada por via fluvial. Depois de descer a Calçada do Lorena, chegava-se ao porto de Perequê, em Cubatão, e dali seguia-se a jornada via Rio Cubatão até um atracadouro nas proximidades do atual Museu do Café, em Santos.

Quase nada se sabe sobre a estadia de d. Pedro em Santos, salvo que ele foi recebido por autoridades, participou de uma missa na Igreja Matriz, dormiu no Palácio dos Governadores (no mesmo local onde hoje está o prédio da Alfândega), visitou as fortalezas locais e a casa da família de José Bonifácio. Faltam detalhes, sobram lendas.

O certo é que no dia 7 de setembro pela manhã, ele começou a retornar a São Paulo já “agoniado por uma disenteria”, segundo o padre Belchior. Às 16h30 daquele dia, d. Pedro faria história. Uma história que completa dois séculos.