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Matérias / Alemanha

Alemanha reunificada: Há exatos 33 anos acontecia a Queda do Muro de Berlim

A queda do obstáculo representou não só o término da Guerra Fria, mas também um marco notório associado ao "fim do comunismo"

Alexandre Carvalho Publicado em 09/11/2019, às 00h00 - Atualizado às 10h55

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Manifestantes durante a noite que derrubou o muro da vergonha - Getty Images
Manifestantes durante a noite que derrubou o muro da vergonha - Getty Images

Uma comédia de erros. Sim, foi exatamente uma incrível falha de comunicação que desencadeou um dos eventos mais transformadores da história contemporânea — o marco mais notório do que o planeta viria a associar ao “fim do comunismo”: a queda do Muro de Berlim, que completa exatos 33 anos nesta quarta-feira, 9 de novembro.

Antes de chegarmos a essa trapalhada, nossa viagem no tempo desembarca no início de novembro de 1989. Foi quando Alexanderplatz, a maior praça da então Berlim Oriental, estava tomada por centenas de milhares de pessoas. Gente que protestava contra o governo, pedindo maiores liberdades individuais — especialmente a autorização para viajar para o outro lado do muro sem tantos impedimentos. Sem risco de vida também.

Uma multidão protestando contra o governo autoritário, numa Alemanha Oriental intolerante a quaisquer manifestações populares? Sim. Já podia. Na época, os países dominados pela União Soviética começavam a usufruir de uma relativa liberdade de expressão, consequência da política de abertura e transparência — glasnost — implantada pelo homem forte da URSS na época, Mikhail Gorbachev.

Uma flexibilização que era um aceno aos países ricos do Ocidente, de quem os soviéticos esperavam ajuda financeira para ontem — porque a crise era séria no gigante do Leste. Diante das prateleiras vazias nos supermercados e uma população que mergulhava no alcoolismo pela falta de perspectivas, Gorbachev constatou que o papel de arquirrival dos Estados Unidos e da Europa não ajudava em nada a situação de seu povo.

E então decidiu entrar para a História como um reformista ousado — aliás, para terror da linha-dura do Partido Comunista. Além da glasnost, o político lançou uma reforma que adotou elementos da economia de mercado (capitalismo, em bom português) dentro do sistema estatal em que o comando central soviético antes determinava tudo. Era a perestroika.

Pela primeira vez, desde 1928, a lei permitiu que um cidadão qualquer fosse dono do próprio negócio. Era um claro estímulo para a formação de um setor de economia privada na União — ainda que a maioria dos novos empreendedores não fizesse ideia de como começar.

A transição, afinal, foi muito mais complexa do que Gorbachev sonhava — não se moderniza um país burocrático e totalitário da noite para o dia. Embora a abertura política e econômica tenha sido recebida com entusiasmo por boa parte da população, a força do regime estava justamente no seu perfil repressor.

De modo que tanto a glasnost quanto a perestroika foram decisivas para o colapso soviético. Uma desintegração que resultou na independência das diversas repúblicas que formavam a União — e que foi rapidamente aproveitada pelos países sob o cabresto de Moscou, que até então não podiam dar um espirro sem a aprovação de seus dominadores.

Era o caso dos alemães orientais. A reunificação das duas Alemanhas, cujo estopim foi
a queda do Muro de Berlim, marcou o fim da União Soviética como superpotência. E isso nos leva de volta aos acontecimentos do início deste texto: manifestações pedindo liberdade para atravessar o muro, e uma resposta do governo tão confusa que acabou pisando no acelerador da História.

É para já

Entontecidas com a avalanche que atropelava o ritmo natural das mudanças no Bloco Soviético, com as repúblicas que queriam independência da União (principalmente os Estados Bálticos) e ainda sem saber lidar com povo reclamando na rua, as autoridades da Alemanha Oriental queimavam numa panela de pressão naquele fim de 1989.

Precisavam acalmar a situação cedendo em algum ponto às exigências de maior liberdade — algo sem tantos riscos, já que a própria União Soviética seguia nesse rumo.

Assim, jovens burocratas do Partido Comunista local foram encarregados de mexer na redação da lei que tratava das idas e vindas através do Muro de Berlim. Adicionaram a permissão para “viagens privadas ao exterior” e, ao mesmo tempo, excluíram o termo restritivo “temporárias” para essas jornadas.

A noite histórica / Crédito: Getty Images

Na prática, era uma tentativa de acalmar os ânimos, ainda sem nenhum efeito prático, porque toda uma nova logística de vaivéns precisaria ser constituída em torno dessa mudança teórica. Além disso, numa estrutura paralisante como a burocracia da Alemanha Oriental, era difícil saber quando a nova lei iria valer de fato... Talvez nunca.

Talvez em alguns anos ou meses. Só que uma confusão — até pequena em si mesma, mas de consequências do tamanho da Sibéria — precipitou uma nova ordem mundial a partir da divulgação desse documento. Justamente nessa época estava acontecendo uma convenção importante do Partido Comunista local, que estava tendo extensa cobertura jornalística.

De alguma maneira, um folder com o documento que abordava a mudança na lei acabou nas mãos do porta-voz do governo, Günter Schabowski, que estava se dirigindo para uma coletiva de imprensa, em 9 de novembro, onde foi tratar de diversos assuntos. Foi tudo tão repentino que ele não teve tempo de passar os olhos naquele folder.

Então, sem ter prévio conhecimento do conteúdo, o porta-voz compartilhou de bate-pronto com a imprensa aquilo que estava lendo ao vivo, pela primeira vez.

As pessoas agora podem solicitar viagens ao exterior sem pré-requisitos, condições especiais ou motivos de família”, disse aos repórteres, tão intrigados quanto ele mesmo com a novidade.

“As permissões iniciarão sem demora.” A sala de imprensa ficou aturdida. Era uma liberdade impensável na Alemanha sob jugo soviético, mesmo nesse cenário de abertura gradual. Ninguém parecia acreditar que fosse verdade, mas a expressão “sem demora não parecia muito clara... até que um jornalista italiano se levantou e disparou a pergunta que todos queriam ouvir: “Mas quando isso vai ter efeito prático?”. Schabowski
não sabia.

Nenhum superior seu havia lhe dado qualquer orientação a respeito. Mas o porta-voz não quis passar a imagem de que ignorava completamente o que estava falando, e então
respondeu com a sua primeira impressão a respeito: “Pelo que eu entendi, tem efeito imediato”. Não tinha. Mas teve.

Manifestantes durante o ato / Crédito: Getty Images

Em poucos minutos, antes que o porta-voz pudesse confirmar a informação com a cúpula do governo, os telejornais da Alemanha Ocidental já anunciavam para toda a população: o muro está aberto. Pela primeira vez, desde 1961. E não houve censura à imprensa que impedisse a notícia de chegar ao lado oriental. Imediatamente, alemães capitalistas e comunistas correram aos check-points, ansiosos pela chance de presenciar um momento histórico, de reencontrar amigos ou parentes — ou pela mais pura curiosidade (como seria o outro lado?).

Queriam ser os primeiros em quase 30 anos a atravessar esse portal que era uma cicatriz na cidade dividida. Pelo menos os primeiros a fazer isso sem que fosse por um túnel clandestino ou tomando tiros. Porque, nas três décadas anteriores, aquele obstáculo — uma divisória que, de verdade, era bem mais que um muro — impunha-se como um símbolo da repressão com que a “Alemanha soviética” tratava seus cidadãos.

Era o peso do totalitarismo, a venda nos olhos dos que não podiam ser hipnotizados pelas vantagens do lado ocidental. E sobretudo o medo — calando, amarrando e esmagando a liberdade individual. Uma história que havia começado 28 anos antes, justamente para impedir que os moradores do lado comunista de Berlim fossem contaminados com os deleites — e as fantasias — do modo de vida ocidental.

Um impedimento à força bruta, mimetizando o modus operandi com que a União Soviética tratava quem desejasse trocar a ditadura do povo pelos perfumes da democracia.

Ninguém entra

A história do Muro de Berlim começa muito antes de sua construção. Depois que os nazistas se renderam, no fim da Segunda Guerra Mundial, as potências vencedoras logo tomaram providências para que a Alemanha não esperasse uma nova oportunidade para reerguer seu Exército — e investir contra seus inimigos. Afinal, os Aliados já haviam visto esse filme.

População no Muro de Berlim/Crédito: Getty Images

O antigo Tratado de Versalhes,  que após a Primeira Guerra tentou restringir
o poderio militar dos alemães e cobrar uma indenização impagável, só serviu para inflamar uma indignação em todo o país, abrindo caminho para a ascensão de um populista sociopata como Hitler. O controle agora precisava ser mais duro.

O Acordo de Potsdam, de 1945, foi muito além de impor aos alemães sua desmilitarização, democratização e de varrer quaisquer resquícios de nazismo no país. Para garantir que essas diretrizes virassem a realidade de uma nova nação pacífica, ficou estabelecido também que a Alemanha seria ocupada pelos vencedores do conflito.

O país então foi dividido em quatro zonas: americanos, britânicos, franceses e soviéticos ganharam uma porção de terra para administrar. Cada um a seu modo. Mas, já em 1946, os ocidentais dessa turma se uniram e passaram o controle de suas áreas de influência aos próprios alemães — o que resultou, em 1949, na fundação da República Federal Alemã... a Alemanha Ocidental.

Um país capitalista, de ascendência americana, que contou com bilhões de dólares do Plano Marshall, dos EUA, para garantir sua reconstrução — e evitar que o país fosse absorvido pelo avanço do socialismo na Europa.

Do outro lado, a resposta veio no mesmo ano, quando a zona sob influência soviética virou um país também: a República Democrática Alemã, ou Alemanha Oriental. Mas e Berlim? A mesma Conferência de Potsdam estabeleceu que, por sua maior importância em relação às outras cidades, Berlim também seria dividida em duas: uma parte da cidade sob controle soviético, comunista, e outra sob influência americana, capitalista.

