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Matérias / Personagem

Há 230 anos, morria Mozart, o gênio da música

O compositor tocava e compunha de modo divino, mas, intimamente, era frágil como uma criança

Mariana Sgarioni Publicado em 25/10/2019, às 09h00 - Atualizado em 06/12/2021, às 11h14

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Retrato póstumo de Mozart, feito em 1819 - Crédito: Wikimedia Commons
Retrato póstumo de Mozart, feito em 1819 - Crédito: Wikimedia Commons

Johannes Chrysostomos Wolfgangus Theophilus Mozart era um menino predestinado até no nome. Theophilus vem do grego e quer dizer “amado por Deus”. Mais tarde, esse sobrenome recebeu a versão latina pela qual ficaria eternizado: Amadeus.

O pai de Mozart, Leopold, agradecia aos céus por ter tido um filho tão criativo, dizendo que ele era um “milagre que Deus fez nascer”. No século seguinte, depois que o gênio já tinha revolucionado a música, o grande compositor russo Pyotr Ilyich Tchaikovsky voltou a reconhecer um ar de divindade em Mozart: “Ele nos faz acreditar em Deus. Não deve ser por acaso que um fenômeno dessa natureza vem a este mundo”.

Não é mesmo comum um jovem de 5 anos saber tocar maravilhosamente o piano. Ou um adolescente ser capaz de rabiscar partituras orquestrais completas — e perfeitas — enquanto beberica durante uma festa. Pois bem. O fenômeno operador de milagres em questão era humano, demasiadamente humano.

“Definir Mozart é impossível, mas é justo dizer que sua música é a coleção de trabalhos mais gloriosa já criada por um homem”, afirma o maestro e musicólogo americano David Palmer. “Ele alcança a perfeição em todas as formas musicais. Suas óperas foram as primeiras de uma série de trabalhos dramáticos.

Suas sinfonias foram agraciadas como a mais fina emoção. Todos os grandes compositores foram criados sobre as bases deixadas por ele.” Apesar de ter um talento inato, ele não chegou ao estrelato por uma dádiva celestial, e sim com altas doses de trabalho e estudo.

Leopold Mozart era filho de um encadernador da cidade alemã de Augsburgo. Trabalhava como um dos violinistas do príncipe arcebispo de Salzburgo, na Áustria. Quando tinha 28 anos, casou-se com Anna Maria Pertl, de uma família de músicos. Ela deu à luz sete crianças, mas apenas duas sobreviveram: a menina Maria Anna (apelidada de Nannerl), nascida em 1751, e Wolfgang, como era conhecido o último dos filhos do casal, nascido em Salzburgo em 27 de janeiro de 1756.

Quando Nannerl fez 6 anos, seu pai começou a lhe ensinar piano. Certo dia, depois de muito tempo ouvindo-a praticar, seu irmãozinho subiu na banqueta e começou a tocar alguns acordes. Tinha 3 anos.

Quando completou 4, Leopold achou que o pequeno já estava maduro o suficiente e começou a lhe dar aulas de música. Em 1761, o menino rabiscou sua primeira composição, o Minueto em Sol, com 16 compassos. Mais um ano se passou e o pai resolveu mostrar seus filhos à Europa.

Mozart durante a infância, em retrato feito em 1763 / Crédito: Wikimedia Commons

Leopold pegou as crianças e partiu em uma excursão. Na corte de Viena, o pequeno Wolfgang impressionou os nobres com seus truques, como tocar com o teclado coberto. Um episódio famoso aconteceu quando ele se apresentou pela primeira vez à família imperial da Áustria.

“Wolfgang escorregou num assoalho encerado e a arquiduquesa Maria Antonieta, mais tarde rainha da França, ajudou-o a se levantar. Como agradecimento, ele a pediu em casamento, arrancando risos de todos. Em seguida, Wolfgang pulou no colo da imperatriz, passou os braços em volta de seu pescoço e beijou-a afetuosamente”, escreveu Leopold em uma carta à esposa.

Com o sucesso da primeira excursão, o pai pediu licença do emprego e não parou mais de viajar com os filhos. Wolfgang tinha uma agenda lotada, com concertos e apresentações particulares.

