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Matérias / Nísia Floresta

Posicionamentos diferentes e erro na internet: a história da 'inimiga' de Nísia Floresta

Um erro histórico tem assombrado a imagem da prestigiada autora. Para entender melhor a questão, o site Aventuras na História conversou com o pesquisador Luís Carlos Freire

Ingredi Brunato, sob supervisão de Thiago Lincolins Publicado em 07/11/2021, às 08h00 - Atualizado em 27/05/2022, às 08h00

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Montagem mostrando Isabel Gondim (à esquerda) e Nísia Floresta (à direita) - Domínio Público via Wikimedia Commons
Montagem mostrando Isabel Gondim (à esquerda) e Nísia Floresta (à direita) - Domínio Público via Wikimedia Commons

Nísia Floresta foi uma escritora e educadora brasileira à frente de seu tempo. Ela viveu no século 19, e se destacou como uma grande defensora dos direitos das mulheres e dos povos indígenas, além de possuir uma forte postura abolicionista em relação ao sistema escravocrata. 

Floresta não apenas escreveu obras expondo seus posicionamentos intelectuais, como os colocou em prática sempre que teve a oportunidade. Aos 28, por exemplo, Nísia criou uma escola voltada para meninas em que, diferente de outras instituições de ensino do período, ensinava Ciência, Matemática, Gramática e ainda línguas estrangeiras para as garotas que ali se matriculavam. 

Em vida, a autora fez inúmeras viagens internacionais, e seu legado, de forma semelhante, também recebeu prestígio no exterior. A despeito de todas as contribuições que ela deixou para a sociedade brasileira, porém, uma estranha distorção ocorreu com sua imagem na última década. 

E quando dizemos imagem, não estamos falando da reputação de Nísia, e sim literalmente da maneira como lembramos de sua aparência física. Isso porque, quando se pesquisa o nome da escritora no Google atualmente, dentre os retratos e gravuras atribuídos a ela, aparece uma fotografia que é, na verdade, de outra autora brasileira. 

Trata-se de Isabel Gondim, uma escritora e historiadora que nasceu na mesma cidade que a primeira — Papary, no Rio Grande do Norte, que posteriormente foi renomeada como “Nísia Floresta” como homenagem à educadora. No entanto, as semelhanças entre as duas param por aí, uma vez que Isabel possuía posicionamentos diferentes. 

Essa divergência a levou inclusive a tornar-se uma crítica ferrenha de sua conterrânea, infelizmente chegando a publicar uma carta em que buscava desmoralizar a escritora através de uma mistura de manipulações dos fatos e mentiras descaradas. 

Imagem mostrando Nísia Floresta / Crédito: Domínio Público

Embora as diferenças entre essas duas escritoras sejam aparentemente drásticas, a ponto de existir uma hostilidade partindo de Isabel em relação a Nísia, em algum momento ocorreu uma confusão entre a imagem das duas. Esse erro original causou um efeito dominó, sendo repercutido por outros meios, até se tornar um difundido engano histórico. 

Para entender melhor a origem e desenvolvimento do fato, o site Aventuras na História conversou com Luís Carlos Freire, que descende do mesmo tronco genealógico da autora e atua como pesquisador especializado na vida de Floresta que há anos tem se esforçado para esclarecer a questão. Freire também é autor de 'História do Munícipio de Nísia Floresta', 'Cultura Popular em Nísia Floresta' e 'A Linguagem Popular em Nísia Floresta'; todos publicados no blog 'Nisia Floresta por Luís Carlos Freire'. 

A origem da confusão 

Luís explicou que não é possível rastrear qual foi o primeiro lugar que divulgou o equívoco, porém tem um bom palpite a respeito do ano em que o problema começou. 

“Tenho quase certeza que foi em 2011. Dei conta disso quando o jornal ‘A Tribuna do Norte’ me procurou para fazer uma matéria à ocasião de uma polêmica em que uma senhora havia produzido um vídeo-documentário para as escolas públicas potiguares, justamente mostrando Isabel Gondim como sendo Nísia Floresta”, contou o pesquisador. 

O especialista ainda descobriu que uma outra pessoa, professora Rejane de Souza, havia avisado a responsável pelo vídeo do engano previamente à sua divulgação, mas infelizmente não foi ouvida. 

“A troca da imagem de Nísia Floresta por Isabel Gondim por si consiste num grande desserviço. Os impactos negativos são das mais variadas formas. Primeiro que é um erro. História é fato, e não é fato que Isabel Gondim seja Nísia Floresta (...) Confundir essas duas figuras é um ato de mentira. Mentira não é história. Há impacto pior que isso?”, enfatizou o especialista. 
Escultura representando Nísia Floresta / Crédito: Divulgação/ Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte

Ironia do destino 

Mas por que justamente a fotografia de Isabel foi rotulada como um retrato da escritora? Para Luís, essa é uma infeliz ironia do destino. 

