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Matérias / Nazismo

Alemanha e a vergonhosa memória do nazismo

Professor do Instituto de Relações Internacionais comenta como o país lidou com seu passado e como isso afeta a extrema-direita e a situação dos refugiados hoje

Kai Michael Kenkel Publicado em 23/08/2019, às 07h00

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Crédito: Reprodução
Crédito: Reprodução

Quase todos os países consideram que a sua história e sua cultura política são excepcionais. Na Alemanha, não é diferente – ou, mais precisamente: não era diferente. O que talvez seja diferente, no caso alemão, é que a historiografia é marcada pela excepcionalidade do mal cometido em nome da nação, e não das façanhas de fundadores mais ou menos longínquos.

Surgiu um consenso, formal e informal, na vida pública alemã, baseado na prevenção do ressurgimento do nazismo. O que havia de positivo na autoidentificação pública alemã não podia existir sem o extremo negativo que o antecedeu e o possibilitou: o valor encontrava-se na superação, na capacidade de contrição e na autovigilância.

Quase duas décadas após a reunificação, e sete décadas após a refundação política do país, percebe-se a crescente desintegração desse consenso.

Três vezes nunca mais

O mais fundamental no consenso sobre como implementar lições da Segunda Guerra e do Holocausto eram os três princípios nunca mais: nunca mais Auschwitz, nunca mais guerra e nunca mais uma atuação sozinha na política externa. Fortaleceu-se também a descentralização do poder político num sistema federativo, um sistema econômico corporatista e um sistema político fortemente parlamentar.

É necessário destacar, também, que esses princípios foram fortemente mediados pela influência das potências ocidentais vencedoras da Segunda Guerra e as políticas de “reeducação” por elas instituídas. Essa origem parcialmente externa do novo contexto ia se tornar fator fundamental para seu enfraquecimento, o surgimento da extrema-direita.

Nunca mais Auschwitz se traduziu numa forte vigilância do surgimento de extremismos de qualquer cor, ancorada num entendimento proativo do que Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, cunhou como “paradoxo da tolerância”: a necessidade de defender ativamente a sociedade tolerante contra a intolerância.

Além da proibição formal – no contexto da Guerra Fria – de partidos comunistas e de qualquer manifestação de pensamento, símbolos ou organização nazista ou fascista, o próprio sistema eleitoral alemão é construído de forma a impedir o surgimento de partidos nas margens extremas do espectro político. Encontrava-se sujeito a  um forte tabu o pensamento étnico com suas associações com o nazismo, o antissemitismo e o nacionalismo explícito.

Memorial do Holocausto em Berlim / Crédito: Reprodução

Já o nunca mais guerra sofreu uma certa interferência do nunca mais sozinha: após a divisão da Alemanha, dando seguimento tanto ao segundo princípio quanto às realidades geopolíticas de uma potência derrotada, a República Federal foi integrada às instituições políticas, militares e econômicas ocidentais, que incentivaram sua rápida remilitarização no contexto do confronto com o Pacto de Varsóvia.

A reunificação alemã trouxe mudanças fundamentais às bases de sustentação desse consenso. A reunificação não aconteceu sob forma de uma fundição de sistemas, mas da aplicação do sistema ocidental inteiro no território da ex-República Democrática Alemã, comunista. Nascido da oposição ao nazismo, esse regime não assumiu a responsabilidade história alemã.

Esses fatos — a vitória de um lado, o fato de não ter tido que pagar o preço da História no sentido dos três elementos “nunca mais”, junto com o altíssimo custo da reunificação e da modernização da ex-RDA, criaram um forte sentimento de marginalização em amplos setores da população do leste alemão.

Os cidadãos da RDA, de modo muito simplificado, encontravam e continuam encontrando-se numa situação de relativa depressão econômica, alto desemprego e dependência de verbas de modernização. Não foram sujeitos à reeducação Aliada, não acumularam experiência de democracia proativa, não tiveram a mesma exposição a estrangeiros, e não experimentaram o tabu sobre o pensamento nacional e étnico.

Encontravam-se eles mesmos numa posição de necessidade de serem integrados numa cultura política desconhecida no seu próprio país. Agravou-se esse sentimento com o partido sucessor do partido único da RDA, de extrema-esquerda, ter sido excluído de qualquer formação de governo no futuro. Em que se pese o passado totalitário, era o único partido a representar os interesses dos moradores do leste.

Chegam os refugiados

É nesse momento que estouram as guerras dos Bálcãs, entre 1992 e 1999. Segundo algumas estimativas, a Alemanha abrigou aproximadamente a metade dos refugiados, em torno de 350 mil pessoas.

O esforço desdobrado pelo Estado alemão em buscar a integração dos refugiados criou ressentimentos em alguns setores da população oriental. O país foi tomado por uma onda de ataques violentos a abrigos de refugiados e pelo surgimento de atos de violência xenófoba e partidos de extrema-direita; embora fosse um fenômeno longe de ser exclusivo do leste, a maioria desses acontecimentos aconteceu na ex-RDA.

A solidez do consenso político na Alemanha ocidental abafou os incentivos para a incorporação da perspectiva dos cidadãos orientais, criando um crescente número de eleitores que não se sentiam representados pelos partidos mainstream. Ao mesmo tempo, cresceu significativamente o número de refugiados. O país aceitou desde então mais de 1,5 milhão deles.

Embora o custo econômico do acolhimento dos refugiados não seja expressivo – em torno de 1% do PIB -, o esforço de integração cultural necessário representa uma séria ameaça ao consenso alemão sobre as lições de sua história. Em setembro de 2017, o Alternative für Deutschland (“Alternativa para a Alemanha”, AfD), ganhou 12,6% do voto geral nas eleições federais. O partido reúne elementos abertamente neonazistas com movimentos étnicos xenófobos. O apoio ao partido superou 30% em vários distritos da ex-RDA.

A aprovação atual da AfD é forte sinal da necessidade da adequação do consenso – das lições da História – a m novo contexto doméstico, europeu e internacional. Como deixar claro para os cidadãos vulneráveis da ex-RDA que a chegada de refugiados não é uma ameaça? O que fazer quando certos refugiados trazem consigo atitudes antissemitas? Como enfrentar a potencial necessidade de uso da força para prevenir ameaças terroristas sem recair em profiling étnico contra muçulmanos?

Como manter os valores do multiculturalismo com uma crescente taxa de estrangeiro sempre mais diversos num país com parcelas da população sem compromisso com esse ideal? Muito depende de como o governo e a sociedade alemã reagirão à premente necessidade de adequar o consenso político às novas realidades de 2018.


*Kai Michael Kenkel é doutor em Relações Internacionais pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales. Leciona no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio. É editor da revista Contexto Internacional.