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Matérias / Civilizações

Grand Tour: conheça o impressionante mochilão do século 18

Aristocratas e burgueses adotaram um hábito refinado que equivalia na época ao nosso intercâmbio

Zeca Gutierres Publicado em 16/08/2020, às 08h00

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O turismo na Antiguidade - Wikimedia Commons
O turismo na Antiguidade - Wikimedia Commons

Poeta e naturalista, Johann Wolfgang von Goethe decidiu que comemoraria seus 37 anos de forma diferente. Em vez de festejar com os amigos, pegou sua mochila de pele de texugo e colocou algumas peças de roupas, poucos mantimentos, manuscritos sobre arte e livros de História e deixou para trás Karlsbad, na Alemanha, sua cidade natal.

Naquele 1786, ele corria atrás de um sonho, comum aos homens ricos de sua época: fazer uma viagem que acabaria em Roma, a capital da Itália, e, assim, tornar-se um sujeito mais culto. Viajar por prazer e em busca de conhecimento era moda na Europa do século 18.

A ideia não tinha muito de nova: fora lançada fazia mais de 100 anos. Mas a aventura, batizada de Grand Tour teve seu apogeu anos depois. O destino preferencial dos viajantes, geralmente jovens aristocratas e burgueses que ganhavam o passeio dos pais, eram os territórios onde floresceu um dos maiores impérios do mundo, o Romano. Uma aventura que equivalia na época ao nosso intercâmbio.

Goethe já era um homem de sucesso quando resolveu fazer o Grand Tour. Seu livro O Sofrimento do Jovem Werther tinha sido lançado fazia 12 anos e era considerado um dos pilares do Romantismo.

Goethe / Crédito: Wikimedia Commons

Mesmo assim, o poeta (que era também arquiteto, conselheiro de Estado e ministro do duque da Saxônia) dedicou quase dois anos de sua vida à viagem. Seu interesse principal era estudar obras de arte e mergulhar no estilo clássico – termo, aliás, que popularizou com suas anotações sobre a viagem à Itália. A viagem também proporcionaria contato com a arquitetura e a arte renascentistas.

Mais que diploma

Embora Goethe fosse alemão, a maior parte das pessoas que participavam do Grand Tour no século 18 era formada pela elite britânica (qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência). O fato, segundo Valéria Salgueiro, historiadora e autora de um estudo sobre o Grand Tour, pode ser explicado pelos bons ventos econômicos que sopravam na Inglaterra: a nação liderava o mundo no comércio e por lá começava a Revolução Industrial. Os ingleses estavam, portanto, cheios de dinheiro e loucos para gastá-lo.

As primeiras sementes do Grand Tour haviam sido lançadas no país em 1611. O viajante Thomas Coryat viajou para a Itália a lazer e relatou sua experiência em Coryat’s Crudities (algo como “O primitivismo de Coryat”) – Veneza, por exemplo, era para o autor a terra da “opulência”.

Mais tarde, em 1670, outro inglês, Richard Lassels, cunhou a expressão “Grand Tour” em seu livro An Italian Voyage (“Uma viagem italiana”), para descrever esse tipo de aventura. A ideia de que viajar era uma das melhores formas de adquirir conhecimento crescia cada vez mais.

Cem anos depois, o conceito já estava completamente formado na cabeça dos britânicos. Conquistar o mundo antigo passou, assim, a ser um feito para o currículo de recém-saídos das universidades de Cambridge e Oxford. Viajar era uma espécie de obrigação para expandir a mente. Muito mais que passar horas lendo sobre História em bibliotecas, os ingleses queriam agora observar a História.

Além disso, indo para o exterior, o sujeito ainda tinha a oportunidade de aprender outras línguas. “Segundo as leis dos costumes, e provavelmente da razão, a viagem ao exterior completa a educação de um cavalheiro inglês”, escreveu Edward Gibbon, historiador e autor do clássico Declínio e Queda do Império Romano – ele próprio um grand tourist, que passou 22 meses com o pé na estrada.

A empreitada, como é de supor, não era para qualquer bolso. Por isso, no começo, quem o fazia era apenas gente muito rica, da nobreza ou filhos de comerciantes e homens de negócios. Mais para o fim do século 18, as universidades inglesas passaram a dar apoio financeiro para os estudantes que ainda a frequentavam.

Para o universitário ficavam as despesas de alimentação e com presentes ou arte, mas a instituição bancava os custos de transporte e acomodação. No século 19, a própria rainha Vitória financiou algumas viagens para seus súditos.

A rota do grand tourist começava na França e incluía preferencialmente a Itália, em viagens que duravam em média um ano e meio. Mas havia uma opção de “pacote econômico” para os menos abastados: ficar apenas na metrópole parisiense ou nos Países Baixos, cujo acesso era mais fácil e, portanto, de custo acessível. Para esses aventureiros, o tour durava cerca de seis meses. Grande parte da empreitada, aliás, dava-se no próprio trajeto: calcula-se que cada 20 quilômetros constituíam um dia de viagem.