“Suponho que [o erro] seja pelo fato de ambas serem conterrâneas. Nísia Floresta e Isabel Gondim nasceram em Papary, hoje Nísia Floresta. Pode ser que alguém tenha confundido por essa razão e publicado a foto errada pela primeira vez na internet”, disse o pesquisador. 

“Isso não justifica – é uma falha grave - afinal quem se propõe a realizar uma pesquisa séria, a nível de um livro, um artigo, um vídeo-documentário, um filme etc, não deve pegar a primeira imagem que encontra”, acrescenta. 

Freire ainda esclareceu algumas das diferenças fundamentais entre as vidas e legados das duas autoras brasileiras.

Água e óleo

“Quando Isabel Gondim nasceu, Nísia Floresta já era uma famosa autora de livros. Ambas nunca se viram. Ironicamente, Isabel Gondim limitou a sua vida apenas ao Rio Grande do Norte, e Nísia conheceu inúmeros países, conheceu incontáveis intelectuais e pensadores, escreveu sobre inúmeros assuntos de maneira visionária. Isabel já era super conservadora. Via a mulher com muitos tabus, reproduzindo o patriarcalismo”, contou Luís

Mais grave que isso, foram os esforços que Gondim colocou na tarefa de desmoralizar a outra, segundo o pesquisador. A carta detratora escrita por ela, que, de acordo com Luís, procurava “reduzir Nísia Floresta a pó”, traz uma série de difamações sem base. 

No blog do especialista, Nisia Floresta por Luís Carlos Freire, é possível ver o texto disponível ao público curioso a respeito do assunto. Conforme descreve, a mensagem é repleto de “colocações terríveis, mentirosas e que comprovadamente foram elucidadas por estudiosos”. 

“Imagine você produzir um legado precioso para o mundo, de repente surge um inimigo gratuito e começa a lhe atacar, você morre e a imagem dessa inimiga gratuita passa a veicular todos os lugares como sendo você”, refletiu o especialista. 

Uma frase que, na opinião de Freire, resume muito bem o contraste entre as duas escritoras nordestinas, foi dita por Rodrigues Alves, escritor: “Nísia Floresta era um gênio, Isabel Gondim, geniosa”. 

Pintura representando Nísia Floresta / Crédito: Divulgação/ Fundação Joaquim Nabuco

Correndo atrás do prejuízo 

Até hoje existem sites que trazem o retrato de Gondim identificado com o nome de sua adversária. Alguns deles são blogs antigos, sem atualizações recentes. Assim, é possível notar que corrigir esse erro histórico em meio à Era da Internet oferece desafios extras. 

O pesquisador, porém, não se deixou intimidar pela missão, e há anos se dedica a fazer essa correção, realizando um fundamental trabalho de formiguinha — que, embora não consiga transformar algo imediatamente, faz a diferença ao longo do tempo. 

“Desde 2011, quando constatei isso, passei a entrar em contato com autores de textos na que publicam a imagem errada. Assim, alerto o autor sobre o equívoco, peço que corrija a fotografia e envio um link com um acervo de imagens: fotografia, retrato, caricaturas, desenhos etc; tudo verdadeiramente de Nísia Floresta. Produzi esse material justamente para facilitar quando alerto alguém. Não existe o erro da troca de imagens antes de 2011”, explicou Luís

Um problema recorrente encontrado pelo especialista é na Wikipedia. A plataforma, que por vezes pode ser editada por pessoas que por vezes não são qualificadas para tanto, traz um ficheiro em que o retrato de Gondim é rotulado como pertencente à Nísia

 “Tenho conta na Wikipedia desde 2011, justamente por causa disso. Já corrigi diversas vezes, mas alguém torna a publicar o erro no ficheiro. Confesso que suponho existir alguém que faça isso de má fé. Se você olhar a Wikipédia hoje, verá que há um acervo mais ampliado de imagens reais de Nísia Floresta e relacionadas a ela. Fui eu que publiquei”, relatou. 

Segundo comemora Freire, ele já conseguiu corrigir diversos veículos relevantes, e até mesmo publicações internacionais. Infelizmente, nem sempre tem sucesso: às vezes, por exemplo, sequer obtém uma resposta ao seu apelo. 

“A cada 15 dias invisto umas duas horas nessa espécie de missão de corrigir, mas a imagem de Isabel segue assombrando. Creio que se eu não fizesse isso o estrago seria maior”, completou Luís Carlos Freire.

Humilde, ele acrescenta também que existem outros que fazem o mesmo que ele. Assim, aos pouquinhos, a comunidade científica luta contra a ignorância, restituindo a verdadeira imagem da renomada Nísia Floresta no imaginário da sociedade brasileira.