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Matérias / Guerra da Crimeia

Guerra da Crimeia: um lembrete para o mundo do quão perigosas e fúteis são as guerras

A guerra já foi considerada uma das maiores futilidades do século 19

Ricardo Lobato, Colunista Publicado em 19/03/2022, às 06h00

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A Guerra da Crimeia foi o primeiro conflito travado após surgir a fotografia - Roger Fenton
A Guerra da Crimeia foi o primeiro conflito travado após surgir a fotografia - Roger Fenton

O tema do nosso artigo deste mês é, sim, a guerra na Ucrânia (ou pelo menos no que hoje é o território da Ucrânia), mas uma guerra travada há muito tempo. Os protagonistas não são democracias sociais e presidentes, mas vastos impérios, reis e imperadores. O conflito do qual falamos é a Guerra da Crimeia.

Com exceção da OTAN, que nasceria pouco mais de 80 anos depois; e dos EUA, que mais se preocupavam com seu “destino manifesto” e ainda não olhavam para o lado europeu do Atlântico, muitos dos atuais protagonistas são os antecessores do que vemos hoje envolvidos em um intrincado (e perigoso) jogo de poder na Ucrânia e nas águas do Mar Negro.

Tudo começa com uma disputa de Impérios. No século 19, a Europa (e boa parte do mundo então sob seu domínio) era regido por um sistema chamado de “Concerto Europeu”. Esse sistema fora estabelecido pelo Congresso de Viena (1814-1815) e se baseava em um equilíbrio de poder no continente após o turbilhão causado pelos anos de domínio napoleônico.

Com muitas nações fortes perto umas das outras, e de modo a evitar outra grande guerra e preservar as fronteiras nacionais, fora estabelecido o sistema de “concerto”, em que os países se comprometiam a não ampliar seus territórios no continente – fora da Europa era um pouco diferente.

Os princípios que regiam o concerto funcionaram por 30 anos, mas foram abalados, com a “Primavera dos Povos”, em 1848. Embora as fronteiras tenham sido restabelecidas após as Revoluções, um precedente foi criado para que as grandes potências voltassem a brigar por territórios dentro da Europa.

Como a corda “sempre arrebenta do lado mais fraco”, o alvo da cobiça das potências imperiais se voltou para os territórios europeus do Império Turco-Otomano. O velho império vinha cambaleando há alguns séculos, mas mantinha firme seu pé na Europa.

Para ingleses e franceses, a relação com os otomanos era dual. Por um lado, o islamismo dos sultões era visto como uma ameaça histórica para a cristandade. Mas, por outro, o império que se estendia das areias do Saara até as portas do Mar Negro era um importante contrapeso para a crescente influência russa nos Balcãs.

Os czares já haviam se autointitulado “os protetores dos cristãos ortodoxos em terras otomanas”, o que aumentava consideravelmente sua influência fora das fronteiras russas.

Para os otomanos, o Império Russo era uma ameaça para sua própria existência, enquanto os britânicos e franceses tinham motivações próprias para temer a Rússia. É importante ter em mente que esses eventos se dão na chamada “Era dos Impérios”, um tempo em que as fronteiras nacionais iam muito além dos próprios países.

Justamente por isso, a Inglaterra temia uma invasão russa da Índia Britânica
via Afeganistão – um confronto com a Turquia manteria os russos ocupados e os afastaria da “Joia mais brilhante da Coroa”.

Já os franceses, governados por Napoleão III, ainda tinham o orgulho nacional ferido desde a fatídica campanha de Napoleão Bonaparte em terras russas em 1812.

Fato é que, independentemente das motivações, em outubro de 1853 a Turquia declarou guerra à Rússia – que havia ocupado a península da Crimeia em julho. Ingleses e franceses até tentaram uma solução diplomática, mas, vendo que a caneta dera
lugar à espada, aliaram-se aos turcos.

Mais tarde o Reino da Sardenha juntou-se à luta contra os russos. Os piemonteses queriam garantir o apoio dos franceses para sua luta em casa para unificar a Itália, mas essa é outra história.

Sobre a guerra em si, ela já foi classificada como “uma das maiores futilidades do século 19”. Mas há elementos curiosos a seu respeito. Um deles é o fato de ter sido a primeira guerra travada depois do surgimento da fotografia.

Até então, os cidadãos comuns tomavam conhecimento do que acontecia nos campos de batalha apenas por meio de pinturas ou descrições. Com as fotos retratando as condições lastimáveis no front, a opinião pública começou a contar mais antes de se mandar os soldados para a luta.

E justamente por conta das condições sanitárias dos hospitais de campanha retratados em algumas das fotos, uma jovem inglesa chamada Florence Nightingale ganhou proeminência. A precursora da enfermagem moderna convenceu as autoridades militares de que a falta de higiene ao tratar os feridos estava matando mais soldados do que o inimigo.

Ela conseguiu que o Exército Britânico criasse um corpo especializado de enfermeiras, fazendo com que as mortes em decorrência de infecções despencassem a quase zero. Para os russos, o conflito novamente mostrou que precisam sempre estar prontos para defender seu país.

A Guerra da Crimeia, que findou em março de 1856, influenciou os militares americanos dos dois lados da Guerra Civil (1861-1865) e até os militares brasileiros na Guerra do Paraguai (1864-1870). Depois dela, o continente europeu se viu envolto em uma nova série de disputas.

A Crimeia pode ser considerada um intermediário entre as Guerras Napoleônicas e a Primeira Guerra Mundial. Suas causas foram menores, mas suas implicações políticas selaram o futuro da Europa. Um lembrete para o mundo do quão perigosas e fúteis são as guerras.


Ricardo Lobato é Sociólogo e Mestre em economia pela UNB, Oficial da Reserva do Exército brasileiro e Consultor-chefe de Política e estratégia da Equibrium — Consultoria, Assessoria e Pesquisa.


*Esse texto não reflete necessariamente a opinião da Aventuras na História