Cuidados especiais

O caminho mais apropriado, claro, dependia do país de origem. No roteiro de um alemão como Goethe, a opção era atravessar os Alpes. Ali, os grand tourists se arriscavam por trilhas cheias de obstáculos, rios revoltos e difíceis terrenos de granito e calcário, sempre acompanhados por temperaturas baixíssimas (que chegavam a 20 graus negativos nos meses de inverno) e, claro, do perigo das grandes avalanches. Embora não haja registro preciso, sabe-se que muitos viajantes morreram na tentativa.

Para os ingleses, a aventura começava logo na primeira parte da viagem, a travessia do canal da Mancha. Os ventos, as ondas grandes e os ancoradouros precários provocavam náuseas, vômitos e até ferimentos – que costumavam ocorrer quando os viajantes trocavam as grandes embarcações por barcos menores para atracar, por causa dos pequenos cais que existiam.

Da França, os turistas seguiam para a Itália. Para chegar a Lion, a porta de entrada mais comum, as opções eram também atravessar os Alpes (e enfrentar as passagens íngremes e estreitas no lombo de mulas) ou encarar o mar Mediterrâneo (com o risco de temporais e piratas).

O transporte disponível na época não tinha nada de confortável. Ou o viajante chacoalhava sobre animais de carga ou pulava dentro de carroças ou carruagens duras que seguiam por estradas precárias, de terra ou pedras. Em determinados trechos da viagem, os turistas eram levados em liteiras, espécies de cadeiras carregadas por duas pessoas. O melhor amigo do viajante solitário eram seu postilhão (condutor e guia turístico) e alguns ajudantes contratados no próprio caminho, que se revezavam para carregar as bagagens nos trechos mais difíceis.

No auge do Grand Tour, não havia barcos ou trens a vapor (eles foram inventados só no fim do século 18) e, por água, o trajeto era feito em barcos a vela. Segundo Valéria Salgueiro, não era raro os jovens turistas terem de cruzar rios a pé, já que não existiam pontes em muitas das rotas.

Ou enfrentar imprevistos como o que Goethe e sua embarcação encararam em Torbole, a caminho de Bardolino, já na Itália. Pequena e lotada de forasteiros, ela foi surpreendida por um forte vento contrário que fez a viagem atrasar alguns dias. “Quando se viaja por água, não se pode dizer que se chegará tal dia a este ou aquele lugar”, registrou o poeta alemão sobre a viagem em seu diário.

Depois de tanta canseira, uma boa noite de sono caía bem. Havia albergues públicos e hospedarias particulares honestas. Mas muitas vezes o viajante tinha de se submeter a lugares desconfortáveis e imundos. Outra opção era dormir em conventos jesuítas, que, além de confortáveis, guardavam muita arte, como belos afrescos. Estar preparado para tudo era, porém, requisito básico.

“As pessoas levam aqui uma vida despreocupada de conto de fadas. As portas não têm fechadura”, anotou o exigente Goethe sobre uma de suas paradas na Itália. “As diferentes moedas, os preços, as pousadas ruins, tudo isso constitui uma amolação cotidiana.”

Estátua como suvenir

O culto ao estilo clássico, presente na arquitetura e na arte do antigo Império Romano, ganhara força no século 18 por causa das novas escavações que estavam sendo feitas na Itália, principalmente em Pompéia e Herculano – que passaram a ser paradas obrigatórias do Grand Tour. Sir Humphry Davy, presidente da Royal Society of London, por exemplo, visitou as cidades e encantou-se. Dedicou-se à análise química das cores usadas pelos antigos e publicou seus estudos em 1815.

Debaixo das cinzas da erupção do Vesúvio do ano de 79 saíram objetos jamais vistos pelo europeu da época. Estátuas de bronze, peças de cerâmica, joias, móveis e afrescos passaram a invadir o imaginário de artistas. Eles, por sua vez, fizeram seu papel de reinterpretar o passado na moda, decoração, arquitetura. Entre outras tendências, a louça etrusca inspirou os artesãos, os arquitetos reproduziram nas fachadas das casas os pilares do Império Romano e até pedaços de colunas (de mentira, claro) foram parar nos jardins dos nobres e burgueses.

Mas não era só como inspiração que as peças clássicas entravam na vida dos grand tourists. Os viajantes que iam até a Itália tinham como costume levar um pedaço da aventura para casa. Literalmente. Era comum eles retornarem para seus países com objetos como utensílios cotidianos, placas e até estátuas com milênios de idade sem peso algum na consciência – na época, não acreditavam estar fazendo nada de errado. “Enchemos os bolsos de pequenas placas de granito, pórfiro e mármore”, anotou Goethe, sem ressentimento, sobre os pedaços do palácio do imperador romano Nero que pegou para si.

Depois de mais de 12 meses, o alemão começou a fazer o caminho de volta da Sicília para o ducado de Weimar. Em 1788, quatro meses depois de desembarcar de seu Grand Tour, conheceu a jovem Christiane Vulpius, de 23 anos, com quem teve uma duradoura relação – e um casamento, após 18 anos juntos. Naquele tempo, Johann Wolfgang von Goethe provavelmente não fazia a menor ideia de que sua viagem pela Itália seria um dos pilares para o futuro turismo em massa.