E essa divisão acabou resultando num estabelecimento de fronteiras que confunde muita gente até hoje. Dizer que a construção posterior do Muro de Berlim viria a “separar a Alemanha em duas” é um grande engano. Porque Berlim ficava completamente dentro do lado comunista.

Assim, o que aconteceu é que, em pleno território soviético, a cidade tinha uma “ilha” capitalista, ligada aos Estados Unidos e à Europa Ocidental — e uma outra metade integrada àquele entorno socialista. Duas metades que, apesar de tão próximas, não poderiam emergir de maneira mais contrastante.

Bombada pelos recursos faraônicos do Plano Marshall, a parte capitalista de Berlim floresceu. A economia não só se recuperou como se desenvolveu na direção de se tornar uma das principais forças europeias. E aqui aconteceu o óbvio: a mão de obra especializada do lado comunista começou a migrar para a parte capitalista da cidade, atrás dos empregos com melhores salários.

Até refugiados de outros países do Leste Europeu passaram a procurar abrigo em Berlim Ocidental. Um êxodo que era um vexame para os comunistas — e que eles decidiram interromper de maneira nada sutil: construindo o muro infame. Ninguém mais poderia chegar ao oásis capitalista sem ter de enfrentar um labirinto burocrático ou diplomático.

A complexidade desse labirinto era tamanha que amigos e parentes, residentes dos lados opostos, deixaram de se ver por décadas. O governo da Alemanha Oriental, sob direcionamento do comando soviético, cercou toda a parte ocidental com o muro intransponível. A ideia pode ter sido isolar a área capitalista, que de fato ficou ilhada em território hostil. Mas, na prática, foram os alemães orientais que acabaram sofrendo os revezes dessa separação.

Habitantes de uma nação atrasada tecnologicamente, que amiúde sofria com falta dos produtos mais básicos — comida —, e reprimidos em suas liberdades individuais, eram os berlinenses orientais que se sentiam prisioneiros de seu próprio governo. Pelo menos até que as mudanças de Mikhail Gorbachev virassem o Leste Europeu de ponta-cabeça.

O Moisés alemão

E então voltamos àquela noite inimaginável de novembro de 1989. No momento em que milhares de alemães orientais se dirigiram aos pontos de travessia, loucos para ver se o anúncio de abertura do muro era para valer, encontraram apenas policiais atônitos.

Ninguém, entre os vigias, tinha recebido orientação para liberar a passagem. Mas, no meio desses guardas confusos, um teve um papel histórico de maior destaque: o tenente-coronel Harald Jäger, que na época trabalhava num posto fronteiriço do norte de Berlim Oriental — um oficial ligado à Stasi, uma versão da República Democrática Alemã para a KGB.

Jäger estava calmamente fazendo um lanche no refeitório do posto quando viu na TV que a passagem pelo muro estava liberada. Na hora, não deu muita bola para a notícia — tinha certeza de que os jornalistas estavam equivocados —, mas ligou para seu superior mesmo assim, só para ter certeza. A pergunta parecia tão estapafúrdia que o oficial ouviu uma bronca do outro lado da linha, e a confirmação de que tudo deveria seguir como sempre foi.

Só faltava combinar com os russos — ou melhor, com a população alemã. Em poucas horas, o ponto de travessia em que o policial trabalhava ficou tomado por um oceano de gente, aos gritos de “nos deixem sair”.

Assustado com a multidão, que se espremia no local, Jäger voltou a pedir orientações a seu superior, que também não sabia de nada, mas recomendou um paliativo: “Deixe apenas os mais exaltados passarem” — no dia seguinte, eles recuperariam o controle da situação.

Mas não foi isso que aconteceu. A passagem de uns poucos inflamou os ânimos da multidão, e o tenente-coronel constatou o risco de ter gente pisoteada, esmagada... ou mesmo morta pela bala de algum vigia mais nervoso com a pressão. Já eram 23h30 quando Harald Jäger — pela primeira vez sem ordens que decidissem por ele — resolveu que iria tomar uma iniciativa por sua própria conta e risco.

Ainda que ela lhe custasse anos de prisão. “Abram a barreira”, disse a seus subalternos. Diante do comando inédito, os vigias ficaram paralisados. “Vamos, abram a barreira”, repetiu o tenente- coronel.

Os guardas finalmente saíram de seu transe e permitiram a passagem da multidão. Era uma primeira vez para a grande maioria. Poucos acreditavam que estavam passando pelo muro, naquela madrugada fria, sem tomar um tiro da polícia nas costas. Mas o receio era suplantado, em grande medida, pela euforia.

Um tipo de arrebatamento que só a liberdade é capaz de proporcionar. O tenente-coronel Harald Jäger foi tão surpreendido pelo furacão dos acontecimentos que, naquela hora, não chegou a medir com a régua da História a grandeza de sua iniciativa. Tinha sido dele a voz que anunciava — com a abertura dos portões do Muro de Berlim — o fim da Guerra Fria.

Meu único mérito é que tudo aconteceu sem que fosse preciso derramar uma só gota de sangue”, diria anos depois. Sob as circunstâncias, ainda um feito gigantesco — adornado pela humildade desse herói contemporâneo.