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Matérias / Amazônia

A tentativa frustrada de Henry Ford na criação de Fordlândia

Há 156 anos, nascia o engenheiro que inovou na produção de automóveis e quis se aventurar pelos trópicos

Redação Publicado em 07/10/2020, às 08h00

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Henry Ford - Reprodução
Henry Ford - Reprodução

Era 30 de julho de 1863 quando nascia Henry Ford, engenheiro que revolucionou a indústria automobilística dos EUA com sua linha de produção conhecida como Fordismo.

Sua empresa, a Ford Motors Company, inaugurara um método inovador para produzir veículos, em que funcionários especializados ficavam em fila e repetiam continuamente a mesma tarefa em diferentes automóveis, que se locomoviam até eles em esteiras. Sua linha de produção possibilitava que os produtos saíssem em grande quantidade, de forma veloz e a baixo custo.

Dessa maneira o Ford T, marca criada em 1908 e que durou 19 anos, era um grande sucesso. Foram 15 milhões de automóveis produzidos, marca só superada pelo Fusca, que vendeu 307 unidades a mais. Em 1921, mais da metade dos carros que entravam em circulação no mundo era da marca Ford.

Ford modelo T, primeiro veículo produzido em massa / Crédito: Reprodução

Os carros da linha de produção de Ford, claro, exigiam diversas peças feitas de borracha. Só entre 1920 e 1922, a quantidade de matéria-prima necessária para fabricação de pneus saltou de 19 mil para 67 mil toneladas, segundo o livro Grande Capital e Agricultura na Amazônia – A Experiência Ford no Tapajós, de Francisco de Assis Costa.

A borracha, obtida do látex extraído de seringueiras plantadas na Ásia, era monopólio inglês. E Ford tentou driblá-lo. Aproveitou um estudo feito havia quatro anos pelo governo americano sobre a possibilidade de obter látex no Brasil, chamado American Rubber Mission, e resolveu criar um braço amazônico para sua companhia.

A ideia megalomaníaca incluía a construção de duas cidades à beira do rio Tapajós, no Pará, mas foi marcada por uma sucessão de erros que culminaram em 18 anos de trabalho jogados fora e um prejuízo de 9 milhões de dólares da época, mais ou menos 130 milhões de reais atuais.

O fracasso começou na largada, já na obtenção do terreno. Sabendo do interesse americano por terras amazônicas, o cafeicultor Jorge Dumont Villares ganhou do governo do Pará áreas em sete pontos diferentes. Ao recepcionar a comitiva de funcionários da Ford enviados ao estado, mostrou apenas seus próprios terrenos ao longo do rio Tapajós.

A concessão de 1 milhão de hectares (equivalente ao tamanho da cidade de Goiânia) poderia ter sido obtida gratuitamente direto com o governo, assim como Villares havia conseguido. Mas Henry Ford pagou 125 mil dólares ao cafeicultor. A Fordlândia nascia, dessa forma, de um golpe dado pelo brasileiro no americano em cima de um terreno montanhoso – e ainda por cima impróprio para seringueiras.

Uma cidade foi erguida no meio da floresta amazônica. Os navios Lake Ormoc e Lake Farge trouxeram dos Estados Unidos os materiais necessários para a construção do povoado, como madeira, telhas e as próprias mudas das seringueiras. Uma das embarcações foi preparada para suprir temporariamente a aldeia de energia e servir de hospital. A floresta começou a ser derrubada em 1928, as casas foram construídas e as árvores, plantadas.

Grande parte da terra foi ocupada pelos seringais, divididos milimetricamente, segundo Elaine Lourenço, professora de História no Centro Universitário Nove de Julho e autora da tese Americanos e Caboclos: Encontros e Desencontros em Fordlândia e Belterra/PA.

Primeiros trabalhadores de Fordlândia com o funcionário Jorge Villares / Crédito: Reprodução

Gente de toda parte foi procurar emprego em Fordlândia. O alvoroço repercutia no Rio de Janeiro, e o jornal O País registrou: “Todos são admitidos nas fábricas, exceto os dementes e loucos”. A verdade era que o recrutamento de novos trabalhadores já sofria de um problema que perseguiu a empresa nos 18 anos seguintes: a falta de mão-de-obra. Os anúncios nos jornais chamavam gente interessada, fosse especializada ou não, mas o exame médico barrava metade dos que ali apareciam por não terem boas condições de saúde.

Mesmo assim, o negócio foi tomando forma. A cidade tinha um dos melhores hospitais da região e a Vila Americana, composta pelas casas dos administradores vindos dos Estados Unidos, era de alto nível: possuía gramados para golfe, quadras de tênis, piscina, campos de futebol, clube e cinema. Os funcionários ficavam em vilas bem mais modestas.

O salário não era de se reclamar: bem maior que o de outras cidades da região, era pago a cada 15 dias e em dinheiro, prática pouco comum por aquelas bandas. Se por um lado o bolso estava cheio, por outro a paciência deles se esgotava. A cidade americana seguia regras americanas. Havia relógios de ponto por toda parte. Uma sirene dividia o dia em turnos e marcava os horários de descanso. Os caboclos, acostumados a acompanhar o tempo conforme o ciclo do sol, estranharam. Para completar, a Fordlândia proibia bebida alcoólica em seus limites.

A rigidez de costumes fazia com que a cidade deixasse de ser um lugar interessante para morar. A rotatividade entre os trabalhadores era, assim, muito grande. Mas, para os que lá ficavam, havia formas de diversão às escondidas, como a cachaça contrabandeada (vinha dentro de melancias pelo rio) e as festinhas animadas na chamada “ilha dos inocentes”, do outro lado do Tapajós – que de ilha e de inocente não tinha nada. Lá, bebida e prazer eram liberados. Para isso, prostitutas chegavam de Santarém e de Belém.

Na mesma época, a plantação de seringueiras foi atacada pelo mal-das-folhas, fungo que reduzia a produção de látex e acabava até por matar a árvore. Estudos anteriores à implantação de Fordlândia indicavam que a floresta era capaz de proteger a árvore dessa praga, mas isso não acontecera no local. “Eles plantaram as árvores como se fossem eucaliptos, bem diferente da estrutura de uma floresta”, afirma Marinho Andrade, produtor do documentário Fordlândia.

Fordlândia, a enrascada de Henry Ford / Crédito: Reprodução

O ritmo da implantação dos seringais também era baixo. Em 1929, havia 400 hectares de plantação. Em 1931, o volume cresceu apenas para 900. Muito inferior ao planejamento inicial: 200 mil hectares de seringueiras e rendimento médio de 1500 quilos de borracha por hectare. Só em 1932, depois do fracasso da baixa produtividade, a companhia decidiu contratar um especialista no cultivo de borracha. Chegou por lá o botânico James R. Weir, que havia trabalhado na American Rubber Mission.

Weir sugeriu, em 1936, a troca da área de Fordlândia por outra em Belterra, a 48 quilômetros de Santarém. Lá, o terreno era mais bem drenado, com mais vento e menos umidade – condições desfavoráveis à propagação do mal-das-folhas. Um outro núcleo urbano foi construído e alguns erros, reparados.

O traçado das plantações ainda era retilíneo, mas as mudas não eram locais, e sim trazidas do antigo Ceilão (atual Sri Lanka). O projeto ganhou novo fôlego. Mesmo assim, a produção era baixa, os trabalhadores reclamavam da alimentação e da falta de liberdade. Uma vila vizinha a Belterra fazia as vezes da “ilha dos inocentes”, e a falta de mão-de-obra permaneceu.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, muita coisa havia mudado. O principal – e determinante – fator para o fim do sonho de Ford no Brasil foi o surgimento da borracha sintética, que passou a ser largamente produzida em países como Japão, Alemanha e Rússia e que tornou a borracha natural menos interessante. Além disso, a ideia de terceirização surgia e já não era mais necessário se preocupar com o todo da produção de um automóvel.

Em 1945, Henry Ford, sem nunca ter pisado em suas terras brasileiras, resolveu deixar de lado a Amazônia e vendeu por 250 mil dólares as cidades ao governo brasileiro, com tudo o que restava nelas. Hoje, Fordlândia está praticamente abandonada, tomada pelo mato. Belterra, pela proximidade com Santarém, tornou-se um município um tanto maior, com cerca de 17 mil habitantes.