Entre um intervalo e outro, entretanto, chorava, pedia para brincar e dizia que sentia falta da mãe. Se as turnês com o pai tornaram Wolfgang célebre desde cedo, ele nunca conseguiria se livrar do trauma de não ter tido infância — carregaria o pior da imaturidade pelo resto da vida.

Quando voltaram a Salzburgo, em 1766, Wolfgang havia passado três e meio dos seus 10 anos como músico itinerante, sem um lar fixo, muito menos amigos de sua idade. Leopold ensinava ao filho não apenas a música, mas também leitura, matemática e línguas, especialmente o francês, inglês e italiano.

“Ele tinha vontade de aprender tudo em que punha os olhos”, escreveu a irmã Nannerl em suas memórias. “Demonstrava muita habilidade para desenhar e somar, mas, como estava ocupado demais com a música, não podia exibir seus talentos em qualquer outra direção.”

O menino, agora já adolescente, surpreendia cada vez mais. Ao chegar a Roma, aos 14 anos, foi à Capela Sistina para ouvir o famoso Miserere, de Gregório Allegri. A igreja proibia a execução da peça fora de seus domínios, tornando-a ainda mais sagrada.

Mas o incrível Wolfgang ouviu tudo atentamente, voltou ao seu quarto e transcreveu o concerto inteiro de memória (“Agora ele é nosso”, teria dito ao pai). Seu sucesso era tamanho que chegou a receber, na Itália, das mãos do papa Clemente XIV, a Ordem de Cavaleiro da Espora Dourada, uma altíssima honraria para um músico.

Toda essa badalação pela Europa teve um fim quando pai e filho precisaram se fixar em Salzburgo, em 1771. O chefe de Leopold, que lhe concedera uma licença remunerada de anos e anos, havia falecido. Seu sucessor foi o arcebispo Hyeronimus Colloredo, que não permitiu mais nenhuma folga.

Com isso, o gênio adolescente passou a trabalhar para Colloredo, a contragosto, produzindo músicas de igreja. Mesmo insatisfeito, Wolfgang produziu belíssimas obras nesse período, incluindo um quinteto de cordas, seu primeiro concerto para piano e a Sinfonia em Sol Menor.

Mas ele tinha visto muito do mundo para querer se estabelecer em Salzburgo. Aos 21 anos de idade, partiu em viagem: foi com sua mãe rumo a Paris, fazendo apresentações pelo caminho.

A família Mozart / Crédito: Wikimedia Commons

Por carta, durante a viagem do filho, Leopold exigia que ele fosse sempre em busca de dinheiro. Mas Wolfgang demonstrava imaturidade e dispersão. Veja como descreveu ao pai a nobreza austríaca durante um de seus concertos:

“Chegou a duquesa Tapa no Traseiro, a condessa Mijona, sem falar na princesa Monte de Esterco com suas duas filhas, as quais, porém, já são casadas com dois príncipes Pança von Rabo de Porco. Beijo a mão de papai cem mil vezes e abraço a besta da minha irmã com uma ternura de urso”. A falta de senso prático de seu filho deixava Leopold profundamente irritado.

Numa parada em Mannheim, na Alemanha, surgiu uma paixão arrebatadora na vida do jovem. Era Aloysia Weber, uma soprano muito atraente e talentosa de 16 anos, filha de um cantor fracassado (a mãe sustentava a família alugando quartos).

Quando ficou sabendo das intenções de Wolfgang, Leopold ordenou que ele seguisse logo para Paris — o que o filho fez prontamente. Na verdade, Aloysia também não estava lá tão interessada no compositor, que era pequeno, muito magro e pálido.

Chegando à capital francesa, a mãe de Wolfgang, que vinha doente durante a viagem, faleceu. Nesse período, no final dos anos 1770, ele compõe sonatas atormentadas e resolve, então, voltar para a Alemanha à procura da amada.

Bodas de Mozart

Como Aloysia se mantinha alheia às suas investidas, o compositor acabou se interessando por Constanze, a irmã mais nova da moça. E, contrariando o pai pela primeira vez, casou-se com ela em 1782, aos 26 anos. Justificando-se diante de Leopold, Wolfgang escreveu sobre a esposa:

“Não possui inteligência, mas tem bom senso suficiente para lhe permitir cumprir seus deveres de esposa e mãe”. A partir daí, o compositor parece ter cortado o cordão que o amarrava ao pai. Mudou-se com a mulher para Viena e dedicou-se só à música. Nada de viagens prolongadas: apenas trabalhava, regendo e compondo sem parar.

Entre 1782 e 1786, escreveu 15 concertos para piano — dez deles são considerados obras-primas. Nessa mesma época conheceu o músico austríaco Franz Joseph Haydn, 24 anos mais velho, que veio a ser seu grande amigo e substituir, em parte, a falta da figura paterna em sua vida.

“Wolfgang era, exceto por sua música, quase sempre uma criança, e assim permaneceu”, escreveu a irmã Nannerl. “Esta é uma característica do seu lado não conhecido. Ele sempre precisou dos cuidados de um pai, mãe ou guardião: era incapaz de administrar questões financeiras.”

Ao lado de Haydn e da mulher Constanze, outro amigo lhe dava o suporte para a vida prática: o italiano Lorenzo Da Ponte. Com ele, em 1786, compôs As Bodas de Fígaro, uma das maiores comédias líricas de todos os tempos. Lançada primeiramente em Viena, a ópera não causou tanto impacto.

A cidade que realmente se entusiasmou foi Praga, para onde Mozart viajou e regeu a orquestra pessoalmente. Logo o compositor recebeu uma proposta do diretor do teatro local para escrever uma nova ópera para a temporada seguinte. Assim surgiram Don Giovanni, de 1787, e Cosi Fan Tutte, em 1790 — todas em parceria com Da Ponte.

Mozart em 1777, em retrato anônimo / Crédito: Wikimedia Commons

Mozart se firmava como o mais incrível gênio musical que o mundo havia conhecido. Foi o precursor da sinfonia — que, com o alemão Ludwig van Beethoven, se tornaria a forma maior de expressão musical da emergente burguesia. Mas o gênio continuava como uma criança perdida num mundo de adultos.

“Gostava muito de ponche, bebida que o vi tomar goles copiosos. Gostava também de bilhar e muitas partidas joguei com ele, mas sempre terminava perdendo”, escreveu o tenor irlandês Michael Kelly, que participou da primeira montagem de As Bodas de Fígaro.

Vivia de encomendas de músicas e de dar aulas de piano, mas gastava muito jogando e dando festas. Pedia dinheiro emprestado descomedidamente, enquanto Constanze procurava orientá-lo a economizar o pouco que sobrava. Tiveram sete filhos, dos quais apenas dois sobreviveram — como aconteceu com os pais do próprio Mozart.

Quem salvou o compositor da miséria por diversas vezes foi a maçonaria, organização de que fazia parte e homenageava em suas obras — a ópera A Flauta Mágica, de 1791, por exemplo, foi composta usando símbolos maçônicos. Quando seu pai morreu, em 1787, Mozart ficou muito abatido, mas se negou a comparecer ao enterro.

Dizia estar muito atarefado. E estava mesmo no auge de sua produção. Chegou a compor a ópera A Clemência de Tito em 18 dias e aceitou uma encomenda de uma grande missa de réquiem. Mas não teria tempo de terminá-la.

Aos 35 anos, começava a se sentir velho, cansado e com uma certa mania de perseguição. Contou a Constanze que alguém o havia envenenado e que estava compondo o Réquiem para ele mesmo. Esse episódio serviu de argumento para a crença de que ele teria sido envenenado pelo músico italiano Antonio Salieri, retratado como seu inimigo no filme Amadeus.

Mas não houve assassinato nenhum. Em 20 de novembro de 1791, Mozart caiu de cama com febre, náuseas e dores nos braços e pernas. O diagnóstico era febre reumática. Durante semanas, ele permaneceu moribundo, sofrendo de terríveis dores. Pediu a dois alunos que terminassem o Réquiem — para garantir que Constanze recebesse os honorários.

Na manhã de 5 de dezembro de 1791, aos 35 anos, morria o garoto-prodígio, deixando nada menos que 675 obras. Seu cadáver, nu, foi colocado num saco de linho e baixado numa sepultura sem lápide, no cemitério São Marcos, em Viena.

“Seu último movimento”, escreveu Sophie, irmã de Constanze, “foi uma tentativa de expressar com a boca os tambores de Réquiem. Ainda posso ouvi-lo”. Mais de duzentos anos depois, seus tambores ainda não silenciaram